A Mulher que Canta

Estamos no deserto. Num deserto do Médio Oriente. Naqueles desertos de pó. Uma pequena aragem levanta nuvens de poeira. E um ambiente bege. O céu e a terra confundem-se no horizonte. O plano é largo. Bastante largo. Abarca a acção, os protagonistas da acção e o ambiente onde a acção decorre. Vê-se um soldado-cristão levantar a mão. Uma arma na mão do soldado-cristão. À frente do soldado-cristão, pequenino no plano, e na vida, uma criança corre. Corre desalmada. Corre para os braços da mãe carbonizada no autocarro em chamas. Um autocarro com famílias muçulmanas que os soldados-cristãos mataram a tiro. Mulheres. Crianças. Velhos. Tudo morto a eito a tiros de metralhadora. Depois gasolina para a combustão e queimar tudo. Tudo menos esta criança retirada por uma cristã sobrevivente que estava no autocarro. Mas que quis a mãe. No fim, a mãe. E corre para os seus braços carbonizados. Mas não chega lá. O soldado-cristão levanta a mão com a arma e dispara. A criança é projectada para a frente. Como se levasse uma paulada na cabeça. O tiro atinge-a por trás. A criança não chega aos braços carbonizados da mãe.
Estou num filme de Denis Villeneuve. Estou a descobrir o cinema de Denis Villeneuve. E descubro um cineasta urgente. Que urge descobrir. Quase todos os anos tem aparecido na cerimónia dos Óscares com filmes nomeados. Mas poucos o conhecem. O reconhecem. Poucos guardam o seu nome e, no entanto, aqui está um cineasta cheio de cinema. De um cinema obrigatório. Forte. Político. Humano.
Estou em Incendies, A Mulher que Canta. E vejo essa Mulher que Canta na prisão. Na prisão onde esteve quinze anos, numa cela de um por dois metros. Na prisão onde foi humilhada, torturada, violada. Onde foi violada pelo pai dos seus futuros dois filhos. Gémeos. Frutos dessa violação. Violada pelo próprio filho primogénito, veio a descobrir mais tarde. Próprio filho que tivera anos antes e que fora roubado dela, tirado dos seus braços, levado para um orfanato por desonra da família. Oh quanta honra nas famílias! Puta que pariu as famílias e a sua honra! E tornado guerreiro. Soldado. Criança-soldado. Que acaba por se tornar naquilo. No terror. Na miséria. Na desgraça.
Que merda de humanidade somos!
Estou na prisão com a Mulher que Canta. A Mulher que Canta está deitada no chão, semi-nua. O filho-violador vai a sair da cela, vira-se para trás e, do alto da sua arrogância de soldado-vencedor, diz Canta lá agora!

[escrito directamente no facebook em 2018/11/04]

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