Já Não Há Mais Estórias

Percorro toda a memória acessível para descobrir alguma estória ainda desconhecida, mas tudo se revela já conhecido. Nada de novo. Nada de velho novo. Recorro a artifícios para manter viva a aparência de que tudo vai bem. Que ainda existem estórias a serem contadas. Mesmo que já sejam sempre as mesmas. Afinal, a minha vida é finita. Ainda está a acontecer, mas é finita. Mas a linha do passado é esta, esta aqui, e vai crescendo à medida que vou vivendo. Não se inventa passado. Coço a cabeça e colecto os piolhos. Esmago-os entre as unhas e ouço os estalitos que fazem no adeus do esmagamento crac-crac-crac. Vou juntado palavras. Vou juntando palavras soltas que vou encontrando por aqui e por ali, nos cantos e recantos sujos da casa. Reciclo frases. Refaço estórias. Pinto-as com novas cores. Finjo. Minto.
Chamo-me assim. Tenho não-sei-quantos-anos. Vivo aqui, comigo, desde algum tempo. A minha condição social é esta, este é o clube do meu coração e já votei nestes partidos todos, embora não sinta afinidades com quase nenhum deles. Gosto de cores, mas também de preto e branco. Como o que há e bebo o mesmo. Trabalho nisto e às vezes naquilo. Ultimamente trabalho menos porque o trabalho escasseia. O futuro engole o presente. Não estamos preparados. Não estou preparado. Foi com surpresa que o vi entrar dentro de casa à minha procura. Não sabia quem ele era nem o que pretendia. Foi com alguma surpresa que ouvi as suas causas. Não reconhecia nada daquilo. Não me reconhecia naquilo. Ele insistia. Eu assustei-me. Foi então que peguei no martelo, tinha estado a arranjar uma portada da janela da sala, e lhe dei com ele na cabeça. De início nada aconteceu. Ele manteve-se como estava, sentado direito no sofá, mesmo que eu não lhe tivesse dado autorização para se sentar. Depois vi um fio de sangue a escorregar-lhe pela face. Depois, o corpo caiu. Caiu no chão. Não fez muito barulho. Quase como um saco de batatas a ser largado com cuidado. A culpa há-de se de muita gente. A minha será, com certeza, a menor de todas. Fui só o instrumento. Não a sentença. Mas faça-se justiça. A vossa justiça.
Enquanto tento encontrar palavras que justifiquem o injustificável, para a morte nunca há justificação (aqui terei de entrar em desacordo com o autor, mas isso será, talvez, assunto de outra conversa e, talvez, num noutro local), palavras essas cada vez mais perdidas, a linguagem tende a morrer e a ser substituída por emojis, sendo o do cocó o mais bem sucedido, perco a comunicação e sobram os gargarejos.
Como é que acaba a estória? Como acabam sempre todas as estórias: no final todos morremos. Uns assassinados, outros condenados, outros de outras formas diversas. Mas acabamos sempre mortos.
(somente quando as estórias começam com Era uma Vez, é que existe a autorização para que as estórias terminarem E Foram Felizes para Sempre, deixando no ar outras estórias inseridas no Sempre, antes de, finalmente no fim, acabarem por morrer também, como todos os outros).

[escrito directamente no facebook em 2023/08/26]

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