Mesmo os Miseráveis Têm Dias Bons

Hoje recebi por um trabalho antigo, de que já nem esperava receber, e fui às compras ao hipermercado. Às vezes, quando parece que as coisas já não podem descer mais, quando já não sei o que fazer, quando já não tenho soluções, cai uma surpresa vinda aos trambolhões ribanceira abaixo para me reequilibrar por momentos. Este pagamento foi uma destas coisas. Se não recebesse, e já não esperava receber, ia ficar com a despensa e o frigorífico vazios por mais uma ou duas semanas. Não fiquei. Pude ir às compras. Gosto mais de ir ao Mercado e comprar produtos directamente ao produtor, mas em tempos de carteiras magras, não tenho escolha e recorro às promoções e aos descontos das grandes superfícies. Fui ao hipermercado atrás dos preços abaixo dos preços e dos produtos prestes a saírem do prazo de validade mas que cá em casa se hão-de aguentar durante o tempo que for possível.
Não havia muita gente no hipermercado. É fim-do-mês. É suposto as pessoas já terem recebido mas, neste mês de Fevereiro houve o Carnaval e o Dia dos Namorados, muitas despesas fora do normal e as pessoas talvez tenham ficado desprevenidas, a minha normalidade diária. Para mim foi óptimo porque pude andar descansado a passear sozinho pelos lineares, há já muito tempo que não ia ao hipermercado, e fiquei fascinado pela oferta. Já não fiquei tão fascinado pelos preços. Corri quase tudo a Marca Branca e vistoriei as promoções todas, mas só trouxe, realmente, o essencial. Não estou em tempos de abundância, embora o pagamento de hoje me tenha deixado desafogado. Mas se não surgir outro entretanto, vou voltar à angústia de sempre.
Oh, vida do caralho!
À vinda para casa parei no café Central, no meio da aldeia. Estava lá gente, mas menos que o habitual. Bebi duas imperiais. Comi um pires de tremoços. Dei dois dedos de conversa. Soube que havia um Sporting-Benfica e que dava em canal aberto, na RTP1. A primeira mão das meias-finais da Taça de Portugal. Fiquei a saber que as meias-finais se jogam em duas mãos. Para haver jogo nos dois estádios. E para que a Federação faça mais dinheiro. Sempre a porra do dinheiro. No outro dia ouvi que havia dificuldade em remarcar um jogo atrasado do Sporting porque não havia uma data livre. Isto é espremer o limão até à última gota. Só espero que não não se esteja a matar a galinha dos ovos de ouro. Mesmo com todos estes exageros, continuo a gostar de ver um belo jogo de futebol, o que é cada vez mais difícil, nos dias de hoje. Porque os jogos não são interessantes. Às vezes são mesmo um verdadeiro martírio.
Resolvi vir para casa. Para ver o jogo sozinho. Não gosto de ver um Sporting-Benfica no meio da multidão. As coisas podem dar para o torto. E eu já não tenho idade para coisas que deem para o torto.
Vim para casa. Abri uma garrafa de vinho. Pus um chouriço a assar num porquinho de barro, com álcool, cortei duas fatias de pão saloio, e sentei-me na mesa da cozinha com a televisão ligada ao fundo. Comecei a beber e fui petiscando. Enquanto aguardava pelo jogo, resolvi escrever umas palavras sobre o facto de ter recebido por um trabalho antigo sobre o qual já não esperava receber e, por isso, ter ido ao hipermercado encher a despensa e o frigorífico. E que por isso estou a comer e a beber enquanto espero que comece o jogo.
É o que estou a fazer, neste momento. A escrever. Para mostrar que mesmo as vidas miseráveis, têm dias bons.

[escrito directamente no facebook em 2024/02/29]

Deep Fake

Muitas vezes, quando navego pela memória, e relembro pedaços da minha vida, pequenos pedaços, não tenho memória para mais, algumas coisas boas, outras menos boas, algumas mesmo más, todas elas armazenadas na minha pequena memória, recordo O Perfume de Patrick Süskind. Tinha acabado de sair da adolescência quando o li. Nunca mais voltei a ele. Mas foi um livro que me marcou. Talvez porque nunca tenha tido grande memória, muito menos olfactiva, como a personagem, Jean-Baptiste, não era?, uma personagem estranha nascida no meio da imundície de um mercado parisiense, que conseguia reproduzir, na memória, todos os odores com que se tinha cruzado na vida, porquanto, ele próprio, não tivesse qualquer cheiro.
O enorme fascínio que exerceu sobre mim não foi só pela capacidade sobrenatural que a personagem tinha para a lembrança dos odores, que lhe despertavam todo o tipo de memórias, mas também pela total falta de escrúpulos e desumanidade da figura central da estória. Jean-Baptiste era um canalha assassino. Matava sem remorsos, e depois, inebriava-se com a lembrança dos cheiros e revivia as estórias.
A minha memória não é, nunca foi, grande coisa, já disse. Mas também tenho os meus momentos. E já aprendi a dispará-los da melhor maneira possível. Sento-me lá fora, no alpendre, com um copo de vinho numa mão e um cigarro aceso na outra, e ao fundo as montanhas. Em dias de bom tempo e céu chroma, tendo a relembrar com mais facilidade. Quando chove perco-me no dilúvio, no barulho que produz, e não consigo concentrar-me. Nem consigo masturbar-me. A falta de concentração é-me fatal.
Nos melhores dias consigo levar a memória até aos anos da faculdade, à minha vida em Lisboa e aos fins-de-semana fechado em casa em grandes cabrioladas. Mais que isso é uma impossibilidade. Geralmente as minhas memórias ficam-se pela infância e adolescência. Não recordo o que fiz ontem. Se tiver feito algo de importante, talvez me lembre do quê com um pouco de esforço. Mais que isso é um martírio.
Por isso achei muito estranho quando, sentado no alpendre, com um copo de vinho numa mão e um cigarro na outra, a olhar as montanhas, está bom tempo, o céu não está chroma, mas não chove nem está vento, recordei um acidente a que assisti, mas que não é possível ter acontecido.
Recordo-me de uma mulher ter entrado no meu carro. Uma mulher que andava na rua, à beira da estrada, para a frente e para trás, bolsa a tira-colo, e que olhava para os carros que passavam por ela, para os homens que conduziam esses carros. Olhou para mim. Parei o carro. Ela entrou. Arranquei com o carro. E voltei a parar mais à frente, num antigo estaleiro. Um bairro de casas geminadas de construção parada. Já se notava alguma degradação. Entrei com ela para o interior do esqueleto de uma dessas casas. Ela estava de joelhos à minha frente quando ouvimos barulho. Ela parou o que estava a fazer. Pusemo-nos os dois à escuta. Eu puxei as calças. Ela levantou-se. Espreitámos através do buraco do que deveria vir a ser uma janela, e vimos uns miúdos a brincar num monte de areia. Estavam com brincadeiras parvas. A partir tijolos. A baterem-se uns aos outros com tubos de pvc. E depois, o grupo insistiu que um dos miúdos se lançasse do telhado. O miúdo não queria. Mas acabou por ceder. Outros dois ou três miúdos acompanharam-no. Os de cá de baixo esperavam, impacientes, que o miúdo aparecesse lá em cima. E, quando apareceu, começaram a incentivá-lo para que saltasse para o monte de areia seca. O miúdo não se decidia. Estava com medo. Os de cá de baixo gritavam em uníssono Salta! Salta! O miúdo não saltava. Chamaram-lhe nomes. Assobiaram. Cantaram cantigas a gozá-lo. Até que o miúdo saltou, saltou para cima do monte de areia, e deu um enorme berro mal pousou o primeiro pé em terra, antes de rebolar e espetar-se num ferro ferrugento que estava à frente do monte de areia.
Silêncio. Os miúdos calaram-se. A mulher levou a mão à boca para não gritar. Eu desviei o olhar para o chão. Ouvi os passos rápidos dos miúdos a fugirem. Dei a mão à mulher, levei-a para o carro e fui largá-la no mesmo sítio onde a tinha apanhado. Dei-lhe uma nota de vinte euros e disse-lhe para se calar. E depois, mais nada.
Não sei porque pensei nisto. Isto nunca aconteceu. Acho. O miúdo que vi cair, sei quem é e ele está vivo e nunca sofreu nenhum acidente, pelo menos que se saiba. A mulher que apanhei na rua, era a minha própria mulher. E eu não me lembro deste acidente nem de nenhum outro parecido.
Muitas vezes, quando navego pela memória, e relembro pedaços da minha vida, pequenos pedaços, não tenho memória para mais, algumas coisas boas, outras menos boas, algumas mesmo más, recordo estórias que nunca aconteceram mas que a minha memória teima em tratá-las como se fossem lembranças reais. Não são. Pelo menos, acho que não são. Mas continuo sem saber porque é que são tratadas como se fossem realmente memórias de coisas reais que tenha vivido. Poderão ser as minhas memórias falsas?

[escrito directamente no facebook em 2024/02/28]

Antigo Testamento

Estou preso na cidade. Ando há duas horas para sair dela e não consigo. Todas as ruas terminam noutras ruas. Ou em praças. Não em muitas que a cidade não tem muitas praças. É uma cidade pequena. Mas nenhuma das ruas sai para a periferia e para fora do centro. Há ruas fechadas. Novos sentidos obrigatórios. Desvios. As avenidas estão coxas, em obras, estaleiros levantados. A cidade tornou-se um puzzle fechado sobre si próprio. Não se pára, mas também não se vai a lado nenhum. Circula-se. Ando há duas horas nisto.
Páro o carro num lugar de estacionamento a pagar. Todos os lugares de estacionamento na cidade são a pagar. A cidade não é de todos, é de quem tem máquinas que passam os passes livres de estacionamento em forma de bilhetes, com horário de chegada e de saída, colocado em bom plano para a polícia comprovar, não estejamos nós a prevaricar. Não, a cidade não é de quem a habita, não é de quem cá nasceu e cresceu. Não. A cidade é de quem cobra bilhete. De quem lucra.
Páro o carro e apanho um pequeno autocarro Mobilis, os autocarros da cidade que também fazem a periferia. Chocalham muito, estes autocarros. São pequenos, rijos, e saltitões. Ir em pé é um martírio. Só está ao alcance dos mais jovens e amantes de desportos radicais. Os velhos, coitados, aceleram a sua morte. A solução é irem sentados, quando há lugar. Os autocarros são pequenos. Têm poucos lugares. Poucos e acanhados. Mas o autocarro que apanho, circula também em circuito fechado. Já não sai da baixa da cidade. Sai do Teatro, sobe ao Estádio, vai ao Continente, desce ao McDonalds, segue para o Hospital, cruza a cidade por dentro e volta a parar no Teatro. Um circuito que é um circo. Entre a distração e a saúde, os templos do grande consumo. A cidade está sitiada.
Desespero.
Saio do autocarro junto ao Teatro. Páro por momentos a olhar para o trânsito que se aglomera. A Mouzinho de Albuquerque cortada ao pé da Loja de Cidadão obriga os carros a voltarem para trás e a fazerem o mesmo trajecto dos autocarros em hora de ponta, cheio de estudantes jovens com as hormonas aos saltos. É a gritaria. As buzinadelas multiplicam-se. As zangas também. Há já muita gente impaciente. Não sou só eu. Não é só a mim que os nervos me atacam. Somos uma massa enorme.
Estou aqui parado sem saber muito bem o que fazer. Preciso sair da cidade. Já não vivo aqui. Quero ir para casa. Para minha casa. Preciso de descanso. De silêncio. Não ver pessoas nem ouvi-las.
Lembro-me do rio. Subo as escadas para o Marachão. Percorro a margem. Cruzo para o outro lado. Vou à esplanada ao pé do avião e roubo uma mesa de madeira. Corro de volta para o rio. Alguém corre atrás de mim e chama-me Filho-da-Puta. Não está a falar comigo, com certeza. Na margem mando a mesa para o rio e logo depois mando-me eu. Mergulho no rio. Agarro-me à mesa virada ao contrário e subo-lhe para cima. A correnteza leva-me rio abaixo. Em direcção à Praia da Vieira. Sorrio com algum alívio.
Sigo a correnteza. Deixo de ver os prédios. Estou a sair da cidade. Finalmente. Sinto descontrair-me. Mas, de novo, começam a aparecer outros prédios. Como se houvesse uma nova cidade colada a Leiria. Só que não há nenhuma outra cidade colada a Leiria. A Marinha Grande fica a onze quilómetros de distância e o Lis não passa por lá. Agarro-me a um ramo e chego-me a uma margem. Páro. Subo a margem. Estou de novo na cidade. Na mesma cidade. No outro lado da cidade. Do lado de quem vem das Cortes, da nascente do Lis, das Fontes. Até o rio corre em circuito fechado, uma corrida circular.
Estou com medo. O corpo treme-me. Estou com frio. Tenho fome. Preciso de um cigarro. Quero ir-me embora. Talvez seja um sonho. Acorda. Acorda, pá. Acorda! Sai daqui. Sai deste inferno.

[escrito directamente no facebook em 2024/02/27]

Voltamos para a Cidade?

Eu: Deixa, está bem assim.
Ela: Mas pisaste o chão molhado. Tenho de passar novamente a esfregona.
Eu: Não é preciso. Isso seca e as pegadas desaparecem.
Ela: Mas não gosto de ver as coisas mal feitas.
Eu: Está melhor que no início.
Ela: Qual início?
Eu: Quando limpámos isto para ela vir para cá.
Ela: Pois está.
Eu: Agora já não precisamos de nos preocupar.
Ela: Porquê?
Eu: Porque ela já não está para vir para cá.
Ela: Pois não…
Eu: É pena, não é?
Ela: É…
Eu: Queres que fiquemos nós aqui?
Ela: Aqui nesta casa?
Eu: Aqui na cidade.
Ela: Na cidade, sim. Nesta casa, acho que não.
Eu: Um dia ainda voltaremos para cá.
Ela: As coisas não estão fáceis.
Eu: Nunca nada é fácil. Ouço isso desde que me lembro.
Ela: Agora estão mais complicadas.
Eu: Dantes era pior.
Ela: Dantes tínhamos os nossos pais para se preocuparem por nós.
Eu: Pois, tens razão.
Ela: Agora estamos sozinhos.
Eu: E as coisas estão difíceis.
Ela: Pois estão.
Eu: Achas que a culpa é nossa?
Ela: Em certa medida, sim.
Eu: Porquê?
Ela: Porque não fazemos nada para mudar as coisas.
Eu: Fazer nada, como?
Ela: Vivemos a vida como ela é e não como queremos que ela seja.
Eu: Queres dizer que não tomamos parte activa na forma como vivemos?
Ela: Sim.
Eu: Mas votamos.
Ela: Sim, o voto é bom. Mas também nos faz cruzar os braços pensando que, ao colocar uma cruz no papelinho, já fizemos todo o nosso trabalho.
Eu: Mas o que é que queres? Uma revolução permanente?
Ela: Não tem de ser permanente. Mas devia existir.
Eu: Achas?
Ela: Sim. Porque, por mais que mudemos a ideologia, não mudamos a ordem das coisas. Elas não mudam por decreto. Às vezes é preciso lutar. Abanar o que já está estabelecido.
Eu: Sim, é verdade. Mais imposto, menos imposto, mais público, mais privado, no fim do dia a ordem das coisas é a mesma.
Ela: Sim. As coisas estão feitas para uma maioria que nem sequer quer saber o que se passa. E acaba por ficar sempre tudo na mesma.
Eu: Preciso de uma cerveja.
Ela: Deixa-me acabar isto. É só mais uma passagem.
Eu: Deixa estar. Isso seca e as pegadas desaparecem.
Ela: Não desaparecem da minha cabeça.
Eu: É só uma casa vazia.
Ela: Nunca é só uma casa vazia. É uma casa cheia de memórias. Uma futura casa de uma nova família. Uma casa aberta a novas memórias.
Eu: As memórias são minhas, não da casa.
Ela: As memórias são tuas nesta casa. Não noutra casa qualquer.
Eu: Mas não preciso de limpar a fundo a casa por causa de umas memórias que serão minhas com ou sem nova passagem com a esfregona.
Ela: Mas ainda não percebeste. Não é a ideia que se transmite aos outros. É a imagem com que ficamos nós próprios. Não é para que os outros não nos achem porcos, mas é porque nós somos limpos.
Eu: És mais picuinhas que eu.
Ela: Nalgumas coisas sou.
Eu: Tenho sido um bom professor.
Ela: Se por um lado aprendi contigo, por outro estou a ultrapassar-te.
Eu: Estás a radicalizar-te.
Ela: Eu sei. Tenho noção disso. Mas não consigo contrariar-me. Às vezes assusto-me.
Eu: Não te contraries. Gosto de ti revolucionária.
Ela: Alguém tem de o ser, não é?
Eu: É.
Ela: Já está. Vês? Não custou nada.
Eu: Pois não.
Ela: E ficou muito melhor.
Eu: Pois ficou. Vamos à cerveja?
Ela: Deixa-me ir só à casa-de-banho.
Eu: Está bem.
Ela: E então? Voltamos?
Eu: Voltamos para onde?
Ela: Para cá, para a cidade.
Eu: Se as coisas melhorarem.
Ela: As coisas nunca melhoram o suficiente.
Eu: Não ias à casa-de-banho?
Ela: Vou, vou.
Eu: Então vai.
Ela: Para a cidade?
Eu: Já estamos na cidade.
Ela: Não. A sério. Vir para a cidade a sério.
Eu: Sim, vimos para a cidade a sério. Mas primeiro vai à casa-de-banho, se não, nem o pai chega nem a gente almoça.
Ela: Nem o pai morre…
Eu: Estou farto de mortes. Nem o pai chega…
Ela: Está bem. Sempre gostei desse provérbio.
Eu: Achei que vinha a propósito.
Ela: Estás sempre atento aos momentos.
Eu: Não ias à casa-de-banho?
Ela: Vou, vou.
Eu: Então vai, que estou a morrer de sede.
Ela: Bebe água.
Eu: Água enferruja.
Ela: Não te ouço.
Eu: Despacha-te.
Ela: O quê?
Eu: Blá blá blá.
Ela: O quê?…

[escrito directamente no facebook em 2024/02/26]

Já Não Há Enxoval

E quando tudo vai, o cuidado, o amor, a vida, o que fica é um monte de tralha, restos acumulados ao longo de uma vida que são várias, vividas em décadas.
E são os que ficam que têm de lidar com essa tralha. O que fazer com tudo isto? São memórias, também, claro. Pedaços de quem se foi. Mas não deixa de ser pedaços do que não somos. Embora também o sejamos.
Não há muitos anos, na minha meninice, os pais faziam o enxoval das filhas. Recheios para uma casa-família. As mulheres eram prendadas e levavam prendas com que forrar uma casa onde se iria iniciar uma vida. Atoalhados. Trens de cozinha. Rendas. Bordados. Quando entrassem na sua casa, pela primeira vez, uma rapariga poderia colocar cortinas nas janelas, apresentar uma mesa bem posta para um jantar formal, podia cozinhar um almoço, dormir numa cama bem feita, tinha bases para amparar a televisão, para proteger os braços dos sofás, para decorar a cama e a bancada da cozinha. Às vezes o enxoval até poderia incluir uma televisão, um aspirador, uma máquina de lavar a roupa, ou a louça, um fogão, um frigorífico, embora isso já saia do conceito de enxoval e sejam ofertas de casamento. Quando saí de casa, saí com aquilo que era meu: a roupa, os livros e os discos, e pouco mais. Na minha primeira casa dormi num colchão no chão e mais tarde num estrado. Nunca tive uma cama-cama, muito menos uma mobília completa. A sala, sempre foi um misto de jantar e de estar, e tinha uma mesa e quatro cadeiras, não todas da mesma família. Antes do primeiro sofá tive uma cama de solteiro a fazer as vezes. Na verdade, nunca tive um casa-lar como os meus pais. Vivo acampado. Tudo o que possuo posso enfiar numa mochila.
Quando eu morrer, não vou deixar muita tralha. Alguma roupa e livros. E alguns discos. Poucos, contudo. A maior parte já foi ficando nas casas por onde passei.
Ao esvaziar a casa, esta casa, a casa dela, esta aqui de que não queria desfazer-me, pergunto-me o que fazer a isto tudo. São memórias, e isso é importante. Mas são memórias mortas. Não quero isto nas minhas mãos quando não posso ter o resto. Isto não é meu. Mas é. O que quer que eu decida o que fazer, vai magoar-me. Não queria ter de me desfazer de nada disto. Mas também não gosto de altares.
As pessoas, quando desaparecem, deviam desaparecer com tudo o que acumularam ao longo de uma vida inteira. Cada um de nós devia ser só acumulador das suas próprias coisas. E quando partíssemos, partíamos com o que era nosso, com o que tínhamos acumulado, gasto uma vida inteira para ter algo que só a nós diz respeito.
Despejo a casa. A casa dela. Separo coisas. Umas para dar. Outras para deitar fora. E umas poucas com que quero realmente ficar. Algumas que quero ficar são fotografias e plantas. Gosto de plantas. Gosto de plantas e raramente tive plantas nas casas onde vivi. Não sei porquê. Mas ela sempre teve muitas plantas em casa. Cresci com muitas plantas em casa dela, não esta casa, esta é uma casa de segunda vida, um fim-de-vida, uma casa à medida dela, das suas necessidades e das suas obrigações, mas também esta casa estava cheia de plantas. Fico com as plantas. São o mais próximo que estou dela. Lembro-me de a ver regá-las. Também eu as regava. E regava porque ela mas fazia regar. Agora sou eu que tenho de me lembrar de regá-las. Tenho de as escutar e perceber quando estão com sede. Ao contrário dos cães e dos gatos, que pedem comida quando estão com fome ou sede, as plantas limitam-se a definhar e, por fim, a morrer. Não as vou deixar morrer. Não posso deixar morrer.
Quando a casa está vazia, sinto um aperto no coração. É a isto que tudo se resume? A uma casa vazia? Uma casa vazia e fria? As memórias são minhas e levo-as comigo. Dela, o que fica deixa de ser. A sua casa deixa de ser a sua casa porque também já não era a sua casa. A sua casa já tinha desaparecido há muito tempo. A casa dela era a casa onde viveu com o meu pai e onde eu cresci. Se ela conseguiu sobreviver a esse adeus, também eu hei-de conseguir sobreviver. Mas não deixa de ser terrível desocupar um espaço que esteve tão cheio de vida.

[escrito directamente no facebook em 2024/02/25]

Contar as Horas e os Dias

Vinte uma e vinte, e um, e dois, e três, e quatro, e cinco… Conto as horas, os minutos, os segundos. Entretenho-me. Conto as horas mas também conto os dias. Não que espere alguma coisa no fim dos dias, mas é como contar ovelhas sem ter de adormecer. Olho os segundos a passar como modelos numa passerelle. Eles passam e esqueço-os. Elas também passam. Eu também as esqueço.
Hoje de manhã saí de casa. Fui ao Mercado de Leiria de propósito para comprar tremoços e azeitonas. Gosto das azeitonas do vendedor do Mercado. Como é que se chama? Não me recordo do nome. Mas as azeitonas são muito boas. As várias variedades de azeitonas. Prefiro as ácidas e amargas. Os tremoços são pequenos e rijos. São uma boa companhia à cerveja, mesmo quando não há cerveja, como é o caso. Mas já comi uma mão-cheia de tremoços. Comi-os enquanto conto os segundos.
Vinte e uma e vinte sete, e um, e dois, e três, e quatro, e cinco… Ouço umas músicas. Levanto a cabeça. Tenho a televisão ligada à minha frente. Está a dar o Festival da Canção. De repente tomo consciência do meu degredo. Estou em casa, num Sábado à noite, a assistir ao Festival da Canção. Não estou na rua, na cidade. Não estou a jantar fora, nalgum restaurante da moda ou de conforto. Não estou com amigos, nem sequer conhecidos. Não estou no meio de nenhum grupo de gente desconhecida. Estou em casa. Sozinho. A ver o Festival da Canção. E a contar as horas, os minutos e os segundos. Que vida.
Vinte e uma e quarenta e um, e um, e dois, e três, e quatro, e cinco… Tenho uma garrafa de Martha’s em cima da mesa. Despejo dois dedos no copo e bebo um gole. Gosto do sabor desta aguardente. Gosto do sabor a queimado. Também descubro um dor a café. Não queima na garganta. Deixa o sabor na boca e aquece no estômago.
Vejo, no Festival da Canção alguém a tocar harpa. Gosto do som da harpa. Quando era mais novo cheguei a ouvir Alan Stivell. O que é feito desses discos? Desapareceram? Há coisas na minha vida que desaparecem sem deixar rasto. A maior parte delas só descubro quando as procuro. Como agora. Se não fosse o Festival da Canção nem me lembrava de Alan Stivell nem que tinha discos dele. Tinha. Já não tenho. Perco tudo. As coisas fogem-me. Ou ficam em sítios por onde passo e onde nunca regresso.
Vinte e uma e cinquenta e sete, e um, e dois, e três, e quatro, e cinco… Acendo um cigarro. Despejo o copo de Martha’s. Levanto-me e vou até à janela. Esteve a chover muito. Já não está. Apago o cigarro. Não me apetece fumar mais. Decido ir para a cama contar ovelhas. Talvez adormeça.
Deixo a televisão ligada a tocar para o boneco. Acho que estou a ouvir uma guitarra heavy metal típica da cintura industrial, mas devo estar a imaginar coisas.
Estou a sair da cozinha quando ouço alguém a bater à porta da rua. Páro. Perco-me no tempo. Que horas são? Quem é que me vem bater à porta a estas horas da noite? Sinto o coração a bater rápido. Acho que estou assustado. Quem será? O telemóvel?…

[escrito directamente no facebook em 2024/02/24]

Take Me Home, Country Roads

Estou sentado no sofá a olhar para a televisão. Cheguei agora a casa. Estou cansado. Não me apetece fazer nada. Nem me apetece escrever. Não tenho nada de importante para dizer. Não sei mais o que dizer. Estou vazio. Repito-me. A minha vida volta às repetições. Nada de novo depois da desgraçada novidade da semana passada.
Tiro as sapatilhas. Dispo as calças. Tiro a camisola. Não tenho frio. Estendo os pés sobre a mesa de apoio. Acendo um cigarro. Olho para a televisão desligada. Deve estar a dar, o quê? o debate entre os candidatos às eleições de Março. Um provável primeiro-ministro há-de sair daqui. Ou talvez não. Não ligo a televisão. Talvez fosse ver um filme (bocejo) mas acho que não chagava ao fim do genérico inicial. Estou cansado. Mas não me apetece ir para a cama. A cama está fria. Mais fria que este sofá. Estou demasiado cansado para dormir. Fico aqui. Pelo menos enquanto não arrefecer. A olhar para lado nenhum. Sem ir para nenhum lado. Mas estalava os dedos para recuar no tempo. Recuar aos meus vinte anos. Voltar ao início da minha vida. Fazer tudo de novo e de outra maneira. Ser outro. De outra maneira. Mas, provavelmente, a terminar aqui, assim, como agora. As vidas são o que são e nunca são outras, as que não são. Não há esperança em melhores dias nem estórias do karma.
(bocejo)
Chove de novo. Uma chuva violenta. Mas dura pouco. Um som ensurdecedor abate-se sobre o mundo e desaparece em poucos minutos. É um toca e foge. Uma ameaça de brincadeira. O medo nunca dura muito. E depois, do nada, surge-me na cabeça a versão de Take Me Home, Country Roads pela Lana Del Rey, da música original de John Denver, ouvi-a à tarde e gostei bastante de a ouvir, ficou-me na cabeça e de vez em quando aparece para me dizer Olá e deixar-me bem-disposto. Às vezes gosto de me sentir bem-disposto. Posso adormecer assim, com a Lana na cabeça. Tenho a sensação que, em miúdo, ouvi uma versão da mesma música pela Joan Baez, mais country que a da Lana, que também gostava muito, mas não sei se é verdade, não sei se não estou a inventar memórias, já não tenho certezas de nada, nada me parece certo nem garantido. Às vezes nem eu me pareço real, mas um sonho de algum bêbado caído em coma nalguma sarjeta nojenta a vomitar as tripas.
Já estou a dormir? Isto é já um sonho? Ou estou só cansado?

[escrito directamente no facebook em 2024/02/23]

A Vida Continua, quarta parte

Estou deitado no chão da sala. Olho para o tecto. É branco, o tecto. Não tem rachaduras nem cagadelas de moscas. Não está amarelado pelo tempo. Está branco. É assim o tecto de casa dela.
Estar assim deitado no chão alivia-me as costas. Gosto de estar deitado no chão. Houve um tempo em que tinha um colchão na cama com placas de madeira. Era um colchão rijo. Hoje já não consigo encontrar colchões assim. E agora há uns que nos sugam lá para dentro. Um horror estas modas. Todos os colchões são iguais. Qualquer dia compro um tatami.
Levo os dedos da mão à boca para dar uma passa, mas descubro que já não tenho nenhum cigarro na mão. Já se terá consumido. Nem me apercebi.
(suspiro)
Levanto-me. Olho de novo em volta. Tudo ainda por fazer.
Fecho os olhos.
Sinto-lhe o cheiro. Ouço-lhe os pés a arrastar pelo chão de casa liberto de tapetes para não tropeçar. Ouço-a perguntar-me Já chegaste? e eu respondo-lhe com outra pergunta Já estás despachada? e sim, já está pronta, de vestido ou de saia e camisa, um casaquinho por cima porque ao fim da tarde arrefece, já passou a escova nos cabelos, o cabelo é curto mas com caracóis que são anéis largos, um batôn vermelho escuro nos lábios e colares, muito colares, anéis e pulseiras. Está toda boneca. Enquanto eu abro a porta da rua, ela pega na bengala, antes de sair de casa benze-se, entra no elevador comigo e descemos à rua. Vamos até ao café. Sentamo-nos na esplanada. Eu pergunto-lhe Queres um carioca? e ela diz Traz-me também uma garrafa de água. Natural. Das pequenas. E eu ainda lhe pergunto Queres um bolo? e ela responde Ah, não, estou a engordar, e eu não ligo e apareço-lhe com um pastel de nata ou uma brisa do Lis e ela quer repartir comigo e eu digo, pela enésima vez Não gosto de doces, ao que ela repete, também pela enésima vez, Quando eras pequeno gostavas. Eu tinha de esconder o arroz doce e o mousse de chocolate para que tu não desses cabo de tudo rapidamente. Sim, eu gostava de doces quando era pequeno, mas deixei de gostar.
Eu acendo um cigarro. Ela diz, como diz sempre Não gosto que fumes. Passa alguém conhecido. Senta-se na mesa. Eu sou relegado para segundo plano. Aproveito e vou ao supermercado. Digo-lhe Vou ao Pingo Doce, já venho. E ela responde, responde sempre o mesmo Traz também uma garrafa de vinho para ti. E muitas garrafas de vinho bebi à tua conta.
Quando regresso já lá está outra pessoa. Às vezes não sei onde é que ela descobre estas pessoas, de onde é que as conhece, se se lembra realmente delas do passado. Volto a sentar-me. A companhia vai embora. Fico a pensar se é por minha culpa. Mas ela não diz nada. E eu pergunto-lhe se quer ir dar uma volta antes de me ir embora. E ela diz que sim, e damos uma volta, a pé, por aquela zona da cidade, vemos montras, conversamos, ela cumprimenta mais duas ou três pessoas, raios a partam, é mais conhecida que o Papa. Estamos a chegar ao prédio dela e eu digo Anda lá, eu tenho de ir levar as compras e acompanho-te a casa, e ela responde Não, eu não vou subir já. Vou ainda sentar-me mais um pouco na esplanada. Vai-te lá embora, vá. Eu sorrio e vou. Subo a casa para deixar as compras e depois vou embora. Ainda me viro para trás e vejo-a a andar, devagar, mas decidida, com a bengala à frente, a ir para a esplanada.
Abro os olhos.
Olho em volta. Está tudo arrumado em caixotes e em sacos. Os vidros, as louças, a roupa, os bibelots, o bric-a-brac, toda a tralha que estava espalhada pela casa, pelas gavetas, pelos armários, esquecidos na despensa.
Carrego tudo para baixo. Não encontro o carro. Depois lembro-me que estou com uma carrinha. Sorrio. Pedi a carrinha emprestada. Sorrio não por me terem emprestado a carrinha, sorrio por a ter pedido emprestada.
No fim, estou de novo em casa. Em casa dela. Que já não é a casa dela. Todos os caixotes e sacos e malas já foram para baixo. Quantas viagens fiz? Faltam os móveis. Como é que vou levá-los para baixo, sozinho? Coço a cabeça. Acendo um cigarro. Não adianta pensar. Não consigo levar os móveis sozinho. Ficam aqui. Deixo-os na casa. Levo a televisão e a aparelhagem, o aspirador e a tostadeira. O resto fica. Os móveis. As cortinas. São só móveis e cortinas. Nada mais que isso. Móveis e cortinas. Talvez deem jeito aos próximos inquilinos.

[escrito directamente no facebook em 2024/02/22]

A Vida Continua, terceira parte

[continuação]

Estou deitado no sofá, enrolado num cobertor. Lá fora já é dia. Adormeci de novo. Sinto-me cansado e sem vontade de fazer nada.
Levanto-me a custo. Vou à casa-de-banho e lavo a cara. Olho para o espelho. Não me reconheço. Nem a reconheço a ela em mim. Estou sem óculos e a ver cada vez pior. Na verdade não me vejo no espelho. Vejo uma massa desfocada que me lembra, vagamente, uma cara. Desde que perdi os óculos num linear do Pingo Doce, nunca mais comprei outros.
Saio da casa-de-banho. Volto a olhar para a casa. Para as paredes. Escuto as estórias. As paredes são vazias, mas contam estórias. Há um ou outro quadro nas paredes. Imitações. Quadros comprados em lojas de decoração do antigamente. Há um desenho antigo do castelo de Leiria no alto da colina com a praça e o jardim em baixo. Há uma fotografia da Princesa Diana. De onde veio esta fotografia? E porque é que eu nunca a tinha visto? E porque é que ela tinha uma fotografia da Princesa Diana?
(suspiro)
Digo, alto, Hoje tenho de encaixotar tudo isto. Depois, logo se vê. Digo isto para me convencer. E saio de casa. Desço as escadas do prédio. Deixo o elevador parado lá em cima. Desço as escadas até à rua. Está frio. Não tem estado assim. Agora está. Ainda bem que ela não passou pelo frio. Não gostava do frio. Gostava do calor, de se sentar na esplanada a comer um Cornetto de Morango ou beber um Compal de manga. E de ver as pessoas a passar. E de falar com elas. Conhecia muita gente. Nos últimos tempos conheciam-na mais a ela que ela a eles. Já não via muito bem. Também perdeu os óculos. Tal como eu. Tal mãe tal filho. Perdemos óculos de ver, chapéus-de-chuva, e às vezes até mesmo a cabeça e a razão. Bom, a razão sou mais eu que a perco. Falo demais. Falo depressa demais. Falo antes de pensar. Disparo rápido e, às vezes, erradamente. Ela era mais calma. Às vezes impedia-me de explodir e dizer asneiras. Não, ela não perdia a razão. Eu é que perdia a razão. A razão e a cabeça.
Entro na pastelaria e peço um café. Bebo um café e como um rissol de camarão. Cai-me mal, o rissol. Sinto-me enjoado. Pago e vou-me embora. Não chego ao elevador. Vomito antes de entrar no prédio. Estou mal disposto. Tenho frio. O tempo já não é o mesmo. Tenho frio por fora e por dentro.
Limpo a boca à manga da camisola. Entro no prédio, no elevador. Subo. Saio. Entro. Estou em casa dela, outra vez. Vou à casa-de-banho lavar os dentes. A boca sabe-me mal.
Volto à sala.
(suspiro)
E digo Vamos a isto. E vou, sem grande vontade. Começo a encaixotar tudo a eito. Não selecciono nada. Selecciono depois, mais tarde, sem a pressão de ter de deixar a casa. A vida de todos os dias não quer saber da vida que não é de todos os dias. A vida, como a vivemos, normaliza a dor e o tempo para lamber as feridas. Tem de ser tudo rápido. Nãohá temponãohátemponãohátempo. Viver, agora, é fazer jogging. Tiro os vidros da cristaleira e embrulho-os nas folhas do Correio da Manhã, o jornal mais barato e com mais folhas, o ideal para embrulhar vidros e porcelanas. Ao lado, um saco do lixo para onde mando o que já não serve, está estragado, fora de prazo, sem utilidade. Lixo. A roupa é o mais fácil de arrumar. É pegar nos montes e colocá-los nos caixotes exactamente assim, da mesma maneira. Mas vou parando. Há peças de roupa que me despertam memórias. Lembro-me de a ver vestida assim, assado, com esta camisa, com este casaco, com esta saia. Há já muito tempo que não usava saias nem vestidos. Ela gostava de usar vestidos. Gostava de ser menina. Era um pouco coquette. Não agora. Não ultimamente. Ultimamente usava calças de algodão porque era mais fácil e prático.
Embrenho-me nesta luta. Tiro da cabeça as memórias e as lembranças, para acabar de vez com isto. Quero despachar a casa. Quero esvaziar tudo. Quero sair daqui. Quero ir-me embora.
(suspiro)
Estou sempre a pensar parvoíces, a dizer parvoíces. Sou parvo. Estou parvo. Acendo um cigarro. Sento-me no chão. Apetece-me deixar tudo assim como está. Troco isto tudo por ela. Deito-me de costas, e vejo o fumo subir até ao tecto.

[continua]

[escrito directamente no facebook em 2024/02/21]

A Vida Continua, segunda parte

[continuação]

Acordo e está tudo escuro.
Por momentos, não sei onde estou. Estou vivo?
Aos poucos vou percebendo silhuetas, formas, algum relevo. Percebo que estou em casa dela. Estou sentado no sofá, o mesmo sofá onde dormi no último mês, na sala de estar. Devo ter adormecido. Tenho uma beata apagada entre os dedos.
Levanto-me do sofá. Bocejo. Abro os estores. Saio à varanda. Olho para a cidade. Ainda é de noite. Não há ninguém na rua. Tudo a dormir. Está uma noite amena. Volto a entrar em casa. Vou à casa-de-banho urinar. Lavo as mãos e a cara. Lavo os dentes. Vou à cozinha. Percebo que tenho fome. Abro a porta de um armário e descubro o resto de um pão saloio. Corto três fatias. Faço torradas. Encho um copo de vinho. Bebo um gole.
Vejo a luz da máquina de lavar. Recordo-me de ter posto a máquina a lavar. Tenho de ligar a centrifugação, que a máquina não a faz sozinha. As máquinas ainda precisam de comandos. Enquanto a máquina fica a girar quem nem uma maluca, a um tempo, pela janela do tambor, parece que a máquina está vazia, mas a roupa está toda colada às paredes laterais do tambor dando a ilusão de estar vazia, eu vou comer as três fatias de pão torrado barradas com manteiga e beber o copo de vinho. Como pausadamente. Olho para o vazio. A cabeça leva-me para onde não quero ir mas não consigo evitar. Estou sem força. Mastigo e penso. Engulo e revivo. Já estive aqui, nesta mesma mesa, a comer torradas com ela. A beber café. A almoçar. A jantar. Passámos aqui vários natais. Alguns aniversários. Mesmo com o vinho, as torradas custam a descer pelo esófago, custam a engolir.
Depois de comer as torradas tiro a roupa da máquina e estendo-a na varanda.
Enquanto estendo a roupa penso que sou o último homem na Terra. Não há ninguém à vista. Não ouço barulho de vida. Entro em casa e o sentimento é o mesmo. Não há vida. Nem eu me sinto vivo.
Volto a sentar-me no sofá. Acendo outro cigarro. Quando ela estava por aqui, não podia fumar em casa. Ela não gostava do cheiro do tabaco. E não gostava mesmo nada que eu fumasse. Acho que era mesmo a única coisa de que não gostava em mim. Aceitava todos os meus defeitos. Mesmo o meu linguajar vernacular, de que não gostava muito, aceitava porque sabia que me era natural e uma forma de escape. Ela sabia-me nervoso. Com pavio curto. Às vezes oferecia-me um ou outro Xanax. Dizia que eu estava a precisar. Mais que ela, dizia.
Vejo ao canto da sala, em cima da antiga máquina de costura, com a máquina recolhida parece uma mesa, uma série de molduras com fotografias. Levanto-me e aproximo-me da máquina de costura. Vejo as fotografias. Há fotografias da família. Minhas. Do meu pai. Dela. Da minha irmã. De antigos amigos que reconheço. Mas também há gente que não sei quem é. Ela tinha uma vida que eu não conhecia? Conhecia gente que eu desconhecia? Será que tinha uma vida a que eu não tinha acesso? Para a qual não era convidado?
Agarro numa fotografia minha. Terei, o quê? só alguns meses de vida. Estou sentado em cima de uma cama, talvez a cama dos meus pais. Estou nu. Vejo a minha pila. Uma pila pequenina. Estou a sorrir. Eu sorria, antes de ser assim como sou agora. Depois vejo outra fotografia minha. Um pouco mais crescido. Terei cinco, seis anos, e estou ao telefone. Um telefone enorme para as minhas mãos. Um telefone preto, pousado numa mesa de apoio. Ainda sou louro. Estou penteadinho, de risco ao lado, e bem vestido. Vestido por, claro. De calções e sapatos de verniz. Meias até ao joelho. Eu já fui assim? Olho para outra. Nesta já estou adolescente. Vestido de preto. Cabelo penteado para trás. Talvez com gel. Estou sentado a uma mesa com restos de uma refeição. Só estou eu na fotografia, mas percebe-se que há gente à minha volta. Há um copo com um resto de vinho à minha frente. Estou a escrever qualquer coisa na mesa, na toalha de papel da mesa. Estas fotografias têm estado sempre aqui?
Coloco as molduras onde estavam. Devia arrumá-las num caixote. Não consigo. Não consigo desfazer estes altares. Vejo uma fotografia do meu pai. Está numa festa. Talvez num casamento. Está elegante. Bem vestido. De fato escuro. Ela dizia sempre Não sei a quem é que sais. Ao teu pai não é de certeza. Ele anda sempre bem vestido, bem arranjado, nunca lhe vi nenhumas alpercatas nos pés. Vejo uma fotografia dela. Nova. Talvez vinte anos. Talvez um pouco menos. Está sozinha. Por trás um jardim. Está a pousar para a fotografia. Era bonita. Era muito bonita, a minha mãe.

[continua]

[escrito directamente no facebook em 2024/02/20]