Rastreio

O telemóvel toca. Assusto-me. Não estou habituado a que o telemóvel toque. Não estou habituado que me telefonem.
Atendo. É do centro de saúde. Tenho de fazer um rastreio. Para prevenir o cancro do intestino. Antes de fazer uma colonoscopia, processo muito invasivo, um rastreio. Tenho de passar pelo centro de saúde para trazer o kit para casa. A colheita é feita em casa. Depois tenho de entregar a colheita no centro de saúde.
Foda-se!
É oficial. Estou velho!
A minha mãe já não é a velha da família. Ela já está para lá da velhice. Já é um marco nesta família. Nunca ninguém nesta família chegou tão longe quanto ela. A minha mãe é uma pioneira. O velho, sou eu. Eu é que sou o velho. Eu é que estou velho. Eu é que vou começar a ser posto à prova: conseguirei chegar onde a minha mãe já vai?
Desliguei o telemóvel. Estava em pé no meio da cozinha (ia a sair para o quintal para regar as plantas, não tem chovido e elas estão a ficar secas, quando o telemóvel tocou) e no meio da cozinha fiquei. Por um lado, estava contente com a qualidade do SNS e pelo centro de saúde da minha área se preocupar comigo, preocupa-se mais comigo do que o governo, qualquer governo pelo qual já passei, o centro de saúde sabe o meu nome e não é para me pedir dinheiro, é para cuidar de mim. Por outro lado, sentia-me triste ao realizar que estava velho. Pela primeira vez sentia-me velho. Até já faço os rastreios dos velhos. Para antecipar doenças de velhos. Disseram-me: é o rastreio normal para quem tem mais de cinquenta anos. Eu percebi. Não precisava da confirmação. É o rastreio dos velhos. Mesmo que já venha atrasado. Já fiz os cinquenta anos há muitos anos. Faz-me lembrar a renovação da carta, vários anos depois do que devia porque ninguém me avisou quando era. E eu devia saber. Todos nós devemos saber estas coisas, mesmo que não as saibamos.
Desperto para a minha realidade. Quando é que tenho de lá ir? Ah, pois, daqui a dois dias. E o que é que eu ia fazer agora? E estou uns minutos aqui assim, parado, no meio da cozinha, a olhar em toda a volta, a tentar conectar-me com a minha realidade diária, tenho coisas a fazer, tenho sempre coisas para fazer, coisas programadas para que não me esqueça, embora me esqueça bastantes vezes, tenho de fazer um esforço. O que é que eu ia fazer, mesmo?
É melhor colocar um lembrete no telemóvel para não esquecer o rastreio. Tenho de ir ao centro de saúde daqui a dois dias. Já não me vou esquecer.
E agora? Ah, sim. Tenho de ir regar as plantas lá fora, no quintal. Não tem chovido e as plantas estão a secar. Tantos avisos, amarelo, laranja, vermelho, e não caiu uma gota de chuva no quintal. Tenho de ir regá-las, coitadas. Também já estão velhas. São elas e eu. Quem me dera chegar onde a minha mãe já vai. Ela é uma pioneira. Eu sou um velho. Já faço rastreios.

[escrito directamente no facebook em 2023/06/14]

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