Nu Perante o Mundo

O calor estival deste Outono trouxe-me, de novo, até ao alpendre onde não vinha há já algum tempo. Ando com a neura. Fecho-me no quarto, deitado na cama, tapado pelo edredão até transpirar que nem uma besta e depois, deito-me na banheira e deixo a água fria correr pelo meu corpo até começar a tremer de frio, a pele enrugar e regressar ao quarto, à cama, ao edredão, à fuga de uma casa já de si escondida e fugida de tudo e de todos.
Sentei-me no banco do alpendre como gosto de me sentar. Nu, com um copo de gin numa mão e um cigarro na outra. Só me levanto para urinar e preparar novo gin.
Estou, neste mesmo momento em que o dia está a querer terminar, sentado nu, com o cu dormente de estar tanto tempo sentado, embora já tenha ido buscar uma almofada, com um cigarro aceso numa mão, e sem ansiedade porque ainda tenho um volume inteiro na despensa, e um copo de vinho tinto na outra mão, porque já se acabou o gin, o limão e a água tónica, e o vinho que me resta é o de caixa de cartão, cinco litros, que uso para os tintos de verano, mas como estou sem limão e também sem Seven-Up, bebo-o assim mesmo, carrascão, pesado no estômago, a arranhar o esófago e, a tempos, a provocar-me lágrimas nos olhos cansados de tanto olharem as montanhas em frente, com medo que fujam, mas que continuam no mesmo sítio, tentando sossegar-me Não vamos para lado nenhum! Descansa, e eu descanso, com as montanhas em frente, primeiro verdes já a correrem para um castanho dourado, que com o cair da noite se pintam de negro, iluminadas por pontos luminosos, como árvores de Natal, o meu presente favorito de todos os dias.
A televisão ligada na cozinha, vai-me informando sobre a guerra em Israel. Já quase não se fala da guerra na Ucrânia, que ainda não acabou, bem longe disso, aliás. Só que, em Israel e Gaza, mais imediata, mais intensa, muitas baixas e nomes novos para gáudio dos jornalistas cansados de cantarem sempre os mesmos nomes arranhados, isto até descobrirem que os nomes daquele Médio Oriente sofrido também são tanto, ou mais, arranhados, impossíveis de dizer por uma língua habituada a formar-se na ponta-da-língua e não no céu-da-boca nem na garganta.
Vou-me acostumando às guerras. As que se mantêm e as novas. Começo a consciencializar-me que, mais dia menos dia, chega aqui, às montanhas, à aldeia, a mim. Quer dizer, já cá chegou, no preço dos combustíveis, no preço das casas, no preço da comida, nos preços de tudo o que precisamos de comprar para viver, menos nos salários que continuam ridiculamente baixos, salários anões para gente que se queria gigante numa Europa das nações. Estou a preparar-me. Não com muito afinco porque não tenho grande coisa a defender para além do meu alpendre. Mas tenho uma espingarda. Cartuchos. Uma faca-de-mato. Garrafões de água do Luso. Conservas de Atum e Sardinha com molho picante. E inúmeros rolos de papel-higiénico. Também tenho muitos livros para ler que nunca irei ler. Um boletim do Euromilhões que registo todas as semanas e nunca me deu um único prémio.
E é também por isso tudo que estou com a neura. Não só por isso. Mas também. Um cansaço, esta vida.

[escrito directamente no facebook em 2023/10/09]

Deixe um comentário