Amor Fati

Ao ver o filme-colecção de Cláudia Varejão, Amor Fati, perco-me na estória das duas velhas, velhas tão velhas quanto Matusalém, velhas tão velhas como o próprio tempo, velhas tão velhas que já eram velhas quando a vida nasceu.
Vivem numa aldeia perdida lá para os lados de Montalegre, em Trás-os-Montes. Terra de gelo e neve e de um frio que corta. Terra de fantasmas e de lobos. Terra de misérias. A aldeia é deserta. Os seus habitantes emigraram para as terras de França, e os que não emigraram fugiram para a cidade, para o conforto do fogão elétrico, da água canalizada, quente e fria, do ar-condicionado e do Continente ali mesmo à mão de semear, ao fundo da rua, onde vai a TSF por uma boa estória.
As duas velhas vivem sozinhas numa casa também ela velha, de pedra, numa rua triste de Inverno.
As velhas são tão velhas que trazem a história do mundo marcada nas rugas da cara. Os dedos, deformados por anos de trabalho no campo, de enxada na mão, a tratar da criação, ao frio cortante da montanhas, esticam-se para a lareira. É assim que passam os serões. A lenha a crepitar na lareira, e o fogo a aquecer-lhes as mãos, que esfregam, ásperas de anos de maus tratos. Ali não há Nivea nem Atrix. Às vezes chegam-se à janela de alumínio e ficam ali assim, as duas, escuras como sombras diabólicas, a olhar para a rua, a olharem para o horizonte ou tão só onde a vista cansada abarca.
Não se ouve o som de uma televisão.
Não se ouve o som de um rádio.
Não se ouve o som de uma conversa.
As velhas dormem cada uma na sua cama. Camas de gente solteira. Camas pesadas. Camas de cabeceira trabalhada. Levantam-se todos os dias cedo. Lavam-se. Penteiam-se. Vestem as mesmas fardas pesadas pretas, andam sempre de preto e cabelo tapado. Saem à rua em dias de sol e passeiam-se por uma aldeia deserta. Elas e os seus cajados. Não são bengalas. São cajados. E lá vão. Uma ao lado da outra. Pé-ante-pé. Decididas. E onde vão, as velhas? Vão à missa. Todos os dias uma missa para lhes limpar a alma e justificar a existência. A missa deve ser o único entretenimento na vida daquelas velhas.
Regressam a casa já de noite. Não têm medo dos lobos? Uma delas carrega uma lanterna com que alumia o caminho. Sobre os ombros, uma capa. Levam uma capa e o cajado a bater no chão. Passada atrás de passada. A aldeia continua deserta. Deserta e silenciosa.
Chegam a casa e a iluminação é de vela. Não têm medo de provocar um incêndio? Deitam-se. Uma delas tosse. A outra tenta apagar a vela, na mesa-de-cabeceira, mas o fôlego já não é o mesmo. Ela sopra, sopra, mas nada acontece. Tem de se levantar, devagar, e aproximar mais da chama viva para, por fim, matá-la.
E, então, o inevitável acontece. Uma delas morre. Fica a outra. Sozinha. É amparada no funeral para andar mais depressa atrás do carro-funerário. Há horários a cumprir.
À noite está sozinha em casa. Ouve-se o vento lá fora. De resto, o silêncio reina e, agora também, a solidão. É comida para uma. Lareira para uma. Lugar à mesa para uma. Missa para uma. A velha come porque tem de comer. Por desfastio. Depois abre um pequeno libreto do funeral da outra velha. Mata já saudades. E, nos seus afazeres, agora também consta visitar o cemitério e manter limpa a campa da que morreu. E lá vai ela, cajado na mão, pé-ante-pé, a percorrer os caminhos frios, tristes e desertos. Os passeios nocturnos passam a ser também solitários. A lanterna ilumina só as passadas de uma velha.
Um dia, aquela aldeia vai ficar completamente deserta. Uma aldeia-fantasma.
Penso no filme, penso nesta estória das velhas e da solidão em que vivem, e pergunto-me se é assim que irei também acabar. Velho, sozinho, e à espera da morte?

[escrito directamente no facebook em 2023/12/20]

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