Afinal a morte não existe. Sei disso porque morri mas não morri, ainda aqui estou, de outra forma, numa outra dimensão, mas estou aqui a escrever como faço todos os dias.
Tudo começou quando dei um tiro na cabeça, vi o meu corpo tombar, a cara desfazer-se, sujar a parede da sala com sangue e o que eu julgo serem os miolos, e o quadro que T. me tinha oferecido, todo salpicado, tornado outra obra, uma obra samplada, e eu parado, em frente a mim próprio, a ver o estado lastimável do meu corpo caído sobre o sofá, ainda de revólver na mão, mas acho que vai cair para o chão não tarda, vejo o meu dedo ceder ao peso da arma.
Eu estou ali, desfeito, mas estou aqui e estou numa outra forma que se pode chamar, também, viva. Não sei se estou visível para as outras pessoas. Eu vejo outras pessoas. Outras pessoas como eu, pessoas que julgava mortas e que, afinal, também andam por aqui. Algumas delas já me disseram Olá!, mas tudo de uma forma tão natural que parece que nos encontrámos ontem. Já me cruzei com o meu pai. Foi um encontro bizarro. Afinal, era o meu pai. O pai do meu corpo. Mas cumprimentámo-nos como todos os outros, tudo muito leve, simples e natural.
Nunca imaginei que pudesse viver aqui tanta gente. Aqui em minha casa. A minha casa dele. Afinal a minha mãe tinha razão. Há muita gente a viver nos mesmos quartos que nós. Nós é que não nos vimos. Alguns de nós vêm-nos. Mas achamos que são maluquinhos, estão dementes ou são parvos.
Não sei o que é que vai acontecer agora. Alguém irá descobrir o corpo, talvez. Ou alguém irá dar pela minha falta. E o meu corpo há-de ser enterrado. Ou cremado. Não deixei especificações sobre o meu destino. Mas façam do meu corpo o que quiserem. A minha vida agora é outra e, para já, agrada-me.
Já não tenho de trabalhar para viver. Não precisamos de trabalhar. A vida neste plano é uma sucessão de momentos de lazer. O prazer parece ser o nosso alimento. Não há filmes nem quadros nem literatura nem música nem teatro como lá, aí, mas há a ideia disso. Aliás, há a ideia de todas as coisas. Mesmo do futebol. E é a ideia que é a existência de tudo. Da vida, da arte, da filosofia, da física, da origem do universo. Já sei coisas que nunca pensei vir a saber e, muito menos, a perceber. E sei que, com o tempo, vou conhecer ainda muito mais. Talvez descubra, finalmente, o mistério dos Buracos Negros.
Espero que consigam ter acesso a este meu testemunho, pelo menos estou a escrevê-lo no meu computador, no computador dele, como escrevia, numa folha do Word, em Arial regular com tamanho doze, para que me possam ler. Se quiserem, não é? Espero que possam apreciar o meu testemunho e que isso contribua para que percam o medo da morte e vivam melhor a vida. Eu vou tentar descobrir mais coisas e, logo que possível, virei transmiti-las.
Até lá, alegrem-se. A vida é o que é, e a morte é um mito.
[de qualquer forma é estranho ver-me ali assim, de cabeça desfeita, o corpo tombado, o revólver caído aos meus pés, eu tinha razão, ele ia cair, e não me ver a respirar, de livro na mão, a fumar um cigarro e a beber um copo de vinho. será que deste lado também se pode fumar? e beber vinho? e ter sexo?]
[escrito directamente no facebook em 2021/07/31]