A Morte Não Existe

Afinal a morte não existe. Sei disso porque morri mas não morri, ainda aqui estou, de outra forma, numa outra dimensão, mas estou aqui a escrever como faço todos os dias.
Tudo começou quando dei um tiro na cabeça, vi o meu corpo tombar, a cara desfazer-se, sujar a parede da sala com sangue e o que eu julgo serem os miolos, e o quadro que T. me tinha oferecido, todo salpicado, tornado outra obra, uma obra samplada, e eu parado, em frente a mim próprio, a ver o estado lastimável do meu corpo caído sobre o sofá, ainda de revólver na mão, mas acho que vai cair para o chão não tarda, vejo o meu dedo ceder ao peso da arma.
Eu estou ali, desfeito, mas estou aqui e estou numa outra forma que se pode chamar, também, viva. Não sei se estou visível para as outras pessoas. Eu vejo outras pessoas. Outras pessoas como eu, pessoas que julgava mortas e que, afinal, também andam por aqui. Algumas delas já me disseram Olá!, mas tudo de uma forma tão natural que parece que nos encontrámos ontem. Já me cruzei com o meu pai. Foi um encontro bizarro. Afinal, era o meu pai. O pai do meu corpo. Mas cumprimentámo-nos como todos os outros, tudo muito leve, simples e natural.
Nunca imaginei que pudesse viver aqui tanta gente. Aqui em minha casa. A minha casa dele. Afinal a minha mãe tinha razão. Há muita gente a viver nos mesmos quartos que nós. Nós é que não nos vimos. Alguns de nós vêm-nos. Mas achamos que são maluquinhos, estão dementes ou são parvos.
Não sei o que é que vai acontecer agora. Alguém irá descobrir o corpo, talvez. Ou alguém irá dar pela minha falta. E o meu corpo há-de ser enterrado. Ou cremado. Não deixei especificações sobre o meu destino. Mas façam do meu corpo o que quiserem. A minha vida agora é outra e, para já, agrada-me.
Já não tenho de trabalhar para viver. Não precisamos de trabalhar. A vida neste plano é uma sucessão de momentos de lazer. O prazer parece ser o nosso alimento. Não há filmes nem quadros nem literatura nem música nem teatro como lá, aí, mas há a ideia disso. Aliás, há a ideia de todas as coisas. Mesmo do futebol. E é a ideia que é a existência de tudo. Da vida, da arte, da filosofia, da física, da origem do universo. Já sei coisas que nunca pensei vir a saber e, muito menos, a perceber. E sei que, com o tempo, vou conhecer ainda muito mais. Talvez descubra, finalmente, o mistério dos Buracos Negros.
Espero que consigam ter acesso a este meu testemunho, pelo menos estou a escrevê-lo no meu computador, no computador dele, como escrevia, numa folha do Word, em Arial regular com tamanho doze, para que me possam ler. Se quiserem, não é? Espero que possam apreciar o meu testemunho e que isso contribua para que percam o medo da morte e vivam melhor a vida. Eu vou tentar descobrir mais coisas e, logo que possível, virei transmiti-las.
Até lá, alegrem-se. A vida é o que é, e a morte é um mito.
[de qualquer forma é estranho ver-me ali assim, de cabeça desfeita, o corpo tombado, o revólver caído aos meus pés, eu tinha razão, ele ia cair, e não me ver a respirar, de livro na mão, a fumar um cigarro e a beber um copo de vinho. será que deste lado também se pode fumar? e beber vinho? e ter sexo?]

[escrito directamente no facebook em 2021/07/31]

Romance Breve

Eu cheguei bem antes da hora porque estava nervoso. Nunca antes tinha ido a um blind date. Foi um arranjo da minha mãe que não gosta de me ver sozinho. Tens de arranjar um amparo, diz-me. E, já agora, alguém que te passe as camisas a ferro. A minha mãe preocupa-se muito comigo. Mesmo quando eu lhe digo que já tenho mais de cinquenta anos ela responde-me sempre que, para ela, serei sempre um miúdo com ranho no nariz e as camisas desfraldadas. Então havia a filha de uma amiga que estava solteira e…
Cheguei bem antes da hora porque estava nervoso. Ia encontrar-me com uma rapariga que não conhecia. E eu não gosto destas coisas mas, não posso dizer não à minha mãe, não é? Eu já ia no segundo gin quando a vi chegar. Quer dizer, imaginei que fosse ela. E era. E achei-a interessante. Visualmente, claro. Elegante. Vinha de vestido. Um vestido vaporoso, florido. Tinha os cabelos caídos sobre os ombros, lisos, castanhos, castanhos claros com manchas, talvez queimados do sol. Por detrás da máscara que ela trazia, e sim, ela vinha de máscara, imaginei uma miúda muito bonita e disse, para mim, Oh, mãe!
Ela chegou-se à minha mesa. Eu levantei-me. Perguntei-lhe se era ela, ela acenou com a cabeça, nervosa, ainda bem que estava nervosa para eu não me sentir tão sozinho, puxei-lhe a cadeira, ofereci-lhe o lugar e ajudei-a a sentar-se à mesa. Eu estava empolgado.
Sentei-me de novo à mesa. Sentia-me um pouco nas nuvens. Há muito tempo que não jantava com uma rapariga. Uma rapariga que me parecia muito bonita. Levantei o braço para o empregado e mostrei dois dedos, sem sequer pensar que ela pudesse não querer um gin. Bebi o resto do meu segundo de uma vez. Depois pus-me a falar. A falar conversas sem nexo mas que se seguiam umas às outras, encaixadas como peças de lego. Quando fico nervoso falo sem parar.
Chegaram os dois gins. Ela tirou a máscara e sorriu-me um sorriso de agradecimento pelo gin. Eu olhei-a sem a máscara e posso dizê-lo, apaixonei-me. Era linda. Lindíssima. Maravilhosa. Deve ser isto que chamam amor à primeira vista. Fiquei sem ar. Os batimentos cardíacos aceleraram. Senti as mãos transpiradas e o estômago às voltas. Eu estava já apaixonado. Levantei o gin e provoquei um brinde. Tocámos com os copos um no outro e bebericámos. Quer dizer, ela bebericou. Eu engoli um gole enorme.
Tive uma ideia. Levantei-me da mesa e disse-lhe É só um segundo. E saí rápido do restaurante. Cheguei à rua e cruzei a estrada para o outro lado, para a florista. Corri para a porta, empurrei-a e ela não se mexeu. Bati com a cara na porta. A florista estava fechada. Olhei em volta. Doía-me a cara, mas não fiz sangue. Não parti o nariz por sorte. Vi uma pedra de basalto da estrada um pouco levantada. Agarrei nela. Puxei-a. Puxei-a com força. Insisti. Consegui agarrá-la. Levantei-a e mandei-a contra a montra da florista. O vidro quebrou-se em vários pedaços, grandes pedaços, pedaços que caíram no chão e estilhaçaram-se. Eu entrei dentro da florista. Agarrei num molho de rosas, o primeiro molho de flores que vi, rosas vermelho escuro, e levei-as comigo. Os pés das rosas, cheios de picos, iam-me rasgando a pele da mão. Os pingos de água iam caindo à minha frente, e eu voltava a cruzar a estrada e entrava, de novo, no restaurante.
Cheguei à mesa e estendi-lhe a mão sangrada com o ramo de rosas vermelho escuro molhadas. Ela agarrou nas rosas, voltou a sorri-me e disse Obrigada!
E eu parei. Algo não batia certo. Aquela voz não era daquele corpo, daquela cara, daquela boca. E ela voltou a dizer És muito simpático. E eu percebi que ela era um filme mudo tornado sonoro. As coisas não ligavam. A magia perdera-se. Aquela voz tinha-me tirado a tesão. Desapaixonei-me. Desculpei-me e saí do restaurante. Disse-lhe Desculpa! E fui-me embora. Ao chegar à rua vi o carro da polícia a parar frente à montra partida da florista. Eu meti a cabeça para baixo, e fingi não estar ali enquanto ia indo ao longo do passeio para longe da florista, do restaurante e dos blind dates organizados pela minha mãe. Afinal, já tenho mais de cinquenta anos.

[escrito directamente no facebook em 2021/07/30]

Nada É como Esperamos que Seja

Parei na churrasqueira a meio do caminho. Já era tarde e, àquelas horas, já não havia muito trânsito na minha direcção. Ia chegar depressa a casa. Pedi um frango assado, que afinal era no espeto, difíceis de encontrar, uma raridade nos dias de hoje, o que me deixou empolgado, gosto muito de frango no espeto, e acrescentei ao pedido uma dose de batatas fritas, daquelas a sério, descascadas na casa e fritas no momento. Àquela hora chegaria depressa a casa e ainda conseguiria comer as batatas estaladiças.
Tudo começou quando cheguei ao carro e descobri um pneu furado. O pneu da frente, do lado direito. Porra!
Pousei as caixas com o frango e as batatas em cima do carro e fui buscar o macaco. Custou mas, ao fim de algum tempo, lá consegui enfiar o ferrinho no buraco e levantar o carro. Fui buscar o pneu sobresselente, mais pequeno, com uma faixa amarela ao longo da roda, uma marca incriminatória, que gritava Este gajo teve um furo! com toda a gente a olhar para o carro e, consequentemente, para mim. Porra!
Primeiro sujei as mãos. Depois as sapatilhas brancas de lona. Já não voltariam a ser brancas. Por fim os calções, que eram pretos e não se notava muito e a t-shirt, onde o Corto Maltese, motivo na minha t-shirt branca, acabara de ganhar um bigode farfalhudo.
Limpei as mãos aos calções pretos e acendi um cigarro. Fumei o cigarro depressa porque estava nervoso. Deitei-o fora ainda tinha um bom terço para fumar. Mas queria ir-me embora. Queria despachar-me. Queria chegar depressa a casa. Arranquei o carro, ouvi um ligeiro barulho e disse, alto, para mim próprio, O frango! Parei o carro, saí e apanhei as duas caixas, a do frango e o das batatas. Não se abriram. Depois lembrei-me As batatas! Tenho de me despachar. Arranquei.
Ao fundo da descida, e logo depois da ligeira curva à esquerda, a Brigada de Trânsito numa operação Stop. Porra!
Mandaram-me parar. Abri o vidro. Por detrás da máscara, o guarda dizia A máscara! e eu não percebi logo à primeira. A máscara! e eu disse Não percebo! O guarda desceu a máscara sobre a cara, colocando-a abaixo do queixo, e disse, para mim, muito devagar para que eu percebesse A máscara! E eu perguntei A máscara? e o guarda respondeu Sim, a máscara, porra! Ponha a máscara! Ah!, disse eu enquanto levava a mão ao guarda-luvas, agarrava na máscara e colocava-a na cara. Os documentos, pediu. Lá entreguei os documentos. A Carta está caducada, disse o guarda. Está mas não está. Está caducada mas por causa da pandemia está válida até ao final do ano. E, de qualquer maneira, está lá escrito que tem validade até dois mil e trinta e dois. Sim, disse ele, A Carta, não você! Você? pensei eu. Já tem mais de cinquenta anos, tem de revalidar a Carta, disse. Sim, eu sei, e estou a tratar disso. E depois lembrei-me do papel que me tinham dado no IMT e fui buscá-lo à gaveta debaixo do tablier. Entreguei-o ao guarda. Ele leu tudo com muita atenção. Depois entregou-me o papel. Fez-me continência e disse Boa-tarde! e eu presumi que pudesse ir-me embora, e fui.
Estava quase a chegar a casa, quando vi umas luzes a girar no céu. Era quase de noite, estava já bastante escuro e, as luzes das ambulâncias e do carro da polícia lá mais à frente, viam-se à distância. Uma fila. A andar a passo de caracol. Primeiro passaram os carros que vinham de lá. Depois começaram a passar os carros que vinham da cá. E eu também passei. E ao passar vi que era um acidente. Estava uma motorizada enfiada debaixo de uma carrinha. A carrinha estava espetada no muro de uma casa. Havia um corpo caído na estrada. O corpo ainda se mexia. Senti-me agoniado. Não vomitei. Desviei o olhar, zangado comigo próprio por não ter desviado o olhar mais cedo. Porra!
Segui em frente. Até casa.
Cheguei a casa e guardei o carro debaixo do telheiro. Agarrei nas caixas do frango e das batatas fritas e fui para casa. Entrei dentro de casa. Pousei as caixas na bancada da cozinha. Pus a mesa para uma pessoa: eu! Abri o frigorífico e agarrei em duas minis. Abri a primeira e bebi-a de uma só vez. Abri a segunda. Sentei-me à mesa. Abri a caixa do frango. Agarrei numa perna. Estava fria. Porra! Abri a caixa das batatas. Estavam cruas e, ao mesmo tempo, cozidas. Cruas porque não fritaram completamente. Cozidas porque vieram quentes dentro de uma caixa fechada e, depois de todo este tempo, tinham cozido. Levantei-me e coloquei-as no caixote do lixo. Agarrei na perna, à mão, e comi-a. Despejei a segunda mini. Procurei na caixa do frango pela segunda perna e não a encontrei. Porra! Ainda por cima o frango era coxo.
Acendi um cigarro, agarrei no computar e resolvi chorar as minhas mágoas numa folha em branco do Word. Tudo começou quando parei na churrasqueira a meio do caminho.

[escrito directamente no facebook em 2021/07/29]

Hora de Recreio

Chego ao cimo da montanha. Vim cá outra vez. Preciso vir cá de vez em quando. Preciso de me cansar. Cansar as pernas. Preciso de sentir o ar rarefeito e provocar os pulmões. Preciso de olhar este horizonte longínquo que me leva para além de todos os limites. Hoje consigo ver o mar, acho. Gosto desta solidão e deste silêncio que é constantemente cortado com os sons das motorizadas a espremerem os motores nas estradas do vale e que sobem pela encosta acima e me vêm encontrar aqui sentado, como estou agora, nesta pedra que é uma rocha, ou pedaço de uma rocha, que nem sei o que é que está enfiado na terra, e só vejo este cabeço onde sento o cu e fumo um cigarro como estou a fumar agora. Gosto deste silêncio entre um barulho e outro.
O tempo está bom. Este final de dia está bastante agradável. Ainda está calor. Vejo o céu púrpura no horizonte, no mar, na linha da costa onde ficam a Nazaré, o Vale Furado, as Paredes, São Pedro de Moel. Esteve assim quente o dia todo. Por isso não encontrei ninguém na minha subida solitária. Foi tudo para a praia. Anda tudo a vingar-se da praia que não viveu o ano passado por causa da pandemia. Este ano também há pandemia mas, existe esta sensação de fim de ciclo que ameniza as coisas. As vacinas, as máscaras, o Certificado, a imunidade de grupo, tudo isto está a contribuir para esta sensação de libertação. As pessoas já não aguentam mais estas ordens restritivas e, por vezes, tão contradictórias. Tento imaginar como reagiriam, estas pessoas, estas mesmas pessoas que se têm revoltado contra as restrições, e a imposição da máscara e a vacina, todas estas manifestações, estas quase-acções de guerrilha, o confronto com a autoridade, como é que reagiriam se estivessem realmente numa guerra, debaixo do poder autoritário de alguém, ou sob o domínio discricionário de alguém. Se não estivessem numa democracia que lhes permite os actos de resistência, de contestação, de zanga pública, como é que reagiriam?
Gosto de fumar aqui o cigarro sozinho. Gosto de ver as cores pelo que o horizonte vai passando ao longo do lusco-fusco. Cada um tem as auroras boreais que consegue ter.
De todas as vezes procuro a minha casa. Nunca a consigo encontrar. Mas ela deve estar por ali, na distância, a direcção é aquela, mas a distância deve estar para além do que a minha vista alcança. Imagino-a ali, depois daquelas árvores, na continuação daquela estrada, aquela é a estrada que passa lá por casa, não é?
Apago o cigarro na rocha. Tiro uma garrafa de água da mochila. Bebo um bocado. Guardo a garrafa. Levanto-me. Inspiro. Sorrio. Às vezes sinto-me bem. Não é muito comum mas, às vezes, só mesmo às vezes, sinto-me bem, como se não tivesse nenhum problema e a vida fosse um mar de rosas.
Começo a descer. Já vou com fome. Tenho de pensar no que é que vou fazer para comer quando lá chegar a baixo. Qualquer coisa rápida. Qualquer coisa que possa comer antes de ficar insuportável comigo mesmo.

[escrito directamente no facebook em 2021/07/28]

Treze Anos

Como era eu aos treze anos? Como era a minha vida quando eu tinha treze anos?
Estaria no final dos anos setenta. Talvez no sétimo ano. Talvez a chumbar no sétimo ano. Os meus treze anos foram complicados. Acho que fumei o meu primeiro charro aos treze anos. Acho que tive a minha primeira experiência sexual aos treze anos, uma coisa horrível que acabou antes de começar. Acho que fui trabalhar nas férias por ter reprovado. Acho que gastei o dinheiro ganho nos meses de férias a trabalhar em discos, livros e banda-desenhada, porque já vinha de trás este meu prazer pela leitura. Talvez estivesse a entrar no universo de Harold Robbins, sim, talvez. Sim, aos treze anos já não lia Os Cinco, Os Sete, As Gémeas, O Colégio das Quatro Torres, a Colecção Mistério. Acho que foi aos treze anos que descobri as estórias fantásticas do Harold Robbins. Tenho vontade de lá regressar. Vou voltar a gostar? Já não me recordo da escrita mas lembro-me que ficava altas horas da madrugada a ler e a minha mãe, depois de acordar já de madrugada e vendo a luz do meu quarto acesa, me mandava um berro para me deitar, e eu lá me deitava contrariado.
Aos treze anos acho que já mentia aos meus pais para sair à noite com os meus amigos. Para fazermos merda. Assaltarmos casas devolutas, saltarmos das alturas em estaleiros de casas em construção, irmos à fruta às quintas vizinhas, às festas dos santos em Agosto, não por causa das miúdas mas por causa das sardinhas assadas, dos frangos de churrasco e dos matraquilhos.
Aos treze anos acho que roubava dinheiro da carteira dos meus pais para ir à Feira de Maio andar nos carrinhos-de-choque e comer farturas, já então, do Penim.
Aos treze anos, acho que também já tinha andado de skate, num skate com tábua de plástico (ainda não eram tábuas) e com um ligeiro levantamento à frente, talvez para ajudar aos flic-flacs, comprado numa qualquer ida a Badajoz, porque de Andorra tinha vindo o gravador Sanyo onde, mais tarde, carregaria em duas teclas, no Play e no Rec, para gravar os programas do António Sérgio.
Aos treze anos acho que ainda não tinha uma namorada a sério, mas já tinha tido algumas experiências. Mas aos treze anos queria mesmo era jogar à bola no campo do colégio para onde íamos jogar depois de saltar o muro.
Aos treze anos já gostava muito de ver filmes, mas ainda não era o gosto do cinema, era tão só, ainda, o prazer de ver filmes, que me levava várias vezes por semana ao Teatro José Lúcio da Silva, verdadeiro manual cinematográfico onde aprendi a ver cinema do mundo, mas só mais tarde.
Aos treze anos, acho que ainda não tinha feito nada de jeito com a minha vida. Nada de memorável, pelo menos. Hoje, já depois de passar dos cinquenta, continuo sem ter feito nada de relevante da minha vida. Mas nós, os irrelevantes, os que não fazemos nada de importante, somos a maioria que faz o barco navegar e projectar aqueles que são realmente os bons. Se não houvesse os medíocres e os medianos como eu, como é que sabíamos da excelência dos excelentes?
Nos Jogos Olímpicos de Tóquio 2020, realizados em 2021 por causa da pandemia, houve um pódio de skate street ocupado por meninas de doze, treze e dezasseis anos. As de doze e dezasseis eram japonesas. A de treze era brasileira. Mas o que me chamou mais a atenção, foi o prazer com que a brasileira, Rayssa de seu nome, se lançou à prova (as outras também mas, a Rayssa…). ainda não corrompida pelos patrocínios e patrocinadores e treinadores e pela competição e tudo aquilo que, mais tarde, nos rouba o prazer verdadeiro da coisa. Rayssa Leal, a Fadinha do Skate, ainda tem esse prazer. E espero que o mantenha por muitos e bons anos. Dá gosto ver uma competição onde, na verdade, mais que competir, há prazer e diversão. Que é o que se deve ter aos treze anos. Aquele sorriso é verdadeiramente apaixonante.

[escrito directamente no facebook em 2021/07/27]

Uma História Tem Várias Versões

Os imbecis dobram a história à versão que lhes convém. Sobrelevam o que pretendem e menosprezam o que não lhes interessa. A história era feita pelos vencedores. Mas também pelos sofistas. Agora, cada vez mais. Não importa se aconteceu. Importa que se diga. E que se diga de forma cabal, peremptória e definitiva. De preferência com exemplos, muita bibliografia, muita dela não-existente, outra falsa e outra ainda que não tenha nada a ver, que importa? Quem vai confirmar os dados? Quem vai ler os calhamaços lançados para a praça pública como argumentos validados para comprovar a veracidade do que se sabe ser falso? A verdade não é o que realmente aconteceu. A verdade é o que se consegue vender. Dizer é meio caminho para acontecer, na ponta da língua das víboras.
Não vou entrar em debate. Muito menos em minha casa.
A história tem sempre, pelo menos, dois lados: o dos vencedores e dos vencidos. E as histórias não são nunca a preto e branco. Nada é tão simples que se possa defender ou atacar com Sim ou Não, Certo ou Errado, Dia ou Noite. Numa grande parte dos casos não deveríamos conseguir sair do Talvez, do Sim, mas ou do Não, contudo… Mas isso é demais para quem quer acreditar em fantasias, teorias da conspiração e falácias. A verdade quer sempre donos. Para quem acha que a história é tão simples e linear como um bitoque (e se há mil-e-uma maneiras de apresentar um bitoque!), um bife com ovo estrelado por cima, uma mão-cheia de batatas fritas, uma concha de arroz e um pouco de salada. O bife pode ser mal, médio ou bem passado. Fino ou grosso. Grelhado ou frito. Pode ser de vaca, porco, peru ou frango. Já houve um tempo em que era de cavalo. Em Moçambique podia ser de antílope mas é proibido. O ovo pode ser mais ou menos estrelado, com a gema líquida ou seca. O arroz pode ser branco, com cenoura ripada ou aos cubos, com couve lombarda e toucinho e até feijão, preto, vermelho, castanho, manteiga, branco ou frade. Alface, tomate e cebola. Agrião. Rúcula. Ou nada disto. Qual é o verdadeiro?
Acreditamos no que queremos acreditar. E aceitamos ou não. Mas a História é o que foi, ou que achamos que foi, com mais ou menos certeza, e normalmente à luz de uma actualidade que não é a mesmo dos factos. Há acções que se sobrepõem a outras. O geral tende a sobrepor-se ao particular. Um homem são muitos homens. E o lado de onde se olha tende a dobrar os factos a esse olhar. A História também é construída. Tem uma narrativa.
O que torna um homem um herói e, ao mesmo tempo, um facínora? Talvez a complexidade daquilo que somos. Não somos só uma coisa. Não temos só uma leitura. Somos uma miríade de ideias, vontades e desejos. Cada um deles fruto da sua época. A História irá, mais tarde, louvar ou condenar. E talvez mais tarde ainda, mudar tudo outra vez. Há uma eterna releitura. Não há certezas, mesmo que certos sejam alguns factos, acontecimentos e acções. Há momentos e reacções. E a análise do tempo e da perspectiva. E a dúvida. Sempre a dúvida.

[escrito directamente no facebook em 2021/07/26]

Otelo

Eu ia a conduzir um Renault Clio. Ao meu lado, Ève. Não a conhecia. Tinha-me sido apresentada umas horas antes. Era mais um trabalho. Um trabalho como os outros. Servir de motorista, guia, eventual tradutor e tudo o mais que fosse necessário. Ela era francesa. Não falava uma palavra de português. Estava a recolher material para escrever o argumento de Os Capitães de Abril que Maria de Medeiros viria a realizar. Eu iria levá-la onde ela quisesse ir.
Naquela noite estávamos a caminho da casa de Otelo Saraiva de Carvalho. Íamos dentro de um Renault Clio, os Renaul Clio eram, na altura, as novas 4L, iam a todo o lado, andavam por todos os caminhos, consumiam pouco e quase nunca avariavam, a seguir um BMW pelo meio da mata. Estava uma noite de temporal. Chovia e fazia vento. Eu ouvia-o a assobiar. As árvores abanavam à nossa passagem e, por vezes, não conseguia ver nada à frente. As escovas limpa para-brisas não se mexiam à velocidade necessária para afastar a carga de água que se abatia sobre nós. Eu ia fixado nas luzes vermelhas do carro que seguia. Para não nos perdermos. Cheguei a pensar estar num filme do American International Pictures, realizado pelo Roger Corman, mas não, seguia um carro pelo meio da mata em noite de tempestade para levar Ève ao encontro de Otelo.
Ao fim de algum tempo, um tempo que me pareceu demasiado e demasiadamente dentro da mata, longe de tudo, longe da vista e da audição dos outros, bem poderia gritar por socorro!, longe da civilização, numa terra de segredos bem escondidos, enterrados no meio da mata, lá encontrámos uma casa. Havia uma pequena luz a sinalizá-la. O BMW parou junto ao muro que separava os terrenos da casa daquele caminho de terra batida. Eu parei atrás do BMW. Vi alguém a sair do BMW e correr debaixo de chuva para a casa e a fazer sinal com a mão, Venham! Venham!, para nós o seguirmos. Ève saiu do carro e correu atrás dele. Eu segui-a. Alguém já tinha aberto a porta de casa. O homem estava a limpar o rosto a uma toalha. Foi estendida outra a Ève e uma outra a mim. Entrámos dentro da casa. E então percebi que o homem no BMW era o próprio Otelo Saraiva de Carvalho. Ele apresentou-se. Eu apresentei-me. Apresentei Ève. Sentámo-nos numa sala com lareira. A lenha crepitava. Estava agradável. Despimos os casacos. Sentámo-nos nuns sofás. Trouxeram-nos chá quente. O Otelo libertou-nos das tensões do lugar e da tempestade e pôs-nos à vontade. Ele estava em casa. E a casa dele era nossa.
Ève começou a falar com ele. Eu estava atento e ajudava quando alguém emperrava nalguma ideia. Como se diz?… O que é que quer dizer?… Não sei se percebi…
Eu estava ali. Estava numa nota de rodapé de um capítulo da história. Não sabia o interesse futuro de tudo aquilo. O interesse da minha pessoa para o futuro. Quem era eu? Ninguém. Nada. Fui só encontrado na curva do tempo. Por sorte. Ou azar. Mas que importava o futuro, naquele momento? Aquele momento era o presente e havia lá melhor presente que o presente?
As horas passaram. Não sei quantas. O tempo foi fugindo e, então, era tempo de regressarmos. Eu e Ève despedimo-nos. Na rua, continuava a chover. Corremos para o carro. Abri as portas. E então, o descalabro. Um pneu furado. Mandei Ève de regresso à casa. Pus-me a mudar o pneu. A tentar. O carro não trazia macaco. Fui pedir um ao Otelo. Só tinha o do BMW. Tentei utilizá-lo no Clio. Não consegui. Era como enfiar o Rossio na Betesga. O Otelo tirou o casaco, arregaçou as mangas da camisa, e pôs mãos-à-obra. E lá arranjou maneira de conseguir levantar um Clio com o macaco de um BMW. Trocámos o pneu. Agradeci.
Enquanto íamos embora, de regresso a Lisboa, não parava de pensar no que tinha acontecido. Não na conversa de Ève com Otelo, não nas histórias do 25 de Abril contadas na primeira pessoa por alguém que tinha de facto participado na História, mas no facto dele se ter posto à chuva para mudar o pneu furado de um Renault Clio de alguém que não fazia parte da história. De mãos nos bolsos, eu olhava a desenvoltura com que um ex-militar, responsável pela minha liberdade, metia as mãos no trabalho. E como transformava o meu destino. Naquela noite eu iria regressar a Lisboa graças a alguém que também tinha permitido que eu estivesse ali, naquele sítio, àquelas horas da noite, para saber histórias que ninguém proibia de saber. E só isso me manteve de sorriso idiota plantado na cara, a pensar nas voltas que a vida dá.

[escrito directamente no facebook em 2021/07/25]

Regras Estúpidas

Eu não estava a perceber. Às vezes tenho dificuldade em perceber coisas estúpidas. Tenho um cérebro selectivo que bloqueia coisas estúpidas, problemas com as finanças e com a segurança social.
Estávamos a olhar um para o outro. Ela à espera da minha resposta. Eu sem perceber o que é que ela queria. Mas ela queria uma resposta? Não era bem uma resposta. Era uma confirmação. Queria que eu lhe mostrasse o Certificado de Vacinação Covid. Eu respondi Sim, tenho o Certificado. Mas eu estou cá dentro. Já estou cá dentro. E não há mais dentro para eu entrar.
Ela ficou parada, muito séria, a olhar para mim. E disse Tem razão, e continuou Mas eu preciso de ver o Certificado.
Eu bufei. Bufo muitas vezes quando perco a paciência com coisas estúpidas. Esta era uma delas. Uma coisa estúpida. A culpa não era da rapariga. A culpa era das regras estúpidas feitas a eito, em cima dos joelhos e sem serem pensadas.
Ai, que caralho! foi o que me saiu. A rapariga murmurou qualquer coisa. Murmurou qualquer coisa entre dentes. Não deve ter gostado da minha caralhada. Ouvidos sensíveis. Também eu sou sensível e tenho que gramar com a estupidez das regras e da falta de bom-senso das pessoas. Agora já estava a ficar irritado com a rapariga embora soubesse que a culpa não era dela, e ela pudesse ter outra atitude.
A história era simples. Eu tinha entrado no Centro Comercial Fórum, em Coimbra. À entrada, assisti a uma fila interminável de pessoas que esperavam, estoicamente, para entrar dentro da Primark. Raios os partam! Eu circulei pelo Centro Comercial. Segui as setas. Tive de me desviar inúmeras vezes de pessoas que ignoravam as setas de sentido. Vi umas montras. Entrei numas lojas. Tive de esperar à entrada de outras que só aceitavam dois clientes de cada vez. Clientes que se passeavam dentro das lojas e saíram de mãos a abanar. Eu também lá acabei por entrar e sair de mãos a abanar. Ia à procura de coisas concretas. Coisas que não havia. E tive de esperar para entrar. Esperar por gente que se passeava, de mãos atrás das costas e cigarro ao canto da boca. Estou a brincar. Não tinham o cigarro ao canto da boca. Mas alguns deles, homens, passeavam-se com as mãos atrás das costas. À patrão!
Deu-me a fome. E quando me dá a fome, tenho comer. Da mesma forma que quando tenho vontade de urinar, urino. E já o tinha feito. Já tinha urinado. E então, cheguei-me ao Wok to Walk. Fiz o pedido. E a rapariga deixou-me fazer o pedido, que não registou, e depois pediu-me o Certificado de Vacinação Covid. No início não percebi. Depois percebi mas não encontrei lógica no pedido. Eu já estava dentro do Centro. Ninguém me iria pedir para sair. Não ia entrar para dentro do restaurante porque o Wok to Walk não tem restaurante. É uma kitchenette onde agarramos uma bandeja com o prato e vamos comer algures, onde houver lugar vago entre McDonalds, Pizza Hut, Pans e Companhia e A Portugália. E a rapariga ainda se justificou com É Sábado! Eu sei que é Sábado, disse. Mas eu não quero entrar para dentro de nada, aliás vocês não têm dentro para eu entrar. Só quero um prato com comida. Eu fico aqui onde estou e onde posso ficar e vocês estão aí onde estão e devem ficar. Estamos todos de máscara, eu já estou vacinado, duplamente vacinado e tenho o Certificado. Mas é estúpido este pedido porque eu não quero entrar em lado nenhum.
Ao meu lado ouvi Vá lá. Mostra o certificado. Deixa-te de merdas.
Voltei a bufar.
Mostrei o Certificado de Vacinação Covid. E perguntei ’tá a ver? Tenho Certificado. E ela respondeu ‘tá a ver? Não custou nada.
Oh, que porra de gente! Tudo só para me chatearem. O Costa quer é que me chateiem.

[escrito directamente no facebook em 2021/07/24]

O Marido Desaparecido da Minha Prima

Ela apareceu-me cá em casa para me dizer que o marido tinha desaparecido. E para me perguntar o que é que deveria fazer. Eu imaginei-me num escritório sombrio e com cheiro a mofo e a tabaco frio, esticado numa cadeira de espaldar e com os pés em cima da secretária, uma garrafa de whiskey barato a servir de pisa-papéis na mesa e um cigarro nas mãos, a fumegar para o tecto. Ela seria loira, de peitos generosos e um grande decote a não permitir fantasias. O real convém ser real. Ou não fosse ela minha prima, uma prima quase irmã, criados juntos e com férias juntos na praia. Conhecia-a bem. Não importa se foi com ela que dei os primeiros beijos de língua, para experimentar, claro, nem se foi ela também, a primeira mulher que vi nua, se bem que, na época, ainda não era mulher, nem tinha aqueles seios que tem agora, especialmente depois de ter sido mãe, era uma miúda apenas, como eu miúdo, partilhávamos a idade, os desejos e as descobertas.
Agora, eu não estava no escritório de um policial noir, estava no meu alpendre, descalço e de calções, um copo de gin numa mão e um cigarro na outra, a única coisa verdadeira naquela imaginação toda. Sim, tenho sempre um cigarro nas mãos.
Então o teu marido desapareceu? perguntei-lhe, mas sem grande interesse.
Ela estava chorosa. Disse um Sim! que se arrastou entre os soluços, o choro e o ranho, que normalmente acompanha o choro.
Perguntei-lhe Queres beber alguma coisa? e ela abanou a cabeça. Nem era dela, não aceitar um copo, especialmente de graça. Devia estar realmente preocupada. Mas olha, prima, quem não estava preocupado era eu. Porque raio vieste aqui? perguntei-lhe.
Ele devia dinheiro de jogo a uns romenos, disse. Ah! pensei eu cá com os meus botões que, pensando bem, não tinha nenhuns. Se há romenos não pode haver polícia, não é?
E o que é que queres de mim?, perguntei-lhe.
Tens muitos conhecimentos. Conheces muita gente. Muita gente de muitos lados, disse ela de uma vez. Os pontos fui eu que os pus para aligeirar a escrita pois, a conversa, foi feita sem regras gramaticais e, às vezes, com a sintaxe toda fodida. Ela estava nervosa, é o que era.
Eu disse-lhe Tenho de ir buscar um caderno para apontar os factos. E a verdade é que tenho mesmo de apontar tudo senão esqueço-me. Tenho andado com dificuldade em lembrar-me de coisas. Ultimamente utilizo o alarme do telemóvel para me lembrar do que tenho de fazer. Então, levantei-me, passei-lhe o copo de gin para as mãos e disse-lhe Vai bebendo!, e pensei que quando era nova, bem mais nova, era uma esponja. Às vezes bebia mais que eu e eu acabava mais depressa bêbado que ela. Foi assim que fomos várias vezes ao mar de madrugada, bêbados, nus, parvos, para eu curar a bebedeira e entrarmos em casa sem a minha mãe dar pelo nosso estado. Pelo meu estado, vá!, que ela era a menina querida da minha mãe. A filha que não tinha tido. Dei-lhe o copo de gin para as mãos e saí do alpendre, entrei dentro de casa com o cigarro a fumegar nas mãos e fui à sala.
Entrei na sala e olhei em volta. Sentei-me no sofá. Apaguei o cigarro no cinzeiro sobre a mesa de apoio. Olhei em volta e perguntei-me O que é que estou aqui a fazer? E não me conseguia lembrar o porquê de ter ido à sala. De repente vi a lente dos óculos estilhaçada, em frente do olhar aparentemente calmo do Dustin Hoffman, no poster do Straw Dogs de Sam Peckinpah que mandei emoldurar e pendurei na parede da sala. Gosto muito daquele filme. É um dos filmes da minha vida. Penso muitas vezes naquela violação da Susan George, violação crua e brutal que depois se transforma noutra coisa. Lembranças, lembranças. E no fim do gangbang (eram quantas, as bestas? duas? três?…) a metamorfose do pacato matemático num Rambo estratégico. Que filme!
Levantei-me e fui à prateleira dos dvds. Procurei na ordem alfabética dos realizadores. Entre vários do Sam Peckinpah, lá descobri o Straw Dogs. Coloquei-o no leitor. Liguei a televisão. Voltei a sentar-me no sofá. Acendi um cigarro. E deixei-me levar.
Ainda é um grande filme. Há uns anos fizeram uma remake. Uma merda! Para quê remake quando o original é uma obra-prima?
Estava o Dustin Hoffman a despedir os operários que lhe estariam a arranjar a casa, eles em cima do telhado e ele em baixo a gaguejar, quando ela apareceu na sala. A minha prima.
Onde é que te meteste? perguntou. Tinha-me esquecido dela. Tinha-me esquecido completamente. Dela e do marido desaparecido e dos romenos. Pus o filme em pause, acendi um cigarro, olhei para ela e disse Sim?…

[escrito directamente no facebook em 2021/07/23]

Ai Weiwei

Cruzei-me com o Ai Weiwei na Cordoaria Nacional, ali na Avenida da Índia, em Lisboa. E cruzei-me com uma sua fase bem política e activista, mesmo militante, agressiva, muito crítica da China e do tratamento que o mundo ocidental dá aos milhares de refugiados que tentam sobreviver ao inferno para conseguir chegar a um pedaço de terra que lhes garanta um pequeno futuro, um pequeno sonhado paraíso. Não deixa de ser irónico que as obras de Ai Weiwei sobre os barcos de refugiados tenham assentado arraiais precisamente na antiga fábrica de cabos, cordas, velas e bandeiras que equipavam os navios portugueses. Outros tempos, outras viagens.
Este Rapture, assim se chama este encantamento de horrores, começa logo por ser um festival de cinema tal a quantidade de filmes que estão em loop, mostrando as desgraças do nosso tempo, a tristeza de ser vivo em locais de morte, a esperança de alcançar o Éden em terras que os escorraçam, o anseio por mudanças e a desilusão do presente. Ai Weiwei é um observador atento de tudo isto. Os seus filmes denunciam o estado das coisas, os crimes, a falta de empatia, o nojo aos outros e aos próprios quando não são iguais. Os filmes de Ai Weiwei falam das botas opressoras.
Dos seus filmes, um deles, dividido em três partes, especialmente duro, embora eles sejam todos duros, fala de ausências. Uma das partes chama-se Floating e é sobre um pequeno barco de borracha abandonado que Ai Weiwei encontra à deriva no meio do mar. Outra parte chama-se On the Boat e Ai Weiwei faz-se filmar dentro do pequeno barco, ele e as coisas que lá foram abandonadas, e revive o que terá sido a vida daquela gente, daquela gente que esteve naquele pequeno barco de borracha encontrado à deriva no meio do mar, cujo horizonte nunca enxerga terra. O que terá acontecido àquela gente? Terão sido salvos por alguma fragata? Terão caído ao mar? Entre os objectos lá encontrados, está um biberão. A vida e (talvez) a morte, de conluio.
Este encontro que tive com a figura impressionante deste chinês do mundo, habitante do português Alentejo, este chinês que já tem galinhas para cuidar, e foi imortalizado em cortiça, numa peça intitulada Brainless Figure in Corth, produzido pela Corticeira Amorim, também me deslumbrou com a criação de momentos do seu encarceramento numa prisão secreta na China, momentos esses recriados a três dimensões na reprodução da sua cela, em escala ligeiramente mais pequena, obra em seis partes, seis caixas, intitulada S.A.C.R.E.D. onde Ai Weiwei mostra vários planos da sua vida sob vigilância total, onde foi interrogado e vigiado, vinte e quatro horas por dia, enquanto dormia, tomava banho, cagava.
Na Cordoaria, enquanto somos perseguidos por uma serpente voadora feita de mochilas, Snake Ceiling, e somos assombrados com os seus papagaios de papel, inúmeros (lembram-se dos candeeiros de papel, redondos, comprados nas lojas chinesas?), e pelos animais do zodíaco chinês, também em versão banhada a ouro, chegamos ao topo do edifício e encontramos um mural em azulejo português, onde estão desenhados vários momentos da vida dos refugiados e a sua caminhada, projecto complementar de outro que está no topo oposto e que terá servido de guia para este, Odyssey e Odyssey Tile.
Os olhos de Ai Weiwei vêm. O coração sente. E as suas palavras não têm medo dos significados.
A meio da sala está a reprodução, num tapete, do traçado das lagartas de um tanque de Tiananmen, o Tank Print. E, em cada um dos lados, junto ao murais, a caminho deles, dois gigantescos barcos cheios de gente. Gente com direito à vida e ao sonho.
Mas nem só de desgraças humanas vive este Rapto. Ai Weiwei também tem humor, bem retratado num enorme rolo de papel higiénico em mármore, Marble Toilet Paper, o objecto que melhor reflete os primeiros dias da pandemia da Covid-19; as bolas para o ânus em jade, Sex Toy; o pirete, inúmeros piretes, dedos do meio bem em riste, fotografados em frente aos centros do poder mundial; e o seu travestismo num videoclip de metal que retrata o seu cativeiro às mãos da tirania de Pequim.
Duas outras obras reflectem momentos importantes da história pessoal e da história colectiva chinesa: a colecção de cabides que lhe permitiram ter durante o cativeiro na China, e que são, eles mesmo, pequenas peças artísticas, e as bicicletas à entrada desta viagem, que sinalizam os anos da Revolução Cultural de Mao Tsé-Tung, e início desta ascensão da China no mundo.
Por fim, uma série de fotografias pessoais de Ai Weiwei e o registo do momento em que regressou à China para acompanhar os momentos finais da vida do pai, o conhecido poeta chinês Ai Qing.
É bom cruzar-me com Ai Weiwei. E é bom repassar tudo de novo. Há sempre coisas a descobrir. Isto no dia em que começa outra viagem com ele em Serralves. Tenho de fazer de novo o saco de viagem e pôr-me a caminho. O século XXI está todo retratado aqui, no imaginário deste chinês do Alentejo. E quero cruzar-me com ele outra vez.

[escrito directamente no facebook em 2021/07/22]