Ando a Ver Cada Vez Pior

Estou a ver cada vez pior. Os óculos que uso para ler já não me chegam. Agora também preciso de focar bem as letras para as conseguir ver. Com a luz do candeeiro não consigo ler um livro. Para estar ao computador a escrever qualquer coisa, preciso dos óculos e ando de um lado para o outro com os olhos à procura do melhor ângulo de leitura. Só os tiro quando coloco imagens em tamanho total no ecrã. Mas no iPad já preciso dos óculos outra vez para ver as imagens. No telemóvel os óculos já não me chegam. Às vezes escrevo só palavras que sei digitar de cor. Às vezes essas mesmas palavras vão erradas porque tenho os dedos demasiado grossos para estes mini-teclados feitos para crianças.
Hoje estive a fazer a mala. Tive de a voltar a abrir, depois de fechada, por cinco vezes. Havia sempre qualquer coisa de fora, qualquer coisa esquecida pelo quarto e que eu não via.
Quando finalmente parei, sentei-me à mesa da cozinha e acendi um cigarro. Os olhos pareciam estar a arder. Como se estivessem cheios de ramelas. Fechei-os. Fumei o cigarro de olhos fechado. Acabei por adormecer a fumar e só acordei quando o meu corpo perdeu a compostura e a cabeça tombou sobre a mesa. Foi uma grande cacetada. Abri um lenho na testa. Fiz sangue. Vim ao hospital levar pontos. Vou ficar com uma linda cicatriz na testa.
Agora estou sentado na recepção das urgências a ganhar forças para regressar a casa. Tenho de apanhar um Táxi. Está a chover e não há nenhum disponível na praça do hospital. Já tentei chamar um Uber mas não há rede aqui dentro. Lá fora chove. Dói-me a cabeça e os olhos. Estou a ver tudo desfocado mas não percebi se é da vista ou da pancada.
Lá mais para cima, para o norte, passou a tempestade Gombe e deixou muitos destroços pelo caminho. Amanhã vou viajar para lá, para a área de calamidade. Ainda bem que ando a ver mal.

[escrito directamente no facebook em 2022/03/12]

Isso É Lá Coisa que se Diga a um Pai?

Eu estava ao balcão, tinha acabado de comer um prego no pão onde miguei uma malagueta das pequenas, fresca, cheia de sementes, e bebido três imperiais, a primeira de penálti porque estava cansado e cheio de sede e quando estou cansado e cheio de sede gosto de beber de penálti um copo de cerveja bem geladinha que me congela os gânglios e me faz arrepiar, quando o tipo se sentou no banco ao meu lado. Eu nunca o tinha visto. Ele chegou, olhou para o meu prato e perguntou Estava bom? Eu acenei com a cabeça e ele pediu Um prego no pão e uma imperial, se faz favor. Depois virou-se para mim e disse A minha mais velha faz hoje seis meses que foi para a cidade. Foi estudar. Ela quer continuar com os estudos. Tem dezassete anos e foi viver para casa do meu irmão. Voltou hoje pela primeira vez em seis meses. E a primeira coisa que ela me disse quando chegou, quando chegou e me viu, foi Vou casar!
Isso é lá coisa que se diga a um pai assim, sem preparação, de chofre, a frio, como um tiro no coração?
Vais casar?
E ela acenou a cabeça, concordante, e sorriu, disse. E eu também acenei a cabeça, solidarizando-me com o homem, e larguei um pequeno sorriso de gozo ao pensar como as filhas levam sempre a água ao seu moinho e fazem sempre o que querem dos pais.
Chegou a imperial e o tipo deu-lhe um gole. E continuou E o pior que se pode fazer é contrariá-las! Por isso o melhor é deixá-las fazerem o que querem.
O empregado colocou o prego no pão no balcão, em frente ao tipo. Ele abriu o pão, agarrou numa bisnaga de mostarda e descarregou sobre a carne. Depois levou o prego à boca e deu-lhe uma generosa trincadela.
Eu pedi mais uma imperial.
O tipo, enquanto mastigava o prego, virou-se para mim, virou-se de lado ao balcão para mim e disse Então só lhe disse Se tu queres casar, não me vou opor. Mas quero que tu penses se estás preparada para chegar a casa e encontrar um tipo sentado na retrete a cagar, com um cigarro na boca e o jornal na mão, um tipo que deixa a tampa da retrete levantada e o ralo da banheira cheio de cabelos. Só quero que penses nisso. Virei costas e vi-me embora. Nem jantei. Por isso é que estou aqui de volta deste prego.
Eu acabei por cuspir um bocado da cerveja que estava a beber para a minha frente, sobre o balcão, e dar uma pequena gargalhada cheio de vontade. Achei piada à imagem que o tipo descreveu para a filha.
E foi aí que eu falei. E disse-lhe Nós também já fomos esse tipo.
Ele levou a mão ao telemóvel e mostrou-me uma mensagem. Dizia o seguinte Está bem. Ganhaste. Já não vou casar. E ainda me disse Não imagina o alívio. E eu pensei Imagino, imagino!

[escrito directamente no facebook em 2022/03/11]

Todos os Dias à Hora do Jantar o Telefone Toca

Todos os dias à hora do jantar o telefone toca. Não sei quem me telefona. Não atendo. E, mais tarde, desmarco os avisos sem ver quem era. Não me interessa.
À hora do jantar estou a jantar. Normalmente na companhia do noticiário da noite. Eu numa ponta da mesa, a televisão ao fundo da sala. Vejo-a por cima do sofá. Escuto-a enquanto enfio uma garfada de qualquer coisa na boca e a faço deslizar traqueia abaixo.
Ultimamente tenho tido uns jantares indigestos. Estou a ponderar, seriamente, em mandar o noticiário da noite para a mesma gaveta da irrelevância das chamadas efectuadas à hora do jantar.
Todos os dias à hora do jantar o telefone toca. Na primeira vez que isso aconteceu, o telefone tocar enquanto eu jantava, acabei por me chatear com um superior hierárquico que queria, por força, que eu lhe compilasse uns dados de que precisava, não dali a uma hora, não dali a meia-hora, não dali a quinze minutos, mas no exacto momento em que falava comigo por telefone à hora do jantar, estava eu já em casa. Essa chamada terminou comigo despedido e o telemóvel estilhaçado na parede em frente, o que mais me custou, afinal era um telemóvel caro que se desfez e acabei por ter de comprar outro, muito mais barato, para desenrascar, e que tenho até hoje porque nunca mais tive o alívio financeiro para voltar a ter um telemóvel como o anterior.
Todos os dias à hora do jantar há uma alminha que não tem vida própria e vem importunar a vida alheia. Eu deixo o telemóvel no mesmo lugar de sempre, na mesa de apoio em frente ao sofá, a meio caminho até à televisão. Ele toca e fica a tocar, sozinho, a sobrepor-se ao som da televisão, a interferir com os noticiários. Mas já não me importo. Ele toca e toca e toca, e eu continuo a jantar, vou olhando para as imagens da televisão e recupero o passo quando o telemóvel se cala.
Estou a pensar ensinar a Siri a responder curto e grosso por mim.

[escrito directamente no facebook em 2022/03/10]

Azul

Olho para cima, para o céu, e tento perceber o que as últimas notícias dão conta. Vem aí um ciclone. Ventos fortíssimos. Chuva. Olho para cima e vejo azul. Nem uma nuvem. Azul. Tudo azul.
Acendo um cigarro. Devia seguir viagem e estou aqui. A viagem foi cancelada. Agora não sei o que fazer. Estou de mãos nos bolsos, o cigarro ao canto da boca, e sem saber para que lado me virar.
Passam dois corvos. Há muitos corvos, por aqui. Passam a vida pousados nas acácias a gralhar. Às vezes acordo com as conversas que têm de madrugada, conversas sem parar. Estão horas nisto. O que é que têm tanto para discutir?
Na cidade ninguém parece dar conta que pode estar aí a chegar o fim do mundo. Toda a gente continua nas suas vidas. Os carros aceleram nas ruas. Há pessoas nas esplanadas. Muitas delas a beberem cerveja. É o que eu devia fazer. Ninguém parece preocupar-se com o ciclone.
Deito o cigarro fora. Volto a olhar para cima, para o céu. Azul. Continua tudo azul. Está um bem tempo para ir para a praia. E eu aqui.
Começo a caminhar ao longo da avenida. Sigo o fluxo. Mas vou sem destino. Não quero estar parado. Talvez consiga tomar uma decisão sobre o que fazer.
Passo ao lado de uma livraria. Páro a olhar a montra. Há vários livros novos a olhar para mim. Gosto de comprar livros. E de os ler. Mas não entro na livraria. Olho só a montra e os livros que a loja aconselha. Não há aqui nenhum que eu tenha ou já tenha lido. É quase tudo novo. Muitos deles de escritores que me são desconhecidos.
Viro as costas à montra e olho para a estrada. Do outro lado há uma pizzaria com esplanada. De repente dou conta que tenho fome. Olho para o céu. Tudo azul. Percebo que tenho tempo para comer uma pizza sem ter que ser corrido da esplanada. Sento-me e peço uma Marguerita. E piri-piri. Peço também uma cerveja de garrafa. Gosto das Margueritas. São mais leves. Não caem pesadas no estômago.
Acendo outro cigarro enquanto espero pela pizza. A esplanada está cheia. Ninguém trabalha? Bom, nem eu. Estamos sentados à sombra das árvores a sentir a brisa que nos ameniza o calor do dia. Aragem? Está uma aragem?
Olho para cima e o céu ainda está azul. Mas há nuvens. Chegaram sorrateiras. Há várias nuvens plantadas no céu por cima de mim, por cima da cidade. Mas ninguém dá conta desta pequena mudança. Ainda está sol. Ainda está calor.
Deito fora o cigarro. Acabo a cerveja. Peço outra. Chega a pizza. Toco-lhe com um dedo e sinto-a quente. Aguardo um bocado mas não muito. Tenho fome. Espalho piri-piri ao longo de toda a pizza. Rasgo um triângulo e levo-o à boca. Afinal não está assim tão quente quanto isso. E, quando dou por ela, a pizza já se foi. E a segunda cerveja. Já não está sol. Olho para cima. Já não se vê azul. O céu está cinzento. Carregado de nuvens. Levanta-se uma ventania. Cai-me um pingo na lente dos óculos. Só tenho tempo de me levantar e correr para o interior da pizzaria. Aqui quando chove, não começa a chover, cai água. Cai água abundantemente. Chego ao interior da pizzaria com alguns pingos grossos em cima. Lá fora, através dos vidros, vejo o dilúvio. Uma cadeira levanta voo. Há gente que não sabe para onde ir. E digo Foi quase assim que acabou o mundo. E alguém ao meu lado pergunta Como?!

[escrito directamente no facebook em 2022/03/09]

Os Gémeos Tonificados

Faço o mesmo trajecto todos os dias. Não tenho grande necessidade de o fazer, mas dá-me algum descanso. Aliena-me durante alguns momentos.
Desço as escadas, subo e volto a descer. Aquele edifício parece uma montanha-russa entre as suas subidas e descidas quando se quer sair dele, ou entre as suas descidas e subidas quando se quer entrar. Para se ir lá de cima até lá abaixo, descem-se uma escadas, sobem-se outras, cruza-se um átrio voltam a descer-se três lances de escada até à entrada e mais um pequeno lance até à rua. Na rua viro à esquerda. Caminho ao longo do passeio, com cuidado para não fazer nenhum entorse nem ser atropelado pelos carros que vêm no mesmo sentido que eu, quando o passeio me empurra para a estrada. Passo ao lado do edifício dos correios, da Biblioteca Nacional e da Imprensa Nacional. Depois páro nuns semáforos. Cruzo a estrada para o outro lado. Sigo em frente, passo ao lado dos vendedores de rua, vendedores de peças em cabedal e sapatos. Passo por uma pequena estrada e entro no café. Peço um pastel de nata e uma bica. Às vezes uma Água das Pedras. Já pedi um Compal laranja e um bom-bocado. Depois sento-me lá fora, na esplanada, e vejo a vida a desenrolar-se à minha frente. Uns miúdos lavam uns carros, de balde e esfregona. Não têm mãos a medir. Eu acendo um cigarro. Divago. Evado-me. Chegam e partem pessoas. Os carros circulam. É raro ouvir buzinadelas. Ainda não vi nenhum acidente. Nem um toque ligeiro. Mas já vi quase-acidentes.
Desperto. Os miúdos continuam lá, agora a lavar outros carros. Não têm mãos a medir.
Levanto-me. Volto lá dentro. Levo uma sandes mista para mais tarde. Pago e regresso.
Saio do café e viro à esquerda. Passo por uma pequena estrada e cruzo-me com os vendedores de peças em cabedal e sapatos, os vendedores de rua, e sigo em frente. Agora não cruzo logo a estrada nos semáforos. Viro à esquerda e sigo por este lado da avenida. Passo no meio de vendedores de cigarros avulso, vendedoras de castanha de caju e amendoim, passo ao lado do Tivoli, saltito por uma pequena estrada, continuo em frente até ao antigo Continental, agora arrestado. Aí páro no semáforo e cruzo a estrada para o outro lado. Subo as escadas da rua para o edifício. Cruzo a entrada e subo três lances de escadas até um pequeno átrio. Depois desço umas escadas e volto a subir outras.
Estou de regresso. A primeira coisa que faço é acender um cigarro. E, depois, invariavelmente penso, Estou a ficar com os gémeos tonificados.

[escrito directamente no facebook em 2022/03/08]

À Segunda-Feira Há Menos Gente na Rua

Sento-me na esplanada. Está uma noite agradável. Corre uma aragem fresca. Peço um prego no prato, o prego mal passado, e uma cerveja de garrafa. Só há mais uma mesa ocupada. Não está quase ninguém, mesmo lá dentro, no interior. À Segunda-feira há menos gente nas esplanadas, há menos gente na rua.
O empregado traz a cerveja e bebo-a quase toda de um gole. Estou com sede. Chamo o empregado. Peço uma chamuça de camarão para me entreter até chegar o prego. Na verdade apetecia-me uma chamuça de vegetais, mas não há. Não fazem. Aqui por estes lados não há muitos vegetarianos.
A chamuça chega e devoro-a rapidamente. Acendo um cigarro. Já não uso a máscara há algum tempo. Às vezes já me esqueço que vivemos uma pandemia.
Passa um homem de pernas inchadas e um andar estranho, como se as pernas fossem de pau. Estende-me a mão. Tenho uma nota no bolso das calças, uma nota pequena. Enfio a mão, tiro-a e dou-lha. Ele agradece e continua, rua fora, à procura de mais alguém a quem estender a mão. Hoje as coisas não estão boas para ele. Não há quase ninguém na rua.
Sinto um nó na garganta.
Chega o prego. Deito fora o resto do cigarro. Como o prego. Bebo mais uma cerveja. Volto a acender mais um cigarro. Encosto-me na cadeira e deixo-me açoitar pela aragem fresca da noite.
Começa a ser tarde. Devia ir para casa. Mas estou tão bem aqui. Parece que o tempo parou. Não tenho com que me preocupar. Peço outra cerveja. Acendo mais um cigarro. Bocejo. Sinto o cansaço a abandonar o meu corpo. E suspiro.

[escrito directamente no facebook em 2022/03/07]

Sou um Bicho do Mato

A porta da rua fechou-se com estrondo. Custa a fechar. Por dentro ainda é possível girar o puxador da porta e forçar a porta a fechar-se sem grandes problemas mas, por fora, só mesmo à bruta. Quando alguém sai de casa, toda a gente sabe.
Não sei quantas pessoas estão a viver cá em casa. A casa tem muitos quartos. Eu não frequento a sala. Raramente vou à cozinha e, quando vou, vou a desoras. Quando preciso de sair de casa, ponho-me à escuta à porta do quarto para perceber se está alguém nas áreas comuns. Se estiver, prefiro aguardar mais um pouco para não me cruzar com ninguém.
Sim, eu sou um pouco bicho do mato. Não me dou lá muito bem com pessoas. Elas normalmente não gostam de mim. Não sei porquê. Mas não gostam. Então prefiro evitá-las. Mas nem sempre.
Estou nesta casa há um mês. Acho que consigo passar cá mais outro mês. Mais do que isso já me começa a fazer comichão. Não gosto de estar muito tempo no mesmo sítio. Criar raízes é um problema para mim. Prefiro estar sempre de passagem, não conhecer ninguém e ninguém saber quem eu sou.
Quando estou em casa, estou sentado na cama. Não há televisão no quarto. Não tenho computador. O meu telefone ainda é dos antigos e a única coisa que tem para me entreter é o jogo da cobra. Estou um pouco farto do jogo da cobra.
Passo a maior parte do tempo a olhar para mim reflectido no espelho em frente. Frente à cama onde eu me deito, e passo o tempo sentado, há um roupeiro que tem portas deslizantes com espelhos. Vejo-me lá retratado. Vejo-me velho. Às vezes nem me reconheço. Estou gordo e anafado. Quase careca. Bastante míope.

Às vezes tenho umas pulsões.
Às vezes tenho de agir para parar estas pulsões.

Tenho a barba grande. Faz-me comichão.
E já não tenho roupa lavada. Tenho de lavar os boxers e algumas meias no lavatório. Posso estendê-los no chuveiro.
Preciso de arranjar pasta dos dentes. Já não lavo os dentes há alguns dias. Tenho de arranjar pasta antes de me ir embora. Afinal, já não sei se consigo aguentar por aqui mais um mês. E penso Talvez tenha de me ir embora mais cedo, enquanto me afago e olho para mim no espelho. Depois meto a mão livre debaixo da almofada e confirmo que está lá a faca. A minha faca.

[escrito directamente no facebook em 2022/03/06]

A Mulher Presa

Era tarde. Tarde da noite. Seria por volta da meia-noite. Eu tinha ido ao cinema, à sessão das nove e meia, e por isso devia ser por volta da meia-noite quando eu saí do cinema e fui para o parque de estacionamento não muito longe das salas.
Ia distraidamente a pensar no filme. Não com muito interesse, é claro, porque o filme não era grande merda, mas ia a pensar no porquê de continuar a ir ver estes filmes às salas quando os podia perfeitamente piratear na net e deixar as salas para os filmes que realmente merecessem a minha reverência.
Das salas de cinema para o parque de estacionamento, tinha de passar por uma rua traseira pouco movimentada e, também, muito pouco iluminada. Não se via vivalma. Eu era o único tipo que tinha ido ao cinema e tinha deixado o carro naquele parque. Quando saí da sala, desci os degraus do cinema e acendi um cigarro. Fui a fumar durante o caminho. Naquela rua não havia ninguém. Reinava um quase-silêncio. O barulho da cidade parecia uma coisa distante, lá muito ao fundo.
Foi quando estava a entrar no parque de estacionamento que ouvi. Ouvi nitidamente. Uma voz de mulher, muito sumida, a pedir socorro.
Parei. Olhei em volta. Senti o coração a disparar. Fumei o resto do cigarro de uma só vez. Deitei a beata fora. Cheguei-me à frente. Pus-me a espreitar entre os carros estacionados. Apurei os ouvidos e lá estava Socorro!
Pus-me a seguir a voz que me levava para uma zona da rua muito pouco iluminada. Senti algum receio. Mas o medo na voz que pedia por ajuda parecia real. Segui em frente, em direcção ao ponto de onde parecia partir aquela voz, Socorro!
Parei de novo. Acendi outro cigarro. A vez parecia mais próxima, bastante mais próxima. E então ouvi, bem perto de mim, Aqui em baixo!
Baixei os olhos. Olhei. Estava uma mulher caída dentro de um buraco dos esgotos, mas presa pelos braços abertos.
Que raio?!… pensei.
Perguntei-lhe o que tinha acontecido e ela respondeu que vinha a pensar na morte da bezerra e, de repente, ficou sem chão. Estava ali há uma hora. Não tinha passado mais ninguém. Ninguém passava por ali. Passei eu.
Estendi-lhe a mão e ajudei-a a erguer-se. Ergui-a devagar, com cuidado. Ela estava cheia de dores no braços. Enquanto ela subia, reparei na mala a tira-colo que não se tinha perdido. Quando a consegui pôr inteira na rua, reparei que lhe faltava um chinelo no pé. E ela disse Perdi um chinelo.
Eu baixei-me sobre o buraco do esgoto aberto e acendi a luz do telemóvel para espreitar lá para dentro. Vi logo o chinelo. Não muito longe mas, também não estava logo ali. Nem valia a pena esticar o braço. Não chegaria lá. Olhei em volta. Vi uma árvore. Levantei-me. Ela pediu-me um cigarro. Ofereci-lhe um. Fui à árvore e parti um ramo. Enfiei o ramo pelo buraco do esgoto e pesquei o chinelo. Cheirava mal. Entreguei-o à mulher. Perguntei-lhe se queria que a levasse ao hospital. Abanou a cabeça. Reparei então que estava a chorar. Abracei-a. E ela deixou-se abraçar. E ficou encaixada em mim. Ainda hoje está encaixada em mim.

[escrito directamente no facebook em 2022/03/05]

A Última Vez que a Vi

Era Agosto. Lá fora chovia que Deus a dava. Dentro de casa um calor insuportável. Não abríamos as janelas por causa dos atiradores furtivos. Estavam espalhados ao redor da cidade. Alguns aventuravam-se mesmo pelos prédios já abandonados. Instalavam-se e era mesmo de dentro da cidade que nos iam ceifando. Era difícil desalojá-los dos seus pontos de ataque. Mas íamos vivendo a nossa vida dentro do possível. Tentávamos sobreviver sem abandonar a cidade nas mãos deles. É incrível como nos habituamos com tanta rapidez às brutais mudanças de vida.
Era Agosto e a cidade estava cercada. O cerco durou todo o Verão. Nunca um Verão durou tanto tempo a passar. Um Verão especialmente quente. Quente e húmido.
Passámos a maior parte do tempo escondidos em casa a aguardar ajuda. Não tínhamos grandes alternativas. Não saímos enquanto podíamos e então já era tarde.
Ficávamos por casa, fechados, de comida racionada. Às vezes saíamos, de madrugada ou à noitinha, ao lusco-fusco, nas horas mais frescas e de menor visibilidade, para procurar víveres ou encontrar gente que tivesse ficado por ali presa como nós, para tentar saber notícias, novidades do exterior, tentar organizar grupos de resistência e ajuda. E depressa voltávamos para casa.
Era Agosto e estava muito calor. Estávamos em casa, eu e ela. Andávamos nus por ali. Os nossos corpos escorriam água. Passávamos a maior parte do tempo deitados no chão da cozinha ou da casa-de-banho. Para nos mantermos o mais fresco possível. Pouco falávamos já. Funcionávamos como um só. Olhávamos um para o outro e era uma forma de comunicação suficiente entre nós. Tivemos longas conversas em silêncio.
Era Agosto e, naquele mês de tanto calor, nem conseguimos fazer amor uma única vez. Os nossos corpos escaldavam. Precisávamos de nos mantermos afastados um do outro. Prometíamos um ao outro que mais tarde trataríamos de vingar esse celibato. Mas não cumprimos a promessa.
Era Agosto. Um Agosto muito quente e chuvoso. Naquele dia ela disse Hoje é a minha vez. E vestiu-se. Vestiu-se com dificuldade, a roupa por cima do corpo transpirado e quente. Colocou a faca de cozinha no bolso do casaco. A metralhadora, roubada a um inimigo encontrado morto numa rua da cidade, pendurada a tira-colo. Um carregador de balas. Ainda não tínhamos disparado um único tiro. Nem sabíamos se saberíamos disparar a arma se houvesse necessidade. Mas sempre que saíamos de casa, levávamos a arma a tira-colo. Achávamos que podia ser dissuasora.
Era Agosto e ela saiu de casa. Deu-me um beijo leve nos lábios. Foi a última vez que me beijou. Foi a última vez que a vi. Saiu de casa debaixo daquela forte chuvada e nunca mais voltou.
Eu saí todos os dias, de manhã e à noitinha, para a procurar. Nunca mais soube dela. Nunca encontrei o corpo.
O cerco durou todo o Verão. No final foi decretado o armistício. Os que tinham morrido, tinham morrido. Ninguém foi condenado. Tentou passar-se um pano por cima dos acontecimentos. Não vamos abrir mais feridas, foi o que disseram.
Estamos em Março e também está a chover muito. Não está tanto calor como naquele Agosto, mas está muito quente para um mês de Inverno. Eu estou sentado no sofá a olhar para a porta da rua. Continuo à espera de a ver entrar.

[escrito directamente no facebook em 2022/03/04]

Na Maior Usina Nuclear da Europa

Acordo com o barulho. É de madrugada. O quarto é invadido por flashes de luz. Ouço sirenes. Tiros? Bombas. Ouço um bombardeamento. Alguém fala apressadamente numa língua que não conheço. Há muita confusão.
Ergo-me na cama. Tenho a televisão ligada. Os russos bombardeiam uma usina nuclear. A maior usina nuclear da Europa. Lembro-me de Chernobyl. Volto a deitar-me. Viro-me para o outro lado. Fecho os olhos e tento voltar a adormecer. Ainda é cedo para me levantar.
Talvez já seja tarde.

[escrito directamente no facebook em 2022/03/04]