Morreram 14 Mulheres

Ela entrou na Sala das Entrevistas. Preâmbulo dos Recursos Humanos. Ia atrás de um estágio. Engenharia. Engenharia Mecânica. E o entrevistador disse Engenharia Civil era melhor. As raparigas vão para Engenharia Civil. É mais fácil. Mais fácil para ter família. Mas ela queria Engenharia Mecânica. Era a melhor nota do Politécnico de Montreal. A melhor nota em Engenharia Mecânica no Politécnico de Montreal. E saiu da Sala das Entrevistas a maldizer a vida. A sua vida. O facto de ser mulher. O facto de ser mulher num mundo de homens. Onde os homens partem sempre à frente. Porque não engravidam. Porque não têm família. Porque não precisa de ser fácil.
Ela saiu da Sala das Entrevistas como entrou. Sem nada. Mas mal ela sabia que a vida iria mudar. Mudar radicalmente.
Isto é-nos contado em 2009 por Denis Villeneuve no filme Polytechnique. Mas fala-nos de 1989. De 6 de Dezembro de 1989. Dia em que Marc Lépine entrou no Politécnico de Montreal com uma espingarda Ruger Mini-14 e matou 14 mulheres antes de se suicidar. Segundo o próprio, numa carta que deixou, o ataque foi um grito contra o Feminismo. Contra estas mulheres que têm de lutar contra um mundo de homens.
Ela foi uma das vítimas do ataque. Por ser mulher. Futura Engenheira. Feminista. Mas sobreviveu. A personagem do filme de Denis Villeneuve sobreviveu. Sobreviveu à arma e ao ataque. Sobreviveu ao estágio. À Sala das Entrevistas. Aos Recursos Humanos. À Engenharia. À Engenharia Mecânica. Sobreviveu à discricionariedade por ser mulher. Mulher num mundo de homens. Um mundo onde os homens se ressentem das mulheres. Que engravidam. Formam família. E não precisam que a vida lhes seja fácil.
Mas houve gente que morreu. Naquele dia. Mulheres. 14 mulheres que não chegaram a lado nenhum. Não chegaram a entrar na Sala das Entrevistas. Unicamente por serem mulheres. Num mundo de homens.

[escrito directamente no facebook em 2018/10/31]

Chegou o Tempo de Acender a Lareira

Cheguei a casa molhado. Não muito, mas mesmo assim molhado. Uma chuva tonta. Daquelas que chega sem avisar. Mas foi violenta. Caiu assim rápida e forte. Não durou muito. Mas foi o suficiente para fazer parar o trânsito no meio da cidade. O suficiente para afastar as pessoas das ruas. Para as lojas ficarem desertas. Mas os cafés encheram. As pessoas recolheram ao quente dos cafés para beber um chá. Um copo de vinho. Uma imperial. Enquanto esperavam que a cidade se libertasse do seu trânsito caótico e compacto para poderem fluir para casa.
Eu fui a pé. A correr de toldo em toldo. Sem chapéu. Até casa. Cheguei cansado. Molhado. E com uma pieira desgraçada.
Acendi a lareira. Para me aquecer. Aquecer a casa. Sentei-me frente à lareira. No chão. Sem televisão. Sem música. Sem livros nem revistas. Sem redes sociais. Sem barulho. Em silêncio. Quase em silêncio. Tinha a companhia do crepitar da lenha a arder na lareira. E deixei-me ficar ali a vê-la aconchegar-me.
Aproveitei a lareira acesa para fumar um cigarro sem abrir a janela.
Senti-me cansado. Não tinha fome. Não tinha vontade de cozinhar. Deixei-me ficar ali. Descalcei as botas. Tirei o cinto das calças e abri o primeiro botão. Libertei a barriga.
Não queria acender a lareira porque é uma volta sem regresso. Ao acender hoje, vou passar a acender todos os outros dias. Vou passar a sentir-lhe a falta se não a acender. Mas estava molhado. E com bastante frio. Sentia-me gelado.
Aqueço. Puxo uma mantinha para cima de mim. Deixo-me ir com as chamas. Deixo-as levarem-me para o sono. Sou muito fácil de ser levado. E sinto-me ir. Sei que estou de sorriso na cara enquanto a lareira me mantém quente e o crepitar da lenha a queimar me embala e eu parto para o sonho.

[escrito directamente no facebook em 2018/10/30]

O Meu Vizinho Era Comunista

Eu tinha o revólver na mão. E olhava para o tipo. E ele olhava para mim. E eu estiquei o braço para ele. O revólver na ponta do braço. Na mão. Na mão segura. O dedo trémulo. E disse Comunista! E disparei. Disparei à queima-roupa. E vi-o ser projectado. Para trás. Com o impacto. A cabeça a rebentar. E a ser projectado. Para trás. E caiu. Caiu no chão. O sangue. O sangue na cabeça. O sangue no chão.
Repeti para que me ouvissem Comunista!
O cão dele aproximou-se. Cheirou-o. Ganiu. O rabo entre as pernas. A andar de um lado para o outro.
Já não aguentava. Manhã e tarde. Para baixo e para cima. Para a frente e para trás. O tractor. A merda do tractor. E o tipo ensebado. Gordo ensebado. A camisola de alças suja. A melena do cabelo, despenteado, caído sobre a testa. O cabelo gorduroso. Sebo e gordura. As mãos pequenas. Os dedos grossos. As unhas sujas. E o barulho. O barulho do motor. Logo de manhãzinha. Até à noite. Até chegar o lusco-fusco. O barulho. O motor a trabalhar. A entrar cá dentro. Fundo cá dentro. A perfurar.
Aguentei o que pude. Juro. Aguentei. Tentei ignorar. Ultrapassar. Esperei que terminasse. Um dia. Dois dias. Uma semana.
Já nem me ouvia. Não ouvia os meus próprios pensamentos. Mas ainda bem. Ainda bem não me ouvir.
Foi automático. Levantei-me da cadeira. No alpendre. Larguei o cigarro no chão. Acabei com o vinho. Parti o copo na mão. Fiz sangue. Entrei em casa. A arma. O revólver. As balas. O sangue. O meu sangue na mão. Na arma. Na camisola. E disse Comunista!
Saltei o muro. Percorri a horta. Passei entre as couves. As batatas. O feijão verde. Caminhei. Passo decidido. Ao longo da horta. Depois das árvores. As maçãs. As pêras. E vi-o lá ao fundo. No tractor. O barulho. Ainda e sempre, o barulho. A revolver a terra. Ele viu-me. Levantou o braço. Num olá. Desligou o motor. Saiu do trator. Aproximou-se. Esticou-me a mão. Eu também estiquei a mão. Com o revólver nela. Na mão. E disse Comunista! E disparei. Disparei à queima-roupa. Ele caiu. Foi projectado. Eu cuspi para o chão. E disse, Comunista! Olhei o revólver. Pu-lo no cinto.
Aproximou-se o cão. O cão dele. A cheirá-lo. A ganir. O rabo entre as pernas. Eu agarrei no telemóvel. Marquei o número. Esperei. Atenderam. E eu disse, Atirei num comunista!
Olhei para o céu. E senti. Senti o silêncio. A calma. A paz.
Regressei ao alpendre. Acendi um cigarro. E sentei-me. Sentei-me à espera que o viessem buscar.

[escrito directamente no facebook em 2018/10/29]

As Varandas Vazias

Onde estão as pessoas?
Venho à varanda. Fumo um cigarro. Olho em frente. Olho os outros prédios. As outras varandas. Vazias. Uma flor. Outra flor. Murcha. Marquises. Muitas marquises. Marquises a fechar varandas vazias tornadas, quê? Quartos. Escritórios. Salas de arrumo. Mas vazias. Sempre vazias. Vazias de gente. Um T1 tornado T2. Uma varanda tornada assoalhada. Mas vazia. Sempre vazia.
O que é feito delas? Das pessoas?
Escondem-se. Escondem-se umas das outras. Fecham-se em casa. Têm medo das intempéries. Têm medo de respirar ar puro. O ar fresco do Inverno. O ar quente do Verão. O ar com diesel. O ar com cheiro a lareira. A lenha verde queimada. Enfiam-se dentro das camas, tapam-se com os cobertores e cheiram-se. Um cheiro deles só para eles. São egoístas, as pessoas. Fecham as cortinas. As persianas. As portas. As varandas. As janelas. Fecham-se. Trancam-se. Emudecem.
Porque nunca estão ali?
Por medo, talvez. Por medo de serem vistas. Por medo de ver. Por medo da vida, pois. Por medo que alguém saiba de sua vida. Que alguém veja as famílias discutir. O amor morrer. A morte chegar. Por medo de ver que as vidas dos outros são mais luminosas. Mais belas. Mais coloridas. Mais. Sempre mais. O engano. É isso que as pessoas gostam. É isso que procuram. O engano. O engano nos outros.
Fogem uns dos outros. Fechados nas suas casas de varandas vazias. Varandas inabitadas. Varandas de marquises. Um Cacém enorme espalhado ao longo de todo o país. Um país negativo. Sem outros. Só com cada um de nós. Isolados.
Escondem-se. Fogem. Viram-se costas. Dão-se costas. A única coisas que as pessoas dão. Às outras. As costas. O desprezo. A infinitude do desprezo.
Acabo o cigarro. Sinto o desprezo dos outros nas suas ausências. Estou à varanda. Estou sozinho. Sozinho na varanda. As outras estão desertas. Cheias de desprezo.
Largo a beata na rua. Entro em casa. Torno-me uma delas. Fecho a porta da varanda. As persianas. As cortinas. Acendo a lareira. Meto-me debaixo dos cobertores. Cheiro o meu cheiro. Viro as costas ao mundo. Quero que as pessoas se fodam. Quero que o mundo rebente.
E não quero nada.

[escrito directamente no facebook em 2018/10/28]

A Viagem em Itália e a Grande Onda da Nazaré

Estávamos na cama. Os dois. Abraçados. Estávamos num quarto. Numa pensão. Na Nazaré. À beira da praia. O sol a entrar pela janela. O vento a soprar lá fora. A assobiar pelas frinchas da janela. O tempo estava bom. Fazia sol. Mas caminhava para o mau. Vinham lá nuvens. Uma massa polar, diziam. Que vinha da Islândia, diziam. Nunca fui à Islândia, disse eu. Em voz alta.
Ela disse E agora a água do mar desaparecia toda, puxada lá para dentro, para dentro do mar, para fazer uma onda, uma onda gigante, gigantesca, uma onda que vinha tombar sobre a Nazaré, e arrasar com a cidade e connosco. Connosco nesta cama. E morríamos assim, abraçados, os dois. E abraçou-me muito. Apertou-me muito. Beijou-me. Mordeu-me.
E eu pensei no filme de Roberto Rossellini, Viagem em Itália. E disse. E disse-lhe. E comecei O George Sanders e a Ingrid Bergman estão em Itália. Estão lá por causa de uma herança e aproveitam para passar férias. Mas descobrem que não estão habituados a estar juntos. Juntos e sozinhos. Juntos e sozinhos e durante tanto tempo. E tudo serve para se distanciarem. Para se distanciarem ainda mais. O país. Os italianos. As italianas. O calor. A porra do calor. E nasce o azedume. Um azedume cada vez maior. Cada vez mais azedo. Ele vai para os negócios. E sai à noite. Diverte-se. Ela visita as ruínas de Itália. Faz turismo. Turismo de história. De ruínas. Visita Pompeia. A Pompeia destruída pelo Vesúvio no ano 79. As mesmas ruínas onde os Pink Floyd tocaram para um filme, Live at Pompeii, em 1972. E é ali que ela tem o primeiro choque. As pessoas estão abraçadas. Como nós aqui, a sermos levados pela onda gigantesca que se abateria sobre a Nazaré. Nós abraçados. Eles abraçados. Eles as pessoas mortas. As vítimas do Vesúvio. Envolvidas pela lava. Queimadas vivas. Abraçadas. Amantes. Amados. Amantíssimos. Descobertos agora. Como estátuas ao amor. De amor. Um amor de horror. Mas não são estátuas. São gente. Gente que morreu. Gente que morreu junta. Abraçada. A amarem-se. E ela chora. Acho. Acho que a Ingrid Bergman chora. Já não tenho certeza. Mas acho que ela chora. E vai transformar-se. Quer renovar-se. Quer recuperar o marido. Recuperar o amor que acha que já teve. Que já viveu. Mas é já quase no final do filme, quando George Sanders e Ingrid Bergman passam de carro por Itália, pela Itália profunda, pelo meio de uma aldeia em festa, festa religiosa, festa católica, católica como Roberto Rossellini, e o carro fica bloqueado entre as inúmeras pessoas, no meio das pessoas, daquela multidão, e eles os dois discutem, discutem forte e ela sai do carro e ele sai também para a ir buscar e a procissão vem, vem como a onda gigante da Nazaré e leva-a, leva-a para longe dele, e ele vê-a ser engolida pela multidão que se arrasta e ambos perdem o outro de vista, e sentem que, afinal, ainda há ali qualquer coisa entre eles que não está morto, qualquer coisa que está a acordar e procuram-se, procuram-se um ao outro, não querem perder-se, não se querem perder. É um filme lindíssimo. Triste, mas muito bonito. Um filme que afasta Roberto Rossellini do neo-realismo e abre as portas para um cinema existencialista. Mas agora preciso de ir fumar um cigarro que fiquei cansado de tanto falar, disse.
Ela sorriu-me, abriu os braços para eu sair da cama e disse Traz-me um copo de vinho, antes que venha a onda. E eu disse Se vier a onda abraço-te ainda mais. E sorri enquanto acendia um cigarro, afastava as cortinas da janela e olhava lá para fora e via os primeiros pingos de chuva a chegar. As gaivotas a voar. Mas o mar, o mar ainda lá estava.

[escrito directamente no facebook em 2018/10/27]

O Medo

Ando com medo. Não reconheço esta gente.
Espreito pelo óculo da porta. Há pouca gente na rua. É, talvez, a melhor altura. Abro a porta. Os olhos no chão. Não podem cruzar outros olhos. Outros olhares. Os olhos em baixo. No chão. Caminho, nem devagar nem depressa. Em passo decidido. Faço os quinhentos metros que me separam do café de olhos no chão. Não posso cruzar-me com ninguém. Não posso conhecer ninguém.
Entro no café e sigo até ao balcão. Olho para o cesto do pão e peço Quatro papo-secos, se faz favor!, à rapariga que senti, pelo canto do olho, abeirar-se de mim do outro lado do balcão.
Atrás de mim ouvia-os falar, alto e bom som. Os novos senhores. A arrogância de quem manda. Estavam a beber. Notava-se que alguns já estavam ébrios. Estavam em casa. Em todo lado estavam em casa. Tudo era casa. Deles.
Agarro o saco do pão estendido por cima do balcão. Largo umas moedas. E saio. Quero sair. Ir embora dali. Voltar para casa.
Viro-me. Largo o balcão. Os olhos no chão. O saco de pão na mão. Linha recta até à porta da rua. Depois mais quinhentos metros até casa. Vou andando. Um pé à frente do outro. Um passo e outro passo. E, a meio do café, a meio do caminho, uma perna esticada. Uma perna esticada à minha frente. E caio. Caio no chão do café. O saco salta-me das mãos. Abre-se. Os papo-secos espalham-se pela sala. E eu caído. De quatro. O silêncio. No café, o silêncio. Até eles, os novos senhores, em silêncio. Aguardavam. Eu levanto-me. De olhos no chão. Desculpe! Foi culpa minha, disse. Procurei os papo-secos. Apanhei-os. De volta para o saco.
E então desatam a rir. Os novos senhores, donos do espaço e do tempo, desatam a rir, satisfeitos com a situação. Quem pode, manda. E retomam as suas conversas. Alto e bom som. Mostram quem manda. Quem obedece. O café inteiro reconhece a ordem das coisas e ri. Ri sem vontade, mas ri. Sabe que amanhã, qualquer um deles, um aleatório, pode ser o centro de alguma acção como aquela, ou pior, mas ri. Tem de rir.
Saio do café.
Mantenho os olhos no chão. Acelero o passo naqueles quinhentos metros até casa. Abro a porta e entro. Fecho a porta nas minhas costas. Largo o saco de pão no chão e corro para a casa-de-banho. Abro o tampo da sanita e vomito. Na cabeça o riso. A gargalhada. Deixo-me ficar ali tombado, agarrado à sanita. A ouvir o riso. A ouvir a merda do riso.
Até quando? Até quando, o medo?

[escrito directamente no facebook em 2018/10/26]

Um Dia Acertei nos Números do Euromilhões

Há anos que mantinha aquela rotina. Não era um ritual. Nem uma obrigação. Nem sequer uma esperança. Era só um hábito. Um hábito que nasceu no início, quando o jogo nasceu e quando ainda acreditava que podia fintar o destino. E depois manteve-se. Já era automático. Sexta-feira. Entrava pelo quiosque dentro. Ou pelo café. E registava os números. A chave. A possível chave milionária. Nunca ganhei nada. Não, minto. Por duas ou três vezes ganhei o suficiente para poder voltar a jogar. Foi só. Por vezes até me esquecia de verificar os números. É possível que já tivesse alguma vez acertado na chave e deitado fora os bilhetes. Sem conferir. Tal era o meu nível de confiança. Ou de esperança, lá está.
Bom, mas naquela Sexta-feira, estava eu a passar em frente à loja dos electrodomésticos e, na montra, estava uma parede de televisores ligados a inúmeros canais. A imagem prendeu-me. Estava num futuro futurista. Senti-me um agente de informação digital a espreitar vidas alheias através dos circuitos integrados de televisão.
[agora num aparte, sempre tive vontade de me oferecer para trabalhar na régie do circuito de televisão de segurança da cidade, mas sempre tive medo do que poderia ser levado a fazer. tenho medo de ter um fascista dentro de mim. e esse medo horroriza-me]
Então parei frente à montra. Frente aos inúmeros televisores. Olhava os ecrãs. Um. Outro. Um terceiro. E comentava para mim próprio, baixinho, como se fizesse um relatório exaustivo do que estava a ver. Escolhia as imagens mais íntimas. Como se furasse mais dentro de alguém de quem queria saber tudo. Assustei-me. Assustei-me comigo próprio. Assustei-me ao pensar que eu próprio era um potencial fascista, pronto a calhandrar a vida alheia e a divulgá-la pelos meandros burocráticos do poder concentracionário – é bizarro que para os dicionários que vasculhei, calhandra é uma ave, uma espécie de cotovia, e nenhum deles trazia o sentido com o qual eu o utilizo, e cujo sentido era, para mim o único, bisbilhotice. Bizarro. Retomando, assustador. Eu próprio. É terrível quando se começa a ter medo de si próprio.
E foi então que vi. Perdido nos meus fascismos, vi num ecrã perdido no meio de todos os outros. O sorteio, em directo, do Euromilhões. Ri-me. Lembrei-me que tinha um bilhete na carteira. Tirei-o. Fui olhando a saída dos números. Tinha um. Tinha outro. Tinha três. Olha, olha! Até me ria! Tinha quatro. Tinha cinco números. Foda-se! Foda-se! Comecei a ficar nervoso. A doer-me a barriga. Os intestinos começaram a refilar comigo. Tinha vontade de ir à casa-de-banho. Saíram as estrelas. Tinha a primeira. E a segunda. E fiquei ali, assim. Parado. Hipnotizado. Não reagia. Não estava a acreditar no que tinha acontecido. Estava de boca aberta. Queixo caído. Chegaram uns vómitos. Despertei. Corri para a esquina e vomitei. Estava rico! Rico! E o vómito saía-me em jorro. Convulsões. Sujei as sapatilhas com o respingar do vomitado. Depois acalmei. Limpei a boca às mangas da camisola. Porra! Sentia a boca azeda. Tinha acertado no Euromilhões! Eu! Eu, caralho! E depois levantei a mão para rever a chave. Levantei a mão. Ergui o braço. Olhei para a mão. Para os dedos. Vazios. Tudo vazio. Onde estava? Onde caralho estava o bilhete sorteado? Porra! Porra! Porra! Voltei à esquina. Ao vomitado. Olhei. Vasculhei. Meti as mãos no meio daquela merda toda e agitei, mexi, separei, espremi. O bilhete tinha desaparecido. O bilhete fugira-me das mãos. Onde estava? Onde estava, caralho? A merda do Euromilhões? Os meus milhões! Os meus milhões!
Nunca mais joguei.
O dinheiro que utilizava para jogar, passei a bebê-lo. Sempre que penso que devia ir jogar, sento-me ao balcão e peço um copo de tinto. Alentejano, de preferência. Mas pode ser uma coisa qualquer. Preciso de afogar as mágoas. Depois saio do balcão e vou à rua fumar um cigarro. E penso que houve um dia em que fui quase um Warren Buffett português. Verto uma lágrima. Mando tudo para o caralho! e vou beber outro copo.

[escrito directamente no facebook em 2018/10/25]

De Prédio em Prédio à Cata de Oposição

As notícias não eram animadoras. Não, as notícias eram assustadoras. Um verdadeiro horror.
O Coiso ia a caminho do Planalto. Já ninguém podia proteger o Brasil. A força, a ignorância e a intolerância estavam, de mãos dadas, às portas do poder.
Mas o Brasil não era o primeiro. Nem seria o último. Era só um dos mais significativos e importantes. Um verdadeiro laboratório.
Uma série de eventos que parecia não terem nada a ligá-los, acabou por se perceber, mais tarde, serem parcelas da mesma equação.
Ao mesmo tempo que o Coiso fazia o seu caminho em glória, uns sauditas esquartejavam um jornalista opositor ao regime de Riade, no interior de um consulado em Istambul, na Turquia, e depois fizeram desaparecer o seu corpo levando-o em várias malas de viagem. Entretanto, um triatleta português era morto pela mulher e o amante dela, em casa, e o seu corpo depositado a mais de cem quilómetros de distância do sítio da morte, tendo, a mulher, nos fins-de-semana seguintes, passeado a luxúria com o seu amante pelo Festival de Paredes de Coura e por Porto Covo. Ao mesmo tempo um antigo Presidente da República Portuguesa editava um livro onde tecia considerações jocosas sobre os actores políticos do momento e o governo italiano fazia ouvidos moucos à Europa sobre o seu Orçamento de Estado. E, no meio de tudo isso, uma série de tempestades tropicais, furacões e vulcões eclodiram um pouco por toda a parte, seguidos de enormes massas polares frias que puseram, em especial a Europa, de sobreaviso. Mas já era tarde.
O que despoletou tudo foi uma série de atentados falhados, na forma de embrulhos armadilhados, enviados a antigos presidentes norte-americanos moderadores, a milionários filantropos e a estações televisivas de noticias. Os embrulhos foram apanhados a tempo pelos serviços de segurança. E foi isto que levantou a suspeita. Mas já era então muito tarde.
Estávamos na antecâmara do terror que vinha instalar-se no Ocidente. O Oriente há muito que estava esmagado, sem o saber. Já desconfiávamos. Mas estávamos embriagados.
Pouco demorou para as milícias começarem a organizarem-se nos vários países da Europa e da América. Através do WhatsApp as forças das trevas organizaram-se e dominaram os países. Primeiro espalharam-se pelo meio do povo. Como Agentes Provocadores. Depois dominaram as várias igrejas, especialmente as evangélicas. Logo de seguida, entraram pela forças policiais e militarizadas, chão fértil. Quando o poder político, o poder burocrático político despertou já era tarde demais.
Eu fui juntando comida. Umas latas. Conservas. Garrafões de água. Armas. Munições. Tentei encontrar-me com outros como eu. Mas não consegui. Estava tudo com medo. Ninguém se manifestava. Ninguém dizia nada com medo de dizer alguma coisa.
O Facebook, o Twitter e o Instagram, outrora tão cheios de revolucionários, estavam vazios de contestação. Voltaram as musiquinhas. Os gatinhos. Os bebés. As frases feitas e erradamente atribuídas a Gandhi e a Einstein.
No fim, acabei por me fechar em casa. Onde estou.
Descobri, finamente, o que todos aqueles eventos tinham a ligá-los. E, se não for apanhado entretanto, vou contar. Vou contar para memória futura. Para perceberem como chegámos aqui.
Agora eles andam de prédio em prédio. À cata de oposição. De gente do contra.
Eu estou aqui em casa. A casa está fechada. A porta da rua está fechada à chave e com os ferrolhos corridos. As janelas têm as persianas corridas, à excepção de uma, um pouco aberta, por onde escuto o que se passa na rua e por onde sai o fumo dos cigarros que me vão fazendo companhia.
Se nada acontecer entretanto, eles vão chegar aqui a casa. Vão abrir a porta da rua e vão descobrir-me. Mas nessa altura levo uma série deles comigo. É por isso que estou aqui no corredor. Barricado. Com as armas que arranjei. À espera. Com medo. Com medo mas decidido. Vou escrevendo tudo o que me lembro dos factos passados. Para que se lembrem. Para que a memória persista. Eu poderei ir, mas vou cá deixar memória. Antes de ir, vão também alguns deles. Antes de ir… Antes de ir mando-os à merda. Mando-os à merda à minha frente.

[escrito directamente no facebook em 2018/10/24]

Preciso Respirar

05:33’
Fumo um cigarro. O borrão vermelho ilumina-me a ponta do nariz. Estou na cama. A fumar. Nunca pensei que um dia fumasse na cama. Levanto-me e abro a janela. Não gosto do cheiro frio do tabaco. Não há luar. Está fresco. A pele arrepia-se mas sabe bem. O fumo sai pela janela. E então vejo. Vejo o que está a acontecer lá fora. Em silêncio. Nem os cães se ouvem. Nada. Tudo em silêncio. Mas não consigo descrever. Não consigo pensar. Um nó fecha-me a garganta. Não consigo respirar. Largo o resto do cigarro na rua. Fecho a janela. Deixo-me descair ao longo da parede. O coração está a correr uma maratona. Abro muito a boca. Que merda! E agora? O que vai acontecer agora? Estou assustado! Preciso respirar. Preciso respirar. Preciso respirar.

[escrito directamente no facebook em 2018/10/24]

Já Tive um Ferro de Passar Roupa mas Parti-o na Cabeça do Cão

Já tive um ferro. Um ferro de passar roupa. E passava roupa. Gostava de passar roupa. Gostava de estar ali sozinho, entre os vincos e o vapor de água, a pensar. Ajudava-me a pensar. Relaxava-me. Lixava-me as costas, ao obrigar-me a estar ali assim curvado sobre a tábua, mas relaxava-me. Acabei por parti-lo na cabeça do cão da vizinha. O cão vinha para aqui, para o quintal, mijar nos pneus do carro e comer-me as begónias. Um dia apanhou-me maldisposto, estava eu a passar roupa a ferro no alpendre, levou com o ferro em cima. Não lhe parti a cabeça. Fiz-lhe só um golpe. Nem precisou de ir ao veterinário. Mas foi remédio santo. Desde então nunca mais veio cá a este lado. O ferro é que se partiu. O ferro e duas lajes do alpendre.
E a vizinha também nunca mais falou comigo. Nunca mais veio cá a casa. Ela costumava vir cá jantar. Às vezes convidava-me para ir lá jantar, a casa dela. Passávamos alguns serões juntos. Acabaram-se os serões. E o resto que acontecia nesses serões. À conta da cabeça do cão.
Nunca mais comprei nenhum ferro de passar roupa. Foi ai para o canto da garagem. Fazer companhia ao aspirador que também não funciona.
Comecei a esticar a roupa em cima da cama e a dobrá-la com algum cuidado. Percebi que passar a roupa a ferro era um preciosismo pequeno-burguês. A roupa esticada em cima da cama, dobrada com cuidado, ficava igualmente bem. Obrigava-me a dobrar as costas um pouco mais. Fazia doer-me a coluna. Durou pouco, esta fase. Não tardei a deixar, definitivamente, de dobrar a roupa. Para quê?
Agora lavo-a. De vez em quando. Quando o tempo está bom. Para o sol a secar. E depois visto-a. Visto-a directamente depois de a lavar. Não precisa de mariquices.
A cama também já não está disponível para dobrar a roupa. É raro fazer a cama. Para quê? Levanto-me e depois deito-me. Qual a vantagem? Qual a necessidade? Ninguém vem cá a casa. Não tenho de mostrar nada a ninguém. Nem ninguém tem nada com isso. Afasto o edredão e levanto-me. Deito-me e puxo o edredão. Quando começa a cheirar mal, ponho os lençóis a lavar. Também não precisam de ser passados a ferro. Tem elásticos nas pontas. Ficam esticadinhos sobre o colchão. Não precisam de ser passados a ferro.
Ganhei muito tempo com estas decisões.
Ganhei muito tempo para ter ainda mais tempo para não fazer nada.
Estou ali assim, sentado no alpendre. A pensar. A pensar na vida. Filosoficamente, não é? Um dia ainda escrevo um livro. Sobre tudo o que penso, ali sentado no alpendre, a fumar um cigarro, a beber um copo de vinho tinto, e a ver o sol percorrer o céu de um lado ao outro, ou ver a chuva cair. Às vezes está mesmo muito frio. Outras vezes muito calor. A vida desenrola-se em ambientes extremos. Um dia escrevo sobre isso tudo. E edito um livro.
Ou publico-o no Facebook.

[escrito directamente no facebook em 2018/10/23]