Não Tangível

Não são rosas, senhor, são copos de vinho tinto, espesso e amargo, que despejo goela abaixo porque não posso deixar de o fazer. Não são rosas que trago no regaço. É a azia deste vinho carrascão que ingiro para matar a fome e as dores das fomes. São muitas, as fomes. Tantas quantas o mundo produz.
Caio. Levanto-me. Levanto-me com dificuldade. Levanto-me antes que passe um carro e me leve. Levanto-me com dificuldade. Não sei para que lado subir. Se para cima, se para baixo. Onde é o alto? Onde está a cabeça? A minha cabeça?
Vomito. Vomito-me vermelho vivo. Vomito sangue? Talvez de Cristo. Um Cristo azedo. Cheira mal. Cheiro mal.
Arrasto-me aos encontrões com a parede. Bato mais forte com a cabeça. Ela cai para a frente e bato com força. Quebro os óculos. E o nariz. Vejo tudo vermelho. Tenho sangue nos olhos. Os vidros dos óculos ferem-me. Onde é que me ferem? Onde estou ferido? É na alma. Na porra da alma. O único órgão não tangível que se quebra, que se fere, que se destrói. Que se perde no tempo. Que se perde no espaço. Que se perde nos corações dos outros. Nas mãos dos outros. No nojo dos outros.
Sento-me. Agarro-me. Tento não ser levado no giro do carrossel. Preciso de me concentrar. Mas a Terra gira, eu giro, tudo gira, o mundo é um carrossel a girar sem parar e regressa o enjoo. Volto a vomitar. Ou tento. Sai uma espuma. Uma espuma azeda. O corpo tem convulsões. Estalo como um chicote. Danço uma dança de morte. O corpo é elástico. De borracha. Estica-se até ao chão. De novo. E é melhor ficar por aqui. Não adianta tentar levantar-me se volto a cair. Não adianta. Nada adianta nada.
Descubro o céu. Um céu azul pincelado de branco num desfoque de falta de óculos. Não consigo ver bem. Vejo o que é possível. Formas sem linhas claras. E depois, uma cara. É uma cara. Uma cara sobre mim. Uma cara sobre a minha cara. Diz qualquer coisa. Não percebo. Estou sem óculos. Não consigo perceber o que a cara diz. A boca mexe-se. Eu pergunto És tu?, mas não tenho a certeza se alguém ouviu. Não tenho a certeza se falei. Não tenho a certeza se me fiz ouvir. Cá dentro, dentro de mim, está focado. E pergunto com clareza És tu? Mas não ouço resposta. Não sei. Cá fora tudo está desfocado e o som fanhoso. Um emaranhado de sons, de ruídos. Um zumbido que me fura os tímpanos. Uma orgia sonora. Uma orquestra de instrumentos alienígenas. Não percebo o som. Cacofónico.
O céu azul desapareceu. Há um sol. Dois sóis. Um céu branco. Uma cara que entra e sai da minha visão. Sinto uma picada no braço. Espetei-me nalguma coisa. Tenho medo de me ter espetado num prego. Um prego enferrujado. Tenho a vacina do Tétano em dia. Sinto-me preso. Estou preso? Ouço um apito. Um apito intermitente. O que é que está a acontecer? Onde é que estou? Quero vomitar. Quero vomitar esta dor que me aperta o peito. Quero um cigarro. Quero não estar aqui. Quero adormecer. Quero dormir.

[escrito directamente no facebook em 2023/08/14]

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