Isto Não É um Filme Americano

Divido-me em vários e às tantas já não sei que parte de mim sou. Enquanto tento montar um universo para escrever uma estória que vou transformar em argumento, escrevo realmente um outro argumento, ao mesmo tempo que faço um projecto para um documentário e remonto um filme do qual não estava satisfeito com a montagem anterior e do qual um terço do material da primeira montagem já foi para o lixo.
Já me confundo todo. Qual deles é que eu sou agora, neste momento? O que é que estou a fazer, afinal? Tudo! Estou a fazer tudo ao mesmo tempo. Vai dar merda. Ou sou um génio. Mas não sou um génio. Acredito em génios, mas não sou um deles. Ainda me lembro de ter visto, ao vivo, e no antigo estádio da Luz, o Eusébio a jogar; assisti a algumas conversas com o António Lobo Antunes; estive a preparar um filme num escritório ao lado do João César Monteiro que preparava A Comédia de Deus; cheguei a declamar poesia no Botequim, ao lado de Natália Correia. Sim, há génios que nos passam pela vida à velocidade da luz.
E com isto quero dizer o quê? Nada! Não quero dizer nada. A não ser que a minha vida é uma confusão de onde já não consigo sair. E a cada novo dia se confunde ainda mais, misturo mais trabalho, mais desejos, mais vontades estranhas de ser uma espécie de super-homem sem ter nascido em Krypton.
Ela chega a casa e prepara uma salada de alface, rúcula, tomate e laranja a que junta atum fresco, selado, cortado em pedaços, e que se estava a estragar no frigorífico. Ainda lhe perguntei onde tinha ido buscar o atum e ela respondeu Ao frigorífico. A sorrir perguntei-lhe Ao frigorífico de quem? Ao teu, respondeu. Não sei o que tenho em casa. Não sei o que faço. Não sei o que sou. Milagres acontecem.
Ela espalhou uma série de fotografias em cima da mesa da sala. Está a compor um livro. Eu olho as fotografias. Algumas são minhas. Não as fotografias. O objecto das fotografias. Numas estou nu. Estou nervoso por me expor assim. Mas não lhe digo nada. Ela está contente. As fotografias são muito boas. Até eu nem pareço eu. Mas sou. E sei que sou. Há gente que me irá reconhecer. Como é que irei lidar com isso?
Ela pede-me para escrever uns pequenos textos para o livro. Liberdade total. Diz que eu conheço as fotos. Mas não preciso escrever sobre elas. Nem sobre mim. Nem sobre ela. Não preciso escrever sobre nada, mas posso escrever sobre tudo, sobre aquilo que me apetecer e usar os vocábulos que entender e a gramática que quiser. Tenho carta branca para escrever o que bem entender.
Páro todos os trabalhos que estou a fazer, alguns deles com dead lines muito próximos. Encho um copo de vinho tinto. Acendo um cigarro. Sento-me em frente ao computador. Abro o Word. Olho para a página em branco. E começo a escrever. Mais tarde poderão ler o que escrevi no livro dela. Comprem-no. Vai valer a pena. Não pelas minhas palavras, sempre as mesmas, palavras pobres em contextos canhestros. Mas pelas fotografias dela.
Quando releio o que escrevo, percebo que misturei todas as coisas em que estava a trabalhar. Deito tudo fora.
Recomeço. Tenho dificuldade em concentrar-me. Ela chega por trás de mim. Abraça-me. Beija-me o pescoço. Eu arrepio-me. Belisca-me os mamilos. E eu recomeço a escrever. E vou por ali fora. E ela já cá não está. Já foi para a cama. Eu continuo aqui sentado, sinto-a a apertar-me os mamilos, mesmo se ela já cá não está, e escrevo e continuo a escrever, e de repente já não são pequenos textos para o livro dela. É uma estória minha em que ela é a personagem principal, Mas não lhe posso mostrar a estória. Não termina bem para ela. Nem para mim. Isto não é um filme americano onde os finais são sempre felizes. Na vida real, as estórias acabam quase sempre mal. Pelo menos comigo.

[escrito directamente no facebook em 2024/05/08]

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