Utilização do Conhecimento em Novas Situações

Nas traseiras da casa dos meus pais, por trás da garagem onde o meu pai guardava, religiosamente, todos os dias, o carro, a minha mãe cultivava um pequeno terreno, onde produzia tomates, feijão, batatas, batata-doce, alfaces, e onde tinha um pequeno galinheiro com galinhas, frangos, patos e uns poucos coelhos. Eram coisas para consumo próprio. Às vezes eu ia com a minha mãe e via-a a cavar o terreno para plantar ou semear os produtos que iam nascer mais tarde e fazer os regos para a passagem da água da rega. Ajudava a minha mãe a tratar da bicharada, dar milho às galinhas, aveia aos coelhos, e ia com ela mais abaixo, em terrenos baldios que havia para além do pequeno terreno que ela cultivava, apanhar ervas para os coelhos, ela com uma foice na mão e eu com um saco de serrapilheira para trazer as ervas que a minha mãe apanhava.
Hoje tenho um pequeno terreno em frente a casa. Um terreno que está ao deus-dará. Tem algumas oliveiras, umas laranjeiras e um loureiro, mas entre as árvores, cresce mato. Gostava de cultivar lá alguma coisa, tal como a minha mãe fazia. Mesmo tendo presente o meu acompanhamento do trabalho da minha mãe, não sei como fazer. Claro que posso aprender. Posso pedir ajuda a algum destes velhos com terrenos à volta da aldeia. Até posso procurar tutoriais na internet para me ajudar a aprender. Mas precisava de ter outro espírito que não tenho. Ou ainda não tenho. Pelo menos poderia amenizar a fome quando o mês estica para além do razoável. Mas as minhas mãos são mãos macias, mãos de quem lê e escreve, mãos de quem não faz trabalho pesado, mãos de menino da cidade caído por um acaso do destino numa aldeia com um terreno baldio nas mãos sem saber o que lhe fazer.
Acho que o que me incomoda mais é esta responsabilidade de passar a ter que tratar diariamente do terreno cultivado. Acho que tenho medo que acabe esta minha liberdade de não ter de cuidar de nada nem de ninguém. Os gatos e o cão já aprenderam a virar-se quando eu não estou em casa e não lhes posso acudir.
Abro o frigorífico e retiro metade de um melão. Corto duas fatias e dou pequenos golpes nas duas fatias. Regresso ao alpendre. Vou comendo os pequenos quadrados de melão enquanto ouço a música da festa. Hoje deve haver mais gente que ontem. E gente de fora. Há alguns carros parados lá em baixo, na berma da estrada.
Acabo de comer as fatias de melão em pedaços. Volto à cozinha e despejo as cascas no lixo. Vou à despensa e agarro numas batatas médias. Acendo um cigarro. Desço a alameda. Passo o portão e vou para a estrada. Passo para o outro lado. Baixo-me atrás do primeiro carro e enfio-lhe uma batata no tubo de escape. Repito a acção com os outros carros todos. Deito fora a beata. Faço uma mija na estrada. Regresso ao alpendre.
Sento-me no alpendre e espero. Espero pelo fim da festa. Não sei plantar batatas, mas sei utilizá-las. Acendo outro cigarro e sorrio. Às vezes sou um pequeno filho-da-puta.

[escrito directamente no facebook em 2023/08/19]

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