Cavalinho de Fogo

A minha vida nunca foi grande merda. Agora é inexistente. Passo os dias em casa. Já passava. Mas passava porque queria. Agora porque tenho de passar. Às vezes sento-me à janela de casa e olho as janelas das casas alheias. Há ali em frente, uma casa que faz esquina. Tem grandes janelas. Há luz dentro das janelas. E pessoas. Várias pessoas. Parece haver uma festa. Alguém abre uma das janelas e acende um cigarro. Fica à janela a fumar o cigarro. Mas vira-se para dentro e fala com quem está lá para dentro, naquele espaço luminoso e, aparentemente, alegre. Aqui, estou na penumbra. Na penumbra e em silêncio. Não me apetece fazer barulho. Aqueles são apartamentos de luxo, áreas espaçosas, muitas e grandes janelas, bons acabamentos, mobiliário exclusivo, muitos euros. É gente jovem, a que vive ali. Gente jovem com uma boa vida financeira. Eu já deixei passar a juventude sem conseguir fazer da minha vida qualquer coisa digna de referência. Não posso viver naquele lado da rua. É um salto que não consigo dar. Tenho a carteira rota.
Hoje é o primeiro dia de Carnaval. Pensei em ver um filme, mas não me sinto capaz. Tenho a cabeça na planta dos pés. Estou virado do avesso, é o que quero dizer. Não quero multidões e, ao mesmo tempo, preciso de respirar. Sinto um enorme sufoco, todos os dias, todo o dia. Vir aqui para a janela, de vidro aberto, respirar o ar frio que já se instalou na cidade, liberta-me os pulmões e faz-me relaxar. Relaxar o possível. O que é possível relaxar. Sempre de ouvido atento. Pronto para a eventualidade.
Hoje também marca o início do novo ano lunar chinês. O Ano do Dragão. Representa a sorte, a força e a saúde. Tudo o que preciso. E as pessoas deste signo, os nascidos nos anos de 1928, 1940, 1952, 1964, 1976, 1988, 2000, 2012 e 2024, são carismáticos, inteligentes, confiantes, poderosos e muito talentosos. Eu sou Cavalo de Fogo, uma variante do Cavalo que só acontece de sessenta em sessenta anos. Parece que sou destemido e amante da liberdade, independente e autoconfiante, alegre e muito feliz, com uma vida brilhante e muito activa. Faço uma pausa para me rir (estou a ser irónico). Descubro que os chineses tendiam a matar os filhos Cavalo de Fogo, porque podiam ser terríveis. Somos terríveis. Sou terrível. Não aceito com facilidade críticas nem conselhos. E interferências na minha vida pode deixar-me furioso.
Já estou furioso. Furioso comigo. Pergunto-me Como foi que acabei a falar em horóscopos? Estou à janela a olhar a festa do Gatsby do prédio em frente. A sala é maior que o apartamento onde estou. Acendo um cigarro. Não gostava de ser um Gatsby. Contento-me em ser um Cavalo de Fogo, um ser extraordinário que ainda não encontrou a extraordinária vida profetizada.
A minha vida nunca foi grande merda. Agora é inexistente. Não posso dormir até mais tarde aos fins-de-semana. Não posso ir jantar fora nem ir ao cinema. Não posso ir a concertos. Fico em casa. Começo a ler um livro e a página que começo fica a meio. Tento escrever, mas não passo do primeiro parágrafo. Vejo a informação na SIC Notícias, intermitentemente, e tenho acompanhado os debates entre os dirigentes partidários com acento na Assembleia da República, mas descubro que os verdadeiros políticos são os comentadores que querem descodificar os debates e falam durante horas sobre os quinze minutos de cada debatente, atrevendo-se a dar notas como se estivessem no liceu, o que não deixa de ser irónico se se pensar que os professores estão em luta pelos seus direitos, enquanto outros lhes tomam a simbologia despudoradamente.
A minha vida nunca foi grande merda. Como a vida da maioria das pessoas. Sentamo-nos à janela e vemos passar a vida alheia.

[escrito directamente no facebook em 2024/02/10]

Deixe um comentário