A Casa-de-Banho a Meio do Caminho

A casa-de-banho ficava a meio do caminho. De lá até à praia, ainda era um esticão. Era raro alguém ir da praia à casa-de-banho. Demasiado longe, demasiado calor, debaixo de um sol abrasador e sem uma única sombra de que se pudesse dizer Porra! Esta é uma boa sombra! Normalmente as pessoas limitavam-se a urinar no mar. Bastava olhar para as velhas a baixarem-se na pequena ondulação para perceber que estavam a urinar. Era um mau princípio, claro, mas ninguém dizia nada, ninguém discutia com ninguém, toda a gente fingia que não via, havia algumas censuras em surdina, sim, mas ninguém se atrevia a dizer, alto, o que quer que fosse. É aquilo que se dizia ser, uma questão cultural. Tínhamos sido ensinados assim, desde o tempo em que não havia casas-de-banho públicas junto às praias e as casas-de-banho dos estabelecimentos comerciais eram só para clientes.
Eu utilizava a casa-de-banho no regresso. Depois do dia inteiro na praia, na hora do regresso parava na casa-de-banho, para urinar, lavar as mãos, a cara, e, por vezes, encharcar a cabeça debaixo da torneira do lavatório.
Era uma casa-de-banho precária. Uma pequena estrutura rectângular com três portas, uma para mulheres, outra para homens e uma terceira para pessoas em cadeira-de-rodas. Não havia janelas, só as portas. Às vezes, ao final do dia, em dias de muito calor, as casas-de-banho exalavam um cheiro insuportável a urina. Um cheiro azedo. Não era sempre, mas era muitas vezes. Não sei quantas vezes por dia a casa-de-banho era limpa. Não tinha aqueles papéis do horário das limpezas assinado pelo responsável como nas casas-de-banho dos centros-comerciais. Mas nunca estavam muito sujas. Nunca deixei de as usar por uma questão de falta de limpeza.
Naquele dia, um dia igual aos outros dias, um dia sem nenhuma história até ao momento, fui à casa-de-banho no meu caminho de regresso a casa. Estava ainda sem a t-shirt vestida porque ainda estava muito calor e ali era ainda, tecnicamente, zona de praia. Entrei na casa-de-banho com o intuito de urinar e molhar-me, lavar as mãos e a cara e molhar a cabeça para aguentar melhor aquela temperatura até fazer o resto do trajecto até ao cais, onde iria apanhar o ferry de regresso, e reparei, pelo canto do olho, em alguém que estava agachado, num canto da casa-de-banho, debruçado sobre o que me parecia ser uma mochila, mas nem virei a cabeça nem o olhar para ver melhor, bastou perceber, pelo canto do olho, que estava ali alguém, mas nem me interessou quem era ou o que estava a fazer. Dirigi-me logo ao urinol e comecei a urinar o equivalente a quase dez horas de praia sem ter urinado uma única vez, estava mesmo numa fase de alívio por estar a urinar, quando tive uma sensação, senti alguém atrás de mim, ainda tentei virar a cabeça sem virar o corpo, mas nem fui a tempo, ouvi um estalito grave e senti algo a perfurar-me a cabeça, percebi logo depois que tinha sido um tiro, que eu tinha sido atingido com um tiro de revólver na cabeça e pensei Estou morto!, tudo antes de cair ao chão, desfeito, o meu sangue a pintar a parede em frente, eu a cair pesado no chão da casa-de-banho, sem respirar, com o coração parado e a minha vida interrompida.
O homem, tinha sido um homem que me tinha morto, tinha-se levantado da mochila com um revólver na mão e disparou sobre mim à queima-roupa, e antes ainda de eu cair, ele já estava a agarrar na mochila, numa caçadeira de canos serrados e saído pela porta da casa-de-banho dos homens, entrado na das mulheres, disparado também dois tiros do revólver e ter morto duas mulheres que lá estavam, e de ter saído pela porta da casa-de-banho das mulheres, ter entrado na dos deficientes, onde não estava ninguém, eu também nunca lá tinha visto ninguém, e depois ainda o percebi sair da casa-de-banho e rumar à praia onde ainda matou mais seis turistas, duas mulheres e quatro homens, nenhum deles criança, naqueles dias não havia muitas crianças na praia, ainda não era o tempo de férias das famílias, até ser dominado pelos nadadores-salvadores da concessão e ser entregue aos bombeiros de plantão, o mais próximo de uma autoridade que havia ali naquela ilha.
Nove pessoas tinham sido mortas na ilha naquele final de dia. Eu fui o primeiro. Sim, sei o que estão a pensar. Então, estou morto e estou a contar a história? Pois, eu também não entendo muito bem. Não sei o que é que se passa, mas a verdade é que já morri e ainda estou aqui a contar a história. E é o que faço. Pelo menos, enquanto me for possível.

[escrito directamente no facebook em 2023/06/26]

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