Coleccionar Cromos Repetidos

Os dias por aqui, estes últimos dias, os dias que antecedem a Passagem do Ano, tendem a arrastar-se, não acontece nada, eu não consigo fazer nada e parece que estou à espera que alguma coisa aconteça. Como se eu estivesse na espectativa. Como se estes últimos dias fossem dias de excepção, preparando-me algo de extraordinário, qualquer coisa de relevante, como se pudesse riscar todos os outros trezentos e tal dias que deixei lá para trás, porque era nestes últimos dias antes do final do ano que o ano iria valer a pena, e tudo o que não aconteceu até agora iria acontecer nestes dias, dias de fortuna e milagres, preparando, como um tapete vermelho, a entrada em grande neste ano novinho em folha, prestes a estrear, e a trazer com ele tudo aquilo que preciso, quero e desejo destes últimos anos em que tenho sido esquecido pelos ventos do destino.
Mas não. Nada parece indicar que se vai passar dessa forma. Na verdade, os dias arrastam-se numa miséria de que nem sei fugir. Perdi a vontade de fazer o que quer que fosse e não vislumbro mudanças de paradigma. Estes últimos dias não trazem nada de diferente dos outros dias do ano. Antes pelo contrário. Dos outros já sabia o que eram. Estes, mantive, até ao fim, até este momento, a ilusão de que poderiam ser qualquer coisa quando, na realidade, não são.
Arrasto-me por casa. O telemóvel não toca. Há menos gente a passear-se pelas redes sociais. Abro o frigorífico à espera de milagres. Volto para a cama. Quando me estou a deitar, de novo, o corpo nu a começar a ficar frio, ouço a sirene dos bombeiros, olho para o relógio na mesa-de-cabeceira e verifico que não é hora certa, não estão a assinalar a hora, algo aconteceu nas redondezas, talvez uma inundação, está a chover, mas é uma chuva molha-tolos, não causa inundações, não pode ser isso, talvez algum acidente, talvez algum desencarceramento, a chapa amolgada provoca dano e por vezes pode ser uma terrível prisão. Não me chego a deitar, volto à cozinha e espreito pela janela para a rua. Não vejo a aldeia, nem o quartel dos bombeiros, mas pelo menos espero para ver se acontece alguma coisa nas estradas que consigo ver, na encosta das montanhas, se eles passam aqui em frente, qualquer coisa.
Fico durante algum tempo aqui, de pé, nu, a começar a gelar, e não vejo nada, nada acontece e, entretanto, a sirene já se extinguiu, mas durou bastante tempo, alguns largos minutos.
Acendo um cigarro para me aquecer, mas não consigo aquecer o corpo. Vou à casa-de-banho e ligo o secador. Tenho um secador, mas não o uso. Deixo secar o cabelo ao vento. Uso o secador assim, para me aquecer quando estou demasiado frio, como agora, viro o secador para o meu corpo e deixo-o aquecer-se. Depois desligo o secador, apago o resto do cigarro debaixo de um fio de água da torneira do lavatório e deito a beata no cesto dos papéis da casa-de-banho.
Regresso à cama. Enfio-me lá dentro. Vejo as horas. Estamos a meio do dia. Um dia escuro e triste. Chove. Não muito, mas chove. Ainda não comi nada o dia inteiro. Nem tenho fome. Amanhã é o último dia do ano e a minha vida continua igual a todos os outros dias. Mais um dia sem nada de extraordinário na minha vida. Colecciono dias tristes. Este ano foi assim, para o ano logo se vê.

[escrito directamente no facebook em 2023/12/30]

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