Não É Tarde Nem É Cedo

Ninguém vai acreditar quando eu disser onde é que estou, o que estou a fazer e o que é que me aconteceu. É tão extraordinário que parece impossível. Ainda para mais, dadas as circunstâncias, nada disto parece ser aquilo que é. Mas é. Pelo menos, acho que não lhe posso fugir, por mais extraordinário que me pareça.
Então, é assim, estou, neste preciso momento, em queda do tabuleiro da Ponte 25 de Abril, a ponte sobre o Tejo, na ligação de Lisboa à margem sul, ia eu a caminho de Olhão, mas parece que já lá não vou chegar. O extraordinário disto tudo, é que parece que estou numa queda livre muito lenta, como quando colocamos os filmes em câmara-lenta para melhor perceber qualquer coisa. E enquanto o carro cai connosco lá dentro, desculpem, estou eu e ela, ainda não tinha dito, estou eu e ela dentro do carro, ela é que vinha a conduzir, mas não foi culpa dela estarmos assim a cair do tabuleiro da ponte, fomos apanhados numa troca de tiros entre dois carros que se perseguiam, mas estava eu a dizer, enquanto o carro cai em câmara-lenta, eu e os meus pensamentos estamos à velocidade normal, eu estou a contar-vos isto e o carro ainda vai em queda e ainda está muito longe do leito do rio e do embate. De qualquer forma, quando atingirmos o rio, deveremos morrer, os dois. É uma queda muito grande, a pressão que levamos na queda é imensa e o rio funciona como uma parede de cimento.
Como é que chegámos aqui?
Eu tinha ido à cidade. Tinha lá passado o dia. A tratar de coisas. Coisas chatas. Coisas burocráticas. Coisas para as quais preciso de muita calma e muito deixar andar (o que é difícil para mim), sabendo que o tempo, ah foda-se! o tempo nestes dias para tratar destas coisas, não conta. Aquilo é um sorvedouro de tempo. O mundo pode extinguir-se e a burocracia continuará a pôr-nos a cabeça em água. Portanto, tirei o dia para isto. Ao final do dia, ela foi lá buscar-me. Eu estava cansado, um bocado desanimado, mas ao mesmo tempo, até estava satisfeito porque tinha conseguido tratar de tudo, podia voltar a varrer todas aquelas coisas da cabeça, pelo menos até ao próximo ano, e nos próximos dias poderia voltar a ficar em casa e não ter de voltar à cidade, cada vez mais distante, impessoal e feia. Desculpem-me, mas é o que sinto da minha cidade (acho que ma querem tirar, por isso é que a estão a estragar, para que eu deixe de gostar dela e seja eu a abandoná-la, mas estão enganados comigo).
Entrei no carro e ela a conduzir. Normalmente sou eu que conduzo o carro. Eu gosto muito de conduzir, não que seja um maluquinho dos automóveis, não sou, em miúdo ainda via as provas de fórmula 1 porque passavam em sinal aberto, na RTP, da mesma forma que via os jogos de rugby, que gostava também bastante de ver, mas desde que deixaram de passar na RTP para toda a gente ver, deixei de me interessar. Quando adolescente também fui com uns grupos de malta ver passar o rally, mas fui mais pela brincadeira, pelo convívio e pelas patuscadas que pelos carros. Enfim, ela não faz questão de conduzir e, por isso, e por todas as outras coisas todas, eu é que conduzo o carro quando vamos os dois. Mas eu estava cansado, ela já estava ao volante, apanhou-me a meio da Avenida Heróis de Angola, que na verdade é só uma rua um pouco mais larga, mas não muito, entrei para o lugar do morto, sentei-me, ela arrancou no meio daquela confusão de fim de tarde, princípio da hora de ponta, o alarme do cinto começou a apitar, eu estiquei-me e dei-lhe um beijo nos lábios, aproveitando o movimento rápido dela desviar o olhar da estrada por breves micro-segundos, apertei o cinto, suspirei, e disse Estou cansado. Na rádio o Under Pressure dos Queen com o David Bowie (parece que se aproximam as datas de nascimento e morte do Bowie). Eu estava com fome. Tinha passado o dia só com uma tosta-mista, que até nem tinha sido nada de jeito, no bucho e disse Eu estava bem era a comer um peixinho grelhado em Olhão. E voltei a suspirar mas de descontração, depois de um dia chato como o raio. Ela perguntou-me Que horas são? e eu olhei no relógio de pulso e disse Cinco da tarde.
Ela guinou o volante enquanto dizia Não é tarde nem é cedo. E quando dei por ela, estávamos na A1 em direcção a sul.
Estávamos a passar perto de Santarém e vi passar a saída para a A13, auto-estrada que nos levaria directamente à A2 e que, num ápice, nos deixaria na A22, a famosa Via do Infante (parece que baixaram o valor das portagens da A22), e num instante estaríamos em Olhão, ainda a tempo de comer um peixinho grelhado, e eu disse-lhe Olha, deixaste passar a saída da A13. Ela deu uma pancada no volante, chateada, e disse Estava distraída! Saímos lá à frente e voltamos atrás. Eu abanei a cabeça e disse Não, esquece, vamos por Lisboa, vamos fazer a ponte 25 de Abril. Afinal, estamos nos cinquenta anos da revolução. Ela sorriu, acenou a cabeça e disse Ok.
Seguimos por ali fora. Eu ia dormitando. Não estou habituado a ir ao lado, no lugar do pendura, sem fazer nada. Dava-me a sonolência e os olhos fechavam-se. Depois um ou outro solavanco na estrada e regressava à vida. E ia assim, entre cá e lá, de vez em quando eu dizia-lhe qualquer coisa, para que não adormecesse, mas ela ia atenta à estrada, mais atenta que eu, com o rádio de fundo (estranho, o rádio estava na TSF, mas ouvia-se mais música que notícias), preocupada com a condução e com os condutores malucos que faziam slalon entre as outras viaturas na auto-estrada, quando fui abalroado por uma saraivada de tiros, ela começou aos gritos, o carros fazia ss, estávamos na Ponte 25 de Abril, Santos lá em baixo, ao fundo, dois carros a acelerar entre todos os outros, a dispararem tiros um ao outro, carros a pararem, a baterem uns nos outros, a capotar, gente a sair dos carros e fugir a correr pela ponte, uma mulher a ser atingida nas costas enquanto fugia, ela aos gritos, ao meu lado, lágrimas nos olhos e, de repente, uma salto no vazio, o chão fugiu-nos, o carro galgou as laterais e voou, literalmente voou da ponte para fora, e agora estamos a cair, estamos a cair da Ponte 25 de Abril em direcção ao Tejo, lá em baixo, mas é extraordinário como tenho tempo de pensar nisto tudo, e de poder contar o que está a acontecer enquanto estamos em queda, uma queda lenta, parece que estamos em câmara-lenta, o Tejo está lá em baixo e não se aproxima de nós, como se a queda fosse eterna. É extraordinário, isto.
É estranho, como eu comecei por dizer logo no início, como ainda estamos a cair. Ela continua a gritar, está assustada, claro, acho que ainda não se apercebeu da particularidade da nossa queda, ainda estamos a cair, continuamos longe do rio, já contei a estória, e acho que ainda tenho tempo para pensar numa maneira de me salvar, a mim e a ela. Sim, sinto que hoje não será a minha morte. Estou seguro disso. Até já tenho uma ideia para quando chegarmos ao fim da queda, que afinal é uma queda como são todas as quedas, sem fim, sem fundo, sempre a cair, a minha vida é uma emoção constante, sempre em queda, sempre entre a vida e a morte, afinal, a nossa condição de humanos, mas esta queda é mesmo extraordinária, algo que só a mim poderia acontecer, e se eu amanhã não voltar cá para contar outra estória, uma destas estórias da noite, é porque afinal estou enganado e as coisas correram mal para nós, mas estou convencido que ainda não é desta que se vão livrar de mim. Sou carne dura. E vou continuar por cá ainda durante muito tempo. Esta queda, ora esta queda é uma brincadeira de crianças.

[escrito directamente no facebook em 2024/01/03]

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