Dias de Sol

Os piores dias são estes, de sol cheio pendurado no azul celeste. O calor que entra pelas portadas abertas das janelas e o canto dos pássaros que se tornam uma orquestra monumental a perfurar-me o cérebro. Tanta alegria enjoa-me.
Imagino as famílias a fazerem farnel para o piquenique nos pinhais a caminho da praia. Também eu já fiz muitos desses piqueniques familiares. A mala-térmica com bebidas frias, a cerveja e a Coca-Cola, a fruta sumarenta, as uvas, as rodelas de ananás, as nêsperas. Depois, acomodados num cesto de vime, um arroz de miúdos, uma feijoada feita de véspera, um cozido à portuguesa. A malta tratava-se bem. Armavam-se as mesas de pvc e alumínio, criadas de propósito para estes propósitos, as cadeiras mini, a manta no chão, uma bola de futebol, uma rádio a transmitir música popular e, mais tarde, depois da sesta debaixo das braças dos pinheiros, o relato da bola, o Benfica, o Sporting, o Porto, é golo, é golo, é golo! Antes dos grandes incêndios, também se faziam sardinhadas nos parques de repouso, com mesas de pedra ou madeira, uma churrasqueira de tijolo e cimento que se destacava no meio de todo o verde, e que tinha de se deixar como se tinha encontrado, o bem público é de todos para todos, grupos de amigos a beberem cerveja fresca, a cantarem canções dos seus gloriosos anos de juventude e a lareira a queimar carvão para fazer brasas e assar as sardinhas, ainda não é tempo delas, mas já se encontra nos hipermercados, não é grande coisa, claro, é seca, espapaçada, mas serve para o ritual, um tacho a cozer batatas, os pimentos a estalarem ao lado das sardinhas, amigos de longa data, mas agora não, agora as sardinhas comem-se em casa, é preciso minimizar danos, o tempo não está para riscos, e qualquer fagulha pode levar a um crime ambiental e destruir aquilo que é de todos. Os incêndios dos últimos anos tiraram estas áreas de lazer a quem gosta de se deitar à sombra no meio do mato, a ouvir o murmurar da natureza e a recuperar forças para mais uma terrível Segunda-feira.
Tenho saudades desses tempos, do meu fascínio pelas pequenas cobras-de-água que deslizavam pelos ribeiros no meio do pinhal e do medo da minha mãe que queria saber sempre onde é que eu estava, de rissol de peixe na mão, a observar um bicharoco qualquer, enquanto esperava pela chamada para o almoço sentados naquelas mesas em miniatura de que eu tanto gostava. Parecia que, por uma vez, o mundo estava à minha dimensão.
Agora, os piores dias são estes. Já não há piqueniques. Já não há feijoada nem cozido à portuguesa. Agora estou metido aqui dentro de casa, mal consigo abrir os olhos entre um espirro e outro e os vómitos que a expectoração, este muco que anda aqui, para cima e para baixo, me vai produzindo cada vez mais intensamente, até eu terminar ajoelhado junto à sanita a deitar fora uma panela fervilhante de uma pasta mucosa, esverdeada, que me deixa os pulmões aliviados por breves momentos, mas que logo voltam a estar completamente atulhados. Tudo isto me cansa e dificulta a respiração. Tomo o Trixeo mas tenho de recorrer ao SOS do Ventilan, e nenhum dos dois chega. É difícil respirar. Tenho de manter o tronco elevado e direito. Opto por estar sentado nas cadeiras da cozinha em vez de na cama onde, com certeza, devia estar. Tomo um Antigrippine com chá de limão e uma colher de mel do produtor. Enfio também um Ben-U-Ron. Dói-me a cabeça. Dói-me a caixa-torácica. Os ouvidos estão barulhentos. O nariz colecciona estalactites. O corpo treme. Falta-me o ar. Tenho fome mas não consigo comer. Gostava de chupar uma laranja. Olho para a fruteira e para as laranjas lá repousadas. Olho para a gaveta das facas, ao fundo da cozinha. E espero que o destino faça algo por mim. Mas não me levanto. Continuo aqui sentado, na mesa da cozinha, enquanto lá fora, este dia convidativo estará a encher a marginal de Nazaré de gente a correr para os gelados, as sardinhas antes de tempo e as caldeiradas. Os pinhais estarão desertos porque nem pinheiros agora têm. Não há mais piqueniques nem mantas no chão nem sestas ao fresco da natureza. Não há mais nada. Só memórias. E também elas se irão desvanecendo com o tempo. É inevitável.

[escrito directamente no facebook em 2023/04/22]

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