A Caça

Foram descobertos uns casebres, lá mais para baixo, para o sul, para junto de umas terras de trabalho agrícola sazonal. Os casebres serviam para albergar os trabalhadores, migrantes a maior parte deles, ilegais alguns, que trabalham à jorna na apanha de produtos da terra: morangos, uvas, maçãs, batata, azeitonas, flores e o mais que houver consoante a época. Mas os casebres não se limitavam a ser um depósito onde esta gente, quase escrava, descarregada ao monte, uns em cima dos outros, que transita de quinta para quinta, de herdade para herdade, para descansar os corpos depois de dez ou mais horas debaixo do sol a apanhar o que nos vai cair no prato, mas também tinham de pagar por eles, pelos casebres. Pelas enxergas que lhes servem de cama. Beliches. Camas amontoadas, umas ao lado das outras. Dez ou vinte camas numa divisão. Tudo a respirar o cheiro uns-dos-outros que isto são animais e não precisam de outras condições de vida. É preciso servir o salário baixo, baixinho, rasteiro, senão é impossível manter a herdade, o cultivo, a produção, não é? e depois os senhores ameaçam sempre com a ida para outros lados, para ir explorar outros migrantes noutros lados se não os deixam fazerem o que querem fazer aqui, não é?
Leio a notícia em vários jornais e não tenho reacção. Primeiro porque não me serve de novidade. Isto não é de agora, pois não? Depois porque já espero este tipo de actuação de uma parte das pessoas muito empreendedoras. Há gente que não se importa de explorar os outros em nome do futuro, do desenvolvimento e da produção. O globalismo, contam. Há muita gente à procura do mesmo, gritam. Como se fosse inevitável. Como se fosse uma necessidade premente. Como se fosse uma razão de vida. Não é! No fundo, é tudo uma gananciosa ganância. Mais, mais. Quero muito mais, cantavam os Xutos & Pontapés, e tinham razão, é isto que algumas pessoas querem
E dizes tu que é meu amigo
Que me dás tudo o que eu preciso
Quero mais
Quero muito mais
E dizes tu que és meu patrão
Tenho muita sorte em não dormir no chão
É o que tu dizes
É o que tu dizes
O progresso não justifica tudo. O desejo de ir para Marte, os custos de ir para Marte, não são comportáveis enquanto houver gente com fome e sem uma casa na Terra. Ou somos Homens ou não. E dizer isto não é ser comunista. É ser Homem.
Agarro na espingarda. A espingarda que tenho escondida no fundo do guarda-roupa. Enfio a espingarda numa saco preto, comprido, algumas munições e coloco-o no porta-bagagens, coberto por uma manta. Fecho a casa à chave e saio com o carro. Vou para sul. Vou à caça.
Antes vou parar no Bigodes e comer uma bifana e beber uma Sagres média. Fumo um cigarro enquanto bebo um café e, depois, sigo viagem para baixo. Há quem vá para sul para fazer férias. Eu vou à caça. Nunca fui à caça. Vou agora. Mas primeiro, o Bigodes.

[escrito directamente no facebook em 2021/05/02]

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