[continuação]
Passo por sítios que já conheci. Ao longo da minha já longa vida, já estive numa grande parte destes sítios, Sagres, Lagos, Portimão e a Praia da Rocha, Armação de Pêra, Albufeira, a primeira vez que vim para o Algarve, ainda com os meus pais, fui para a Praia da Oura. Nunca mais lá voltei. Mas gostava mais do Sotavento algarvio, Olhão, Santa Luzia, Tavira, Cacela Velha, Cabanas, Monte Gordo e Vila Real de Santo António onde apanhava o ferry para ir a Ayamonte comer camarões e navalheiras bem mais barato que em Portugal. Bons tempos, aqueles, em que ainda tínhamos vida e não lhe ligávamos muito, inconstantes no amor, impiedosos, cobradores, nunca estávamos contentes, nunca satisfeitos, a vida não estava ao nosso nível. Era poucochinha. Olho agora, a minha volta, e dava tudo para voltar lá para trás. Até para o ano em que reprovei na escola. O ano em que caí de bicicleta e parti a perna. O ano em que a minha primeira namorada me deixou. Qualquer coisa. Qualquer época da minha vida, por mais triste que tivesse sido, foi bem melhor que estes tempos em que tentamos sobreviver já sem muita vontade. E volto a pensar nela. Sinto-me abandonado. Toda a vida fui um abandonado. Primeiro pelos meus pais, depois pelos meus amigos e agora por ela. Claro que não foi ela que me abandonou. Foi-me tirada. Foi-me roubada à força. E isso irritou-me. Irritou-me muito. Tenho aguentado muita merda na vida. Até aos mísseis sobrevivi, embora contra-vontade. Mas agora. Agora! Não, agora não. Agora despertaram em mim a besta que também sou. Sou uma besta. Não se cruzem comigo. Não agora. Estou fodido.
Páro a moto. Estou algures na costa algarvia. Tenho visto muita destruição. Vi algumas pessoas. Andam toda com medo. Fogem de mim. Não me cruzei com nenhum carro, nem mota. Não vi nenhum motor a trabalhar. Nem sequer vi ninguém de bicicleta. Via algumas pessoas a pé. Andam na respiga. Andam à procura de víveres. Vasculham no lixo, nos montes de entulho, nos restos destruídos. São pessoas que estão escondidas sozinhas. Em buracos. Algumas em grupo. Ainda não encontrei os motards. Esses não têm medo. Esses provocam medo. Tenho de continuar em frente, até Vila Real de Santo António. Depois volto para trás pelo interior. Talvez fazer a A22 e tentar procurar uma multidão. As motos. Um grupo não passa despercebido. Um grupo dá nas vistas. Um grupo é barulho e confusão.
As lojas, por aqui, estão mais vazias que lá para cima. Talvez haja mais gente cá em baixo. Talvez tenham morrido menos. Talvez haja mais gente para alimentar, mais gente a tentar sobreviver.
Retomo a viagem. É bom fazer esta viagem de moto. Tenho pena de não ter feito esta viagem assim, de moto, antes. No tempo em que as coisas ainda eram normais. No tempo em que éramos infelizes porque éramos parvos. O Sol estava lá em cima, a Lua também, Agosto era o mês de Verão e o Euromilhões só saía aos outros. Coisas normais. A vida como ela era. Agora… Agora está tudo fodido, eu estou fodido, o mundo está fodido, tudo está fodido e já não resta futuro. Oh, foda-se!
Volto a parar a moto. Não saio de cima dela. Acendo um cigarro. E fico assim, em cima da moto, a fumar um cigarro, a olhar para ontem, a pensar nela e como a nossa vida era mágica e maravilhosa, mesmo que às vezes achássemos que não.
Choro. Não consigo escapar a estas merdas. Sinto um arrepio pelas costas. O peito cheio de ar, acho que estou com ansiedade, tenho de tomar um Xanax, tenho um bom fornecimento de Xanax e Zolpidem que arranjei numa farmácia. Às vezes preciso de me acalmar. Fico ansioso nem sei porquê. São estes tempos. Tempos de merda. Engulo um Xanax. Bebo um gole de água. Continuo a fumar o cigarro.
Vejo uma coluna de fumo. Para o interior. Não muito longe do litoral. Mas para dentro. Ninguém faz assim tanto fumo se não se sentir seguro. E ninguém se sente assim tão seguro. A não ser que se sinta seguro.
Deito fora o cigarro, limpo as lágrimas às costas da mão e arranco com a moto. Arranco em direcção à coluna de fumo. E levo os dentes cerrados.
[continua]
[escrito directamente no facebook em 2024/03/23]