O Ano Zero, capítulo treze

[continuação]

Passo por sítios que já conheci. Ao longo da minha já longa vida, já estive numa grande parte destes sítios, Sagres, Lagos, Portimão e a Praia da Rocha, Armação de Pêra, Albufeira, a primeira vez que vim para o Algarve, ainda com os meus pais, fui para a Praia da Oura. Nunca mais lá voltei. Mas gostava mais do Sotavento algarvio, Olhão, Santa Luzia, Tavira, Cacela Velha, Cabanas, Monte Gordo e Vila Real de Santo António onde apanhava o ferry para ir a Ayamonte comer camarões e navalheiras bem mais barato que em Portugal. Bons tempos, aqueles, em que ainda tínhamos vida e não lhe ligávamos muito, inconstantes no amor, impiedosos, cobradores, nunca estávamos contentes, nunca satisfeitos, a vida não estava ao nosso nível. Era poucochinha. Olho agora, a minha volta, e dava tudo para voltar lá para trás. Até para o ano em que reprovei na escola. O ano em que caí de bicicleta e parti a perna. O ano em que a minha primeira namorada me deixou. Qualquer coisa. Qualquer época da minha vida, por mais triste que tivesse sido, foi bem melhor que estes tempos em que tentamos sobreviver já sem muita vontade. E volto a pensar nela. Sinto-me abandonado. Toda a vida fui um abandonado. Primeiro pelos meus pais, depois pelos meus amigos e agora por ela. Claro que não foi ela que me abandonou. Foi-me tirada. Foi-me roubada à força. E isso irritou-me. Irritou-me muito. Tenho aguentado muita merda na vida. Até aos mísseis sobrevivi, embora contra-vontade. Mas agora. Agora! Não, agora não. Agora despertaram em mim a besta que também sou. Sou uma besta. Não se cruzem comigo. Não agora. Estou fodido.
Páro a moto. Estou algures na costa algarvia. Tenho visto muita destruição. Vi algumas pessoas. Andam toda com medo. Fogem de mim. Não me cruzei com nenhum carro, nem mota. Não vi nenhum motor a trabalhar. Nem sequer vi ninguém de bicicleta. Via algumas pessoas a pé. Andam na respiga. Andam à procura de víveres. Vasculham no lixo, nos montes de entulho, nos restos destruídos. São pessoas que estão escondidas sozinhas. Em buracos. Algumas em grupo. Ainda não encontrei os motards. Esses não têm medo. Esses provocam medo. Tenho de continuar em frente, até Vila Real de Santo António. Depois volto para trás pelo interior. Talvez fazer a A22 e tentar procurar uma multidão. As motos. Um grupo não passa despercebido. Um grupo dá nas vistas. Um grupo é barulho e confusão.
As lojas, por aqui, estão mais vazias que lá para cima. Talvez haja mais gente cá em baixo. Talvez tenham morrido menos. Talvez haja mais gente para alimentar, mais gente a tentar sobreviver.
Retomo a viagem. É bom fazer esta viagem de moto. Tenho pena de não ter feito esta viagem assim, de moto, antes. No tempo em que as coisas ainda eram normais. No tempo em que éramos infelizes porque éramos parvos. O Sol estava lá em cima, a Lua também, Agosto era o mês de Verão e o Euromilhões só saía aos outros. Coisas normais. A vida como ela era. Agora… Agora está tudo fodido, eu estou fodido, o mundo está fodido, tudo está fodido e já não resta futuro. Oh, foda-se!
Volto a parar a moto. Não saio de cima dela. Acendo um cigarro. E fico assim, em cima da moto, a fumar um cigarro, a olhar para ontem, a pensar nela e como a nossa vida era mágica e maravilhosa, mesmo que às vezes achássemos que não.
Choro. Não consigo escapar a estas merdas. Sinto um arrepio pelas costas. O peito cheio de ar, acho que estou com ansiedade, tenho de tomar um Xanax, tenho um bom fornecimento de Xanax e Zolpidem que arranjei numa farmácia. Às vezes preciso de me acalmar. Fico ansioso nem sei porquê. São estes tempos. Tempos de merda. Engulo um Xanax. Bebo um gole de água. Continuo a fumar o cigarro.
Vejo uma coluna de fumo. Para o interior. Não muito longe do litoral. Mas para dentro. Ninguém faz assim tanto fumo se não se sentir seguro. E ninguém se sente assim tão seguro. A não ser que se sinta seguro.
Deito fora o cigarro, limpo as lágrimas às costas da mão e arranco com a moto. Arranco em direcção à coluna de fumo. E levo os dentes cerrados.

[continua]

[escrito directamente no facebook em 2024/03/23]

O Ano Zero, capítulo doze

[continua]

É de noite e eu vou estrada fora para sul. Vou à procura deles. Não hão-de-estar longe. E devo percebê-los à distância. São demasiados para passarem despercebidos. São demasiados para serem silenciosos. São demasiado para não quererem dar nas vistas. É assim que se incute o medo. É assim que nascem as estórias de terror que se contam à noite à lareira, se houvesse gente que se reunisse à noite, em volta de uma lareira, como dantes os escuteiros, ainda andei umas semanas nos escuteiros, depois cansei-me daquilo, nem cheguei a fazer nenhum acampamento. Mas via nos filmes e lia nos livros. Muito filmes de terror começavam assim. Com escuteiros ou estudantes em volta de uma fogueira a contar uma estória de terror qualquer para assustar os outros e, quando se apercebiam, estavam mesmo a ser personagens de um filme de terror.
É estranho ir assim na estrada, de moto, durante a noite, sem me cruzar com nenhuma outra viatura, sem ver vivalma. Vou vendo alguma destruição, mas não muita. Os mísseis não chegaram aqui, mas as radiações sim. Não tenho visto ninguém. Só aqueles motards. Aqueles com quem me cruzei. Aqueles que me mataram. E reprimo um soluço que me faz chegar as lágrimas aos olhos. Se alguém me visse, poderia desculpar-me com alguma poeira no ar, mas não há ninguém para me ver e não tenho de me desculpar a ninguém.
Já se veem algumas estrelas. Mas ainda há algumas nuvens. Altas. Aqui em baixo, nem uma luzinha. Quem anda na rua deve fazer como eu. Ser invisível. A luz desligada. Sigo com a pouca claridade do luar e o branco dos traços rodoviários. Não vou depressa. Também não quero chegar a lado nenhum de noite. Não quero fazer barulho. Não quero que me ouçam. Tenho de ser uma surpresa.
Não sei se já cheguei ao Algarve, mas vou andando até ao mar. E depois espero por amanhã. E, durante o dia, vou varrer o Algarve, no litoral para dentro. Hei-de encontrá-los. Não vai ser difícil.
E depois?
E depois de os encontrar?
O que é que vou fazer quando os encontrar? Não sei. Não sei o que é que hei-de fazer. Mas não posso aparecer lá assim, à herói, sujeito a levar com um balázio. No bucho. Isso, se tiver sorte. Uma morte limpa e rápida. Mas se não for assim, é melhor nem pensar nas alternativas. Tenho de pensar nalguma coisa. Mas ainda tenho algum tempo até lá para pensar no que fazer.
Novo soluço. Os olhos enchem-se de lágrimas. Deixo de ver a estrada. Páro a moto na berma da estrada. Desligo-a. Saio de cima dela. Limpo os olhos. Acendo um cigarro e dou alguns passos em volta da moto. Penso nela. E choro mais. As saudades inundam-me o peito. Tenho dificuldades em respirar. Abro a boca com se quisesse abocanhar o ar. Deixo o cigarro consumir-se na mão sem me lembrar que o tenho. Só dou por ele quando me queima, depois de se consumir todo, sozinho. Abano a mão e a beata voa dos meus dedos. Volto à moto. Encosto-me a ela. Tento serenar. Continuo a pensar nela, nos tempos antes, quando éramos felizes. Até penso nalguns tempos depois, quando ela tentava manter-me à tona quando o desespero tomava conta de mim. E sinto uma vontade enorme de ir ter com ela. Mas não sou religioso. Não acredito na vida depois da morte. Não acredito no renascimento, nem na reencarnação. Não acredito no paraíso nem no inferno. Sei que não vamos encontrar-nos nunca mais. Mas gostava de acreditar. Agora gostava de acreditar e se soubesse que podia ir ter com ela, lançava-me já daqui para baixo. Sim, eu ouço as ondas a baterem lá em baixo. A queda pode não ser muito grande, mas as ondas abaterem nas rochas, parece-me muito violento. Suficientemente violento. Mas não. Não a vou encontrar. Não vou voltar a vê-la. Não vou voltar a abraçá-la. Não vou voltar a beijá-la. Não lhe vou ouvir a voz, doce, a acalmar-me quando eu deixava o nervosismo tomar conta de mim. Ela acalmava-me a fera. Agora já não está cá. E a fera está de novo a sair. Não, não vou ter com ela. Vou vingá-la. E, depois de a vingar, posso voltar aqui, ou a outro lado, ou até esquecer esta vontade.
Deito fora a beata.
Volto a subir para cima da moto. E arranco, de novo, em direcção ao sul. Tenho negócios lá em baixo. O Algarve sempre foi uma terra de negócios. Este é mais um. Talvez ainda consiga ir dormir a Sagres. Sim, talvez. Já estou no Algarve?

[continua]

[escrito directamente nno facebook em 2024/03/22]

Como É que Eu Saio Daqui?

Ela vai à fisioterapia e eu aguardo-a no carro. Não há lugares perto da clínica e tenho de andar às voltas, primeiro voltas pequenas, em torno do pequeno parque de estacionamento à frente da clínica e depois vou alargando a área de busca, cada vez mais, até terminar o meu caminho no outro lado da cidade, junto ao rio, parado numa berma selvagem, sem passeio, um estreito carreiro de terra batida e arvoredo como mato a resvalar para o rio. Páro o carro. Saio. Levo a pequena mochila que trago sempre comigo, com o iPad, um ou dois livros, um caderno Moleskine, uma caneta de tinta permanente da Kaweco, dois maços de cigarros e outras merdas que me vou lembrando, que encontro, coisas que compro e mando lá para dentro, perco-lhes o norte e mais tarde vou descobri-las como novidades e, muitas vezes até pergunto Como é que vieram aqui parar?
Caminho pela berma selvagem até chegar à rotunda. Depois já há passeio que me leva até aos Jardins do Lis, umas esplanadas sem jeiteira nenhuma mas onde há sempre lugar, internet e cerveja. Pode-se fumar. Às vezes há rissóis. Sento-me a uma mesa e tiro um livro. Arrependo-me e tiro o iPad. Há uma coisa que preciso de escrever e guardar. É um pequeno facto que pode tornar-se numa estória. Aparece uma miúda nova, com sotaque brasileiro. Aproxima-se de mim e pergunta o que é que eu quero. Peço uma Sagres média. A miúda vai lá dentro e regressa. Deixa um papel com o valor do consumo. Eu começo a escrever no iPad. Depois guardo nos Arquivos. Agarro no copo e descubro que já bebi a cerveja. Levanto o braço para chamar a atenção da miúda. Ela olha para mim e eu levanto a garrafa para ela perceber. Ela percebe. Traz-me outra. Eu agradeço. Depois lembro-me de mais coisas que quero acrescentar ao que tinha escrito. Acendo um cigarro e retomo o raciocínio. Recomeço a escrever e vou por ali fora. Os meus dedos correm desgraçados pelas teclas digitais do iPad. Reparo nesta minha não-normal velocidade de escrita, e penso que dava um bom dactilógrafo. Mas também me surpreende a velocidade de raciocínio. A estória já deixou de ser um facto, e já é, de facto, uma estória. Ela constrói-se em directo. Não estou a pensar nela. Não a estou a construir. Ela constrói-se. Os meus dedos escrevem palavras que formam frases que completam sentidos, ambientes, razões. Eu já perdi o fio da estória, os meus dedos não. Eu corro atrás deles. Estou a descobrir a estória que estou a escrever à medida que estou a escrevê-la. Estou fascinado. Não páro de escrever. A estória já não é um conto nem uma novela, a estória já vai a caminho do romance, não sei do que trata mas estou a gostar do que estou a ler à medida que a escrevo e que ela nasce. Não deixa de ser bizarro, contudo. Parece uma coisa do outro mundo.
Levanto a cabeça e não reconheço o sítio onde estou. Os dedos começam a abrandar a velocidade de escrita. Ainda escrevo todo um período inteiro só a tentar parar de escrever. Depois páro e reparo que tenho os dedos em sangue. Levanto a cabeça e não estou na esplanada nos Jardins do Lis. Não sei onde estou. Estou sentado a uma mesa, de uma esplanada, mas não é a mesma. O espaço é idêntico, mas é outro. As personagens não parecem seres-humanos. Ou se o são, não são como eu estou habituado a vê-los. Tenho o coração a bater muito rápido. Acho que estou assustado, mas não tenho a certeza. Talvez esteja a dormir. Talvez esteja a alucinar. Lá fora é noite. Tenho de a ir buscar. Ela já deve ter acabado a fisioterapia. Levanto-me da mesa. Arrumo o iPad na mochila. Saio do café. Corro até o rio, mas não há rio. Correm por lá linhas hertzianas coloridas. O quê? Sim, parece que é isso que corre por lá. Não sei como é que sei o que é, mas na verdade, sei. Fluiu-me ao pensamento. Corro ao longo das linhas hertzianas coloridas até ao sítio onde deixei o carro, mas não encontro o sítio nem o carro. É como se eu tivesse saltado de dimensão. Onde estou? Tento falar mas não consigo emitir nenhum som. Olho em volta e ninguém fala, embora me pareça ouvir conversas, muitas conversas, conversas desconexas, todas ao mesmo tempo, umas mais alto que outras. Mas não vejo ninguém a falar, muito menos a conversar. Ninguém abre a boca. Depois percebo. As conversas que ouço estão na minha cabeça. As pessoas comunicam por telepatia, ou qualquer coisa do género. Talvez seja algo de que não conheço o conceito. Algo novo. Dou voltas e descubro-me perdido. Não sei onde estou. Tenho de a ir buscar. Mas não sei como sair daqui.
Ouve-se uma sirene e vejo toda a gente a correr, desesperada, e entrar dentro de umas espécies de portas no chão. Vejo medo nas pessoas e corro como elas. Corro atrás delas. E entro, como elas, dentro de uma das portas.
Aqui dentro é a escuridão total. O silêncio absoluto. Não vejo nem ouço ninguém. Parece-me que estou sozinho. Sozinho aqui, seja lá o que for isto. Tenho medo de me mexer. Posso cair. Pisar alguma coisa. Bater, com a cara, nalguma coisa. Fico quieto. Parado. Sento-me no chão. E espero.
Espero.
Espero.

Espero.
Desespero.
Continuo sem ver e sem ouvir ninguém.
Como é que eu saio daqui?

[escrito directamente no facebook em 2024/01/11]

O Jogo É Só uma Desculpa para Comer uma Bifana

Estou em plena leitura de um texto que já nem sei o que é, já o comecei a ler por três vezes e das três vezes a cabeça voa-me não sei para onde tal é o meu interesse na leitura do texto, nem sei porque estou a tentar lê-lo, nem sei o que me levou a ele, é um texto que tenho guardado no computador, não é nada caído do céu numa qualquer rede social, é algo que deve ter-me chamado a atenção por qualquer coisa que já não sei o que é, mas começo a lê-lo e esqueço o que leio, nem sei o que estou a ler, o que já li e reli, quando o telefone toca e eu sinto-me contente por poder parar a tentativa de uma leitura que, obviamente, não quero fazer, e eu vejo no visor que é ela e atendo o telefone e ela diz Hoje joga o Benfica, e eu aceno a cabeça e depois percebo que não estamos no FaceTime, ela não está a ver-me e eu pigarreio, não falo desde manhã, quando tomámos o pequeno-almoço juntos, tomamos o pequeno-almoço sempre juntos, e depois dela sair de casa não falo com mais ninguém e a minha voz custa a sair, como o primeiro café da máquina, e eu pigarreio, aclaro a garganta e digo Sim, e ela, que já estava à espera da minha confirmação pergunta logo Não queres ir comer uma bifana? e eu percebo que a bifana a que se refere é na Casa do Benfica na Batalha, onde as bifanas são grandes e boas e baratas, e eu volto a acenar, volto a lembrar que não estamos no FaceTime e volto a responder Sim, e percebo que estou muito lacónico e acrescento Boa ideia, ouço-lhe uma gargalhada e diz Beijo e eu respondo Outro e desligamos os telefones, ela regressa ao trabalho dela e eu olho para o documento que estava a tentar ler e despacho-o para o lixo, abro o YouTube, aparece-me o clip Kisses dos Slowdive e eu levanto-me da mesa e vou para o meio da cozinha dançar como dançava nos anos oitenta no Alibi, ali por baixo do Centro Comercial Maringá, o nome de uma cidade brasileira geminada com Leiria, sabe-se lá porquê, se calhar até há uma razão, eu é que a desconheço, às vezes também sou um pouco burro, mas pelo menos serviu para nome de Centro Comercial e evitar os tão muito em voga na cidade, Lis, Leiria e D. Dinis, pois não há mais nada e a imaginação não se ensina nas escolas, só as criancinhas a pintarem dentro das linhas para serem obedientes e quadradas.
Perdi-me… Ah!
Já são sete horas da tarde. Sinto o carro a subir a alameda. Ouço-o a parar debaixo do telheiro. A porta a abrir. A porta a fechar. Passos na calçada de pedra, nos degraus do alpendre. A chave na fechadura. Ela a entrar na cozinha. Não me vê. Não sabe que eu estou na casa-de-banho. Puxo o autoclismo e saio para o corredor. Ela está encostada a uma das paredes a fumar um cigarro. Eu chego-me a ela e dou-lhe um beijo nos lábios. Ela avisa Vou tomar um duche rápido. Eu regresso à cozinha. Estou pronto para sair. Espero por ela. Vou ao congelador buscar a garrafa de vodka. Faço dois shots. Volto à casa-de-banho. Ela está debaixo do chuveiro. Vê-me com os shots na mão e estica o braço. Dou-lhe um copo. Batemos num brinde. Despejamos de uma vez. Eu faço Ahhhh! ela não sei. Não consigo ouvi-la debaixo de água. Volto para a cozinha e bebo mais dois shots. Guardo a garrafa no congelador. Acendo um cigarro e planto-me em frente à janela. Olho a rua. Olho as montanhas. Estão lá e estão bem visíveis. Está um bom tempo. Um pouco frio, mas um bom tempo. Ela chega, lavada e vestida de forma simples, calça de ganga, sapatilhas, camisa e casaco quente por cima. Beija-me o pescoço.
Saímos de casa.
Chegamos à Casa do Benfica. Já está cheia. Conseguimos uma mesa a um canto, mas conseguimos os dois ver o jogo. Ela vê no ecrã XXXL. A mim basta-me o ecrã normal de televisão.
Pedimos duas bifanas, uma dose de batatas-fritas e duas Sagres médias. E piri-piri caseiro. Há sempre piri-piri caseiro. Chegam as bifanas. Metade da carne está fora do pão. Não há pão suficiente para a carne. Agarramos metade, cada um, pomos piri-piri caseiro, um estalo, e aparamos a carne à volta da metade do pão com trinquinhas pequeninas. Já bebemos as duas cervejas e a metade da bifana antes do jogo começar. Quando o jogo começa, chegam mais duas cervejas. Espalho maionese sobre as batatas-fritas caseiras. O Benfica entra a pressionar. Aos oito minutos o Benfica está a perder com auto-golo de João Mário. Peço a terceira Sagres, acabei a bifana e ataco o que resta das batatas-fritas. Estou sem vontade de ver o jogo. Chego-me a ela e pergunto-lhe Vamos para o carro foder? e ela abana a cabeça e diz Está muito frio. Eu aceno com a cabeça, compreendo que está frio. Mas já não me apetece ver o jogo. Mas vou arrastando-me sem tomar nenhuma decisão. Estamos quase no intervalo. Rafa empata. Artur Cabral coloca o Benfica na frente, junto ao intervalo. Dois golos em três minutos. Viro-me para ela e pergunto Umas moelas? E ela responde Venham elas.
Não sei como é que acabou o jogo.

[escrito directamente no facebook em 2024/01/11]

O Momento Certo É uma Habilidade Desconhecida

Ela chega a casa, entra pela porta da cozinha, eu estou na sala, espojado no sofá, os pés sobre a mesa de apoio, um cigarro a queimar entre os dedos da mão direita, uma embalagem de seis minis Sagres rasgada e as garrafas vazias caídas no chão, a televisão a debitar hora-após-hora as mesmas notícias do dia, a vitória de Milei na Argentina; as mais de cinco mil crianças palestinianas mortas na Faixa de Gaza; o ataque de drones a Kiev; a vitória da selecção portuguesa sobre uma perigosíssima selecção islandesa por dois a zero e o Cristiano Ronaldo em branco, primeira vez na vida que a selecção portuguesa termina só com vitórias um grupo de apuração para um Europeu, o de 2024 na Alemanha, e Portugal teve de defrontar as perigosíssimas selecções do Liechtenstein, Luxemburgo, Bósnia e Herzegovina, Islândia e Eslováquia.
Ela chega, eu estou na sala, ouço-a a fechar a porta, a largar o saco em cima da mesa da cozinha e digo da sala Não há azeitonas! e ouço o silêncio na cozinha, percebo a estupefação dela ao ouvir a minha queixa e sorrio, sinto os passos dela pelo corredor até entrar na sala, olhar para mim, eu digo-lhe Boa-tarde!, ela encosta-se à ombreira da porta, acende um cigarro e pergunta Disseste alguma coisa? e eu respondo-lhe Não, e pergunto-lhe se quer ir comigo levar o saco do lixo ao contentor e dar um pulo à aldeia para comprar azeitonas na pequena frutaria que também vende outras coisas, quase como um mini-mercado mas de atendimento personalizado, como numa mercearia, mas chama-se frutaria, vá-se lá saber porquê, as pessoas são esquisitas e os seus caminhos ímpios. Ela acena a cabeça, mas aos solavancos, como se me quisesse dizer Estás! Estás!, ou como quem diz Estás a pedi-las!
Levanto-me da minha letargia. Agarro no lixo que espalhei à minha volta, passo por ela e dou-lhe um beijo nos lábios, demoro-me lá e ela também não foge, enfio o lixo no saco, tudo junto, que ali, ao fundo da casa, só há um caixote de lixo único, agarro na carteira, no telemóvel, no maço de cigarros, no isqueiro, nas chaves de casa e pergunto lá para dentro, Vens?
Saímos de casa. O cão e os gatos olham para nós mas não se mexem. Descemos as escadas do alpendre, descemos a alameda, saímos pelo portão, caminhamos ao longo da estrada, depois cruzamo-la ao pé do contentor de lixo, abro-lhe a tampa e mando o saco lá para dentro. Fecho a tampa. Limpo as mãos às calças de ganga. Dou-lhe a mão e vamos assim, de mãos dadas, até à aldeia.
Entro na loja. Agarro em dois pequenos sacos com azeitonas. Pergunto-lhe se quer beber uma cerveja. Ela diz que sim. Peço também duas médias Sagres. Pago as azeitonas e as cervejas. Vamos para a rua. Sentamo-nos no lancil do passeio. Eu abro as garrafas com o isqueiro. Batemos as garrafas uma na outra como num brinde, e ficamos ali a beber. Abro um dos saquinhos de azeitonas e penicamos umas azeitonas para ensopar a cerveja no estômago.
A noite está a cair. Mas está um tempo agradável. De vez em quando passa um carro. Entram duas pessoas na loja. Acendo um cigarro. Ela pede-me um. Acendo-o. E depois ela diz Vou sair de casa.

[escrito directamente no facebook em 2023/11/20]

Bolo de Baunilha

A casa cheira a baunilha. Não gosto de baunilha. Nem gosto de doces. Muito menos de bolos. Mas ela passa a vida a fazê-los. Faz bolos de todo o género e feitio. Eu tenho de comer. No mínimo, de provar. Alguns até me agradam. A maior parte das vezes, como uma fatia ou outra para lhe agradar. Mas o mais estranho é que ela também não é grande apreciadora de bolos. Gosta de fazê-los, é isso. A preparação, bater os ovos, a massa, controlar a temperatura do forno, espetar o pauzinho para confirmar a massa cozida, depois o corte para endireitar o formato, às vezes colocar um em cima de outro para ficarem maiores e depois cobri-los, com creme de manteiga ou pasta de açúcar. Eu não gosto da cobertura de pasta de açúcar, mas as pessoas a quem vamos oferecer os bolos que não comemos, preferem a pasta de açúcar.
Eu pergunto-lhe Porque raio fazes bolos que não vamos comer? E ela responde Porque gosto de fazê-los. E é mesmo isso, gosta de fazê-los. Eu não me importo com o cheiro doce a pairar pela casa. Não me importo de provar um ou outro, pequenas fatias que permitem ver à transparência, mas depois temos de andar pela aldeia a oferecer fatias de bolo. Ao princípio as pessoas achavam estranho. Agora já aceitam. Algumas, mesmo, encomendam-lhe bolos para as ocasiões festivas, aniversários, batizados, até já lhe encomendaram bolos para divórcio. Ela pede às pessoas que digam que tipo de bolo querem, de que género, que tipo de massa, que tipo de cobertura, com quantos quilos. Eu sento-me na sala e cheiro aqueles odores, a baunilha, o chocolate, o limão, os frutos vermelhos, a maçã, ai a maçã, esse gosto, gosto mesmo, a tarte de maçã que ela faz é mesmo o meu bolo preferido. Aprendi a dizer Não gosto de bolos, mas a tarde de maçã dela, é divina. E é!
No Outono e no Inverno, os cheiros doces são mais suportáveis, misturam-se com a lenha queimada, a terra molhada, as folhas de eucalipto cozidas, as filhoses. No Verão é mais difícil. As janelas abertas à aragem, os corpos nus e o desejo de ir à praia e eu a dizer Não quero que faças bolos! Mas ela faz. E eu provo. Mas não queria provar. Sou um fraco.
A casa hoje cheira a baunilha. É um bolo de aniversário que lhe pediram. Estou com a janela da sala aberta para libertar o cheiro a baunilha. Odeio mesmo baunilha. Nem nos gelados. Nunca gostei de baunilha. É uma cena. Uma cena minha.
Ela entra pela porta da sala com um pequeno prato na mão e diz Para compensar o cheiro insuportável da baunilha. E estende-me um pratinho com dois rissóis. Eu sorrio e digo Isto ia bem era com uma cerveja. E ela tira a outra mão de trás das costas e estende-me uma Sagres média. Eu levanto-me e dou-lhe um beijo nos lábios. Aperto-a contra mim. Sinto-lhe o corpo a estremecer e Digo-lhe Os rissóis e a cerveja podem ficar para mais tarde, mas ela afasta-se de mim a sorrir e diz Tenho de acabar aquele bolo de baunilha.

[escrito directamente no facebook em 2023/09/28]

A Festa de São Pedro

É Sábado e eu vou à festa de São Pedro, a Porto de Mós. Já me falaram tanto nas tasquinhas que resolvo lá ir petiscar.
Estou uma hora em fila desde o IC2 para conseguir chegar a Porto de Mós. Devia perceber o que isto quer dizer. Mas não aprendo com os erros. Preciso de confirmar. Preciso de meter o nariz para perceber que cheira mal.
Depois de uma hora no pára-arranca, chego à vila, dou-lhe duas voltas, nas quais gasto mais quase outra hora, e não consigo arranjar lugar para estacionar a viatura. Insistimos em enfiar o Rossio na Betesga. A malta gosta é de cheirar o tubo de escape uns dos outros. Uns é mais gasolina. Outros, gasóleo. O cheiro é o mesmo. Tóxico. Nojento. Poluente.
Desisto das tasquinhas e preparo-me para sair de uma terra que não tem atractivos nenhuns e nem as tasquinhas, que me venderam como a última bolacha do pacote, me chegam ao alcance das mãos ou do nariz para perceber a excepção que confirma a regra, quando descubro um espaço vazio em cima do passeio, em cima da passadeira, junto à escola (não há aulas hoje à noite!), a cerca de um quilómetro da feira de luzes, sons e cheiros.
Largo o carro e começo a minha caminhada de volta ao centro da vila. Passo pela Casa das Artes (é assim que se chama, não é?), refilo comigo mesmo por nunca lá ter entrado, e penso que Leiria não tem um edifício assim para as artes, tem o antigo Banco de Portugal, mas é poucochinho para o conhecimento necessário e para as altas pretensões da cidade.
Quando dou por mim, embrenhado que estou nos meus pensamentos sobre a minha cidade (sim, vocês todos podem fazer-lhe o que quiserem, mas ela ainda é a minha cidade e vou tecer-lhe todas as considerações que achar necessárias), descubro-me à entrada da zona das tasquinhas. Maldita a hora em que resolvi vir. Todos os sinais estavam a mandar-me embora. E eu vim. Insisti e acabei por vir. Foda-se, caralho! Não cabe mais um alfinete neste maralhal de gente que se aglomera em frente a cada uma das casas de pasto. Furo por entre toda aquela gente à procura de um espaço onde sentar o cu ou pousar os cotovelos e beber uma cerveja ou um copo de plástico de vinho tinto do pacote e petiscar umas moelas, uma salada de polvo ou umas asinhas de frango picantes, e não encontro nenhum. Não há espaço para a minha pessoa nem para metade das que já lá estão. Meia-hora para conseguir dar a volta às tasquinhas e perceber que o meu reino não é deste mundo. Muita gente. Muita confusão. Muito barulho. Gente aos magotes. Sinto-lhes o cheiro a transpiração, a vinho azedo, a tabaco frio e perfumes baratos. Está tudo alegre, bem-disposto, bem bebidos e comidos, sentem-se todos bem uns com os outros, uns ao colo dos outros, as mãos nos cus uns dos outros, tudo ao monte e aos berros, vejo-lhes os dentes podres e cariados nas gargalhadas alarves, e sinto-me tão deslocado como se estivesse numa faculdade de economia a tirar gestão para ficar rico antes dos trinta quando já estou quase a chegar aos sessenta e não tenho, como que se costuma dizer, cheta para mandar cantar um cego.
Viro costas à alegria alheia, às tasquinhas e a Porto de Mós e regresso a casa.
Ligo o carro e penso que tenho fome. Não comi nem bebi nada. Só fumei. Tenho fome e não tenho nada em casa para comer. Decido fazer um desvio no caminho e vou aos arcos dourados.
Vou às máquinas automáticas. Escolho um Duplo Royal Bacon menu, com batatas-fritas e cerveja. Tenho que dizer Não em várias páginas que se me abrem à frente. A ideia é impingirem-me mais merdas gordurosas para entupir as veias. Como se não bastasse este hambúrguer prensado que mal me cai no estômago sinto-me mais pesado, cheio e com vontade de vomitar. Aguento como um homem. Esta é a minha guerra. A guerra possível de quem não fez o serviço militar para poder continuar a estudar. E hoje ainda me pergunto A estudar o quê? Para quê?
Na hora de pagar, a máquina bloqueia. Não anda para a frente nem para trás. Estou farto deste mundo muito tecnológico que se tecnoloja a si próprio. O analógico demora. O digital morre. Morre à minha frente e sem precisar da minha empatia. Raios partam os zeros e os uns. Um dia ainda hei-de cuspir Raios partam o quântico!
Vou ao balcão e repito o pedido. Porque raio vamos às máquinas se temos uma boa e velha pessoa a quem podemos pedir ajuda, cuspir o nosso azedume e agradecer por toda a terapia que nos permite fazer?
Acabo sentado quase sozinho no McDonalds, naquele que é um Sábado à noite, dia prime-time onde a vida acaba no fundo de uma cerveja Sagres bebida em copo de cartão (malditas regras da modernidade), com toda a gente das redondezas nas tasquinhas em Porto de Mós, a escrever esta pequena estória de merda que não interessa a ninguém e será lida por zero pessoas.
A minha vida está cada vez mais desinteressante e as minhas estórias cada vez mais insignificantes, como qualquer festa de Verão em honra de um qualquer santo que há-de significar alguma coisa para alguém que ainda não tenha morrido. E é neste momento que me lembro da anedota: pego no garfo, furo-me o corpo à garfada e grito Canoas o caralho! enquanto penso nos festivais de Verão que já começaram timidamente mas estão quase-quase a rebentar, só para me darem cabo dos nervos com as suas ementas monumentais que enfiam os concertos de um ano inteiro em três dias de muito entretenimento que só provoca ansiedade e consumo de benzodiazepinas.

[escrito directamente no facebook em 2023/06/30]

Antes que o Mundo Acabe

Parto a cabeça com as burocracias. Estou online há duas horas, em páginas demasiado complicadas para quem não é um analfabeto digital e desespera como se fosse, a tentar resolver um problema simples que se tornou um problema complexo. Como raio hei-de resolver isto? Onde é que posso ir? Com quem poderei falar?
Baixo a tampa do computador com tanta força que me arrependo, com medo de partir o ecrã. Desisto. Desisto por hoje. Desisto antes que me passe da cabeça. É assim que nascem os psicopatas. Enredados em lógicas impossíveis. Devia ser assim, mas assim não funciona. Nunca funciona.
Levanto-me e dou voltas pela casa. Dou tantas voltas que pareço estar numa casa de família, uma casa grande de rés-do-chão, primeiro e segundo andar, tantas casas-de-banho quanto quartos, várias salas, escritório, biblioteca, sala de jogos, sala de cinema, cozinha e copa, adega, eu sei lá. Na verdade, repito os passos à volta do meu T2 com uma casa-de-banho e uma cozinha tornada sala porque é onde gosto de estar.
A meio do meu passeio caseiro, acendo um cigarro. Ao passar na cozinha assalto o frigorífico e agarro numa cerveja média Sagres. Abro a garrafa na porta da cozinha. Volto ao corredor, a fumar, a beber, a vociferar contra quem me obriga a fazer o que não sei fazer, mando tudo para o caralho e depois acalmo e sento-me na cozinha, a olhar para o computador fechado. Mas não o abro. Deixo-o estar assim. Quero que te fodas, tu também.
Saio de casa. Agarro no carro e saio de casa. Saio sem destino. Afasto-me da aldeia. Vou depressa. Vou depressa por estas estradas municipais, estreitas, cheias de buracos, com várias gerações de alcatrão a remendar outros buracos de outros tempos. Por aqui não há tapetes. Por aqui remenda-se quando se remenda. Tenho de ir aos esses para fugir aos buracos e a um pneu furado. Vou com atenção. Percebo o silêncio e noto que o rádio está desligado. Não o ligo. Não já. Levo as duas mãos no volante e, a mão direita, alterna o volante com a alavanca de velocidades, acompanha o jogo de pés, entre o acelerador e a embraiagem. De vez em quando, o travão. Vou virando. Há curvas à direita e à esquerda. São consecutivas. As estradas foram feitas aos esses. Tudo para um lado, tudo para o outro. Apanho uma recta e acelero ainda mais. Às vezes preciso disto. Do risco. De sentir medo. De sentir a adrenalina a tomar conta de mim. E é mais fácil andar depressa por estas estradas esburacadas, com lombas provocadas por raízes dos pinheiros a estenderem-se para lá da berma da estrada, que lançar-me no vazio com um elástico atado aos pés.
Olho para o pinhal à minha volta e pergunto-me Já há camarinhas? mas acredito que não. Ainda agora chegámos à Primavera. Não posso querer tudo ao mesmo tempo.
Sinto uma paragem no pensamento. Vejo-me a branco. Não penso nada. E, então, pergunto Porque não? Sim, porque não? Porque raio não posso ter tudo ao mesmo tempo?
A curva à esquerda é muito apertada, viro o volante mas sinto o carro a fugir de mim, não me obedece por completo à informação no volante. O carro não vira tudo, sinto-o a escorregar. Sai fora da estrada. Eu tento agarrar o volante mas o volante está doido. Vira sozinho e depressa. Eu deixo-o ir. Tiro as mãos do volante e ponho-me nas mãos do carro. Que seja o que tu quiseres.
Vejo um pinheiro ao lado. O lado para onde o carro desliza a boa velocidade. Fecho os olhos. Trinco os lábios. Sinto o carro a saltar uma pequena lomba e a voar ligeiramente. Sinto-me no ar. Sinto-o levantar voo. Sinto a queda. Um tombo. Trinco os lábios e faço sangue. Sinto o sabor metálico do sangue na boca. Não me doeu. O carro desliza. Desliza e eu aguardo o momento em que bate no pinheiro. Mas o carro pára antes de chegar ao pinheiro. De repente, o silêncio. O carro parou. O motor do carro também parou. Abro os olhos. Vejo o pinheiro a um dedo do carro. Respiro fundo. Recosto-me no banco. Acendo um cigarro. Abro a porta do carro e saio. Olho para o carro. Dou uma volta ao carro. Não está batido. Se estragou alguma coisa, foi interno. Por fora, está tudo bem. Encosto-me ao capot do carro. Apercebo-me que estou nervoso. O coração bate depressa. Já fumei o cigarro. Fumei-o demasiado rápido. Acendo outro e tento fumar com mais calma. Tento desacelerar a respiração. Suspiro.
Digo para mim Esta foi por pouco.
Ainda tenho as mãos a tremer. Sinto-me com fome. Sinto-me com sede. Meto as mãos aos bolsos das calças e vejo quanto dinheiro tenho. Duas notas de vinte. Vou à Nazaré comer uns camarões e beber umas cervejas. Preciso de relaxar. Hoje foi um dia de merda. Poderia ser pior. Tem de terminar bem. Vamos lá à Nazaré. Antes que o mundo acabe.

[escrito directamente no facebook em 2023/03/29]

Há Muito Tempo que Não Pensava na Kim Gordon

Há muito tempo que não pensava na Kim Gordon.
Hoje acordei com a cena de dança de Simple Men de Hal Hartley, a mimetizar a cena de dança no café Madison de Bande à Part de Jean-Luc Godard, na cabeça. A miúda da camisola às riscas, a esbracejar paralelamente ao travelling, levou-me logo para a Kim Gordon, mais depressa que o Kool Thing.
A primeira coisa que fiz mal me levantei foi colocar os Sonic Youth na aparelhagem, e espremer as colunas por toda a casa. Ao início comecei por colocar só as músicas cantadas pela Kim Gordon, enquanto fazia pequenas coisas, como ligar a máquina do café, mijar, fumar um cigarro. Depois achei que era melhor deixar tocar os álbuns inteiros, escolhidos ao acaso, enquanto tratava da minha vida.
Diga-se, de passagem, que a minha vida não tem nada para ser tratado. Para tratar de alguma coisa seria preciso mudar a minha vida toda por inteiro. De cada vez que penso nisso, acho melhor ficar quieto. É demasiado processo para tão pouca força.
Deu, no entanto, para ir ao banho, vestir-me, tomar o pequeno-almoço, fumar outro cigarro, entrar na onda electrizantemente sónica e andar a dançar pelos cantos da casa à procura da minha vida. Não a encontrei.
Peguei no iPod (sim, ainda tenho um Nano e ainda tem bateria e ainda funciona), liguei-o ao computador e passei para lá toda a colecção de discos dos Sonic Youth, saí de casa, entrei dentro do carro e disse Foda-se! Tudo num repente.
Há muito tempo que não pensava na Kim Gordon.
Arranquei rápido, com os pneus a patinar, o que foi uma estupidez porque ao descer a alameda ia espetando o carro contra a árvore que fica do outro lado da estrada à saída do portão. Consegui virar à direita. Não vinha nenhum outro carro. Entrei no asfalto e zarpei por ali fora.
Não tinha que fazer. Na verdade, até tinha muito para fazer, mas não estava com paciência para as coisas que tinha que fazer e resolvi cagar para elas, a vida é curta demais para ser gasta em merdices como trabalhos de merda com chefes de merda que gritam frases sobre mérito, mas não sabem o que dizem, nem o que fazem, e os salários que pagam estão congelados, tão congelados como o estado de Nova Iorque neste final de ano
Tinha a carteira comigo, o cartão multibanco, o de crédito, três volumes de cigarros e o depósito um pouco mais de meio e disse, alto e bom som, P’ró Sul! E para o sul vim. Carreguei a fundo.
Apanhei a N2 na Sertã e fui andando até Faro.
O iPod a debitar as músicas dos Sonic Youth. Seleccionei o shuffle e ia passando por todos os álbuns (é, talvez, das poucas bandas de que possuo todos os discos oficiais, em cd, com alguns repetidos em vinil). Ia fumando cigarros. Um cotovelo na janela do carro. Uns dedos levemente sobre o volante. A outra mão sobre a alavanca de velocidades, e o cigarro invariavelmente enfiado entre os dedos. De cada vez que ouvia a voz de Kim Gordon pensava Há muito tempo que não pensava na Kim Gordon. E era verdade. Pelos menos desde que me tinha irritado com ela pelo lavar de roupa suja de A Miúda da Banda. Já fiz as pazes!
Ah! Kim Gordon!…
Fui sempre ali pelo país profundo. Estradas secundárias, mal tratadas, alguns troços com buracos, alguns troços com muito trânsito, sempre muitos camiões, algumas ultrapassagens à antiga, puxar um pouco do carro à esquerda para ver para além da viatura da frente, ver se vinha lá alguma viatura ou não, e se viesse se dava tempo ou não, e depois meter uma abaixo e espremer o carro para ultrapassar a viatura da frente num ápice, assim como as guitarras destrutivas dos Sonic Youth.
Parei uma vez para encher o depósito, beber um café, comprar um volume de cigarros e um six-pack de Red Bull.
Gostei de descer o Alentejo desértico até entrar no Algarve e descer até Faro. Principalmente depois de Castro Verde. Em Faro apanhei N125 e virei à direita. Má opção. Já não podia vir a abrir como pela N2. Há semáforos. Há filas enormes. Há zonas de pára-arranca. Há muitos condutores de Domingo, e turistas, e motorizadas e algumas bicicletas. Há muita gente a entrar na estrada vindo de outras estradas mas também dos parques de estacionamento de restaurantes e dos vendedores de fruta e legumes, parados em camionetas à beira da estrada.
Cheguei finalmente a Sagres.
Estou em Sagres. Desliguei a música. Há muito tempo que não pensava na Kim Gordon. Aquela beldade loira de vestidinho curto e salto alto, de camisola às riscas e mini-saia, de guitarra ou baixo na mão, a estraçalhar-me os ouvidos e a cabeça.
Agora ouvia o mar a bater lá em baixo, nas rochas que marcam o final de Portugal continental. E pensei E agora?
E então percebi que a minha referência estava errada. A minha referência para esta estória era outra. Não era o som eléctrico dos Sonic Youth para vir a conduzir país abaixo em direcção ao mar, mas o Thelma e Louise de Ridley Scott. Tinha-me enganado na referência pop. Mas estava ainda a tempo de emendar a mão.
Carreguei prego a fundo e suspirei, pensando no momento em que elas duas têm o último diálogo Let’s keep going! What you mean? Go! You’re sure? Yeah!… Yeah!, beijam-se e Louise carrega prego a fundo e entram na imortalidade, a mesma imortalidade onde eu estou prestes a entrar, mesmo que não tenha a polícia atrás de mim, mesmo que não tenha ninguém com quem ter um diálogo final, mesmo sem ter alguém a quem dar um último beijo, entro na imortalidade tal e qual como sempre vivi, sozinho…

[escrito directamente no facebook em 2022/12/27]

Cada Vez Gosto Mais de Maus Filmes

Entro no café já de noite. É de noite mas ainda é de dia. A mudança de horas fabrica estas aberrações. Às seis da tarde é noite. O café está com metade das luzes apagadas. Contenção de despesas. A energia eléctrica está pela hora da morte. As obrigações verdes e o findar da utilização dos combustíveis fósseis, mais uma guerra que ainda não se percebeu como vai acabar e quando e outras incertezas no mundo, estão a fazer mudar hábitos adquiridos desde sempre. Gostava de ir ao café ao final do dia. Beber uma cerveja. Trincar uns tremoços. Dar dois dedos de conversa com quem quer que por ali estivesse. Lavar os olhos nalguma beldade. Agora já não há nada disso. As pessoas fogem para casa. Talvez estejam entre amigos, mas dentro das casas. A minha casa é vazia. Não frequento casas de amigos. Já não tenho amigos. Fui largando-os lá para trás. Perdi paciência. Perdi vontade. Prefiro uma conversa anónima com quem não tenho laços. Prefiro uma despedida que seja para sempre. Não quero voltar a ver quem vi. Renovo interlocutores todos os dias. Assim não me canso nem me iludo. Mas também acontece isto que estou agora a viver. Bebi uma cerveja Sagres média, com um rissol de peixe, e olho para o ecrã de televisão que ainda está ligado, e onde passam uns vídeo-clips parolos de música pop internacional que nunca ouço em casa, não conheço e não fico com vontade nenhuma em conhecer.
Estou sozinho no café. Só há um empregado que faz as mesas e o balcão, vai à copa quando tem de fazer qualquer coisa que não esteja pronta e recebe o dinheiro da despesa. Para a quantidade de clientes que tem, eu, não é preciso mais. Não tarda há-de desligar a televisão porque irá perceber que a atenção que eu lhe dou é a mesma se o ecrã de televisão estiver a preto, desligado e sem emissão.
Acabo a cerveja. Acabo mais rápido que o normal. Não me apetece beber outra. Acho que quero ir para casa. Ver o café vazio deprime-me. Sozinho por sozinho, que esteja sozinho em casa.
Deixo umas moedas na mesa. Levanto-me e saio do café. Ouço a televisão a desligar-se. Provavelmente vai fechar a porta. Hoje já deu o que tinha a dar. As pessoas já não passeiam depois de jantar. Os namorados saltam as janelas ou entram pela porta da frente que os pais estão mais modernos e aceitam tudo pelos filhos. Já começa a estar frio. Depois o Natal está a chegar e não há dinheiro para tudo. E ainda há-de haver menos.
Consegui passar o dia inteiro quase sem falar. Disse Uma cerveja, se faz favor! foi a minha única frase oral ao longo de todo o dia. Estranhei a minha voz. Já não tenho por hábito ouvir-me. Sou-me um estranho.
Agora que tenho uma cerveja no bucho, bebida um pouco mais depressa que o normal, quero ir para casa. Estou a ficar impaciente. Quero estar já em casa. Quero ver um filme. Ou dois. Gosto muito de ver filmes. Passo uma grande parte da minha vida a ver filmes. Depois penso neles. Sobre eles. Às vezes escrevo. Escrevo para mim, não para ninguém. A satisfação é minha. Vejo tantos filmes que acabo por ver muitos filmes maus. Ultimamente apercebi-me de que começo a gostar de maus filmes. Começo a ver outras coisas neles. Reconheço ecos de mim nesses filmes. As merdas são as mesmas. As minhas e as desses filmes. Os filmes que ainda virei a fazer também serão uma merda. Mas uma bela merda.
Há noites em que não me deito. Vejo vários filmes de seguida. Às vezes bebo um demais ao ver alguns dos filmes e termino a noite a ir para a página online do Público discutir com os críticos de cinema sobre determinados filmes que eles não compreenderam, armados de toda a sua ciência analítica e semiótica. Já tive de mandá-los à merda. Já me arrependi. Mas depois cago para tudo. O dia volta a nascer e eu com ele. Todos os dias nasço uma personagem diferente. Sou moldado pelas personagens dos filmes que vejo. Há dias em que dou azo às personagens dos filmes pornográficos. Gosto desses dias. Torno-me um verdadeiro loverboy. Fico irresistível. As mulheres adoram-me como se eu fosse mesmo aquilo, mas elas não percebem que é só uma personagem. Mas evito, porque me desgasta. Fisicamente obriga-me demasiado e já não corro para jovem. Outras vezes sou alguma personagem de David Lynch. Normalmente fico com dores de cabeça. Hoje não sei quem acabarei por ser. Logo se vê.

[escrito directamente no facebook em 2022/11/02]