Fora de Prazo

A barba e o cabelo vão crescendo na medida em que a barriga encolhe. As calças já me caem pelo cu abaixo e já fiz mais um furo no cinto com o fura-papéis herança do meu pai.
As calças prendem-se debaixo dos chinelos. Rasgo as calças. Estão como eu. Velhas, gastas e maltratadas.
Olho-me ao espelho e penso que já fui outro. Reconheço-me. Este sou eu. Mas já fui outro. Estamos sempre em mutação. A vida não pára. Os anos também não. Ouço o relógio tic-tac-tic-tac na sua marcha imparável. Estou mais velho. Não, não estou mais velho, estou só velho. Velho.
Corto duas madeixas tombadas sobre os olhos que me impedem a vista. Magoam-me os olhos. Tenho a vista sensível. Passei a vida a usar óculos de sol para sobreviver à luminosidade. E nunca, nunca, consegui abrir os olhos debaixo de água, fosse na piscina de Leiria, no mar de São Pedro de Moel ou na ribeira da Mourã. Não, é mentira. Na ribeira da Mourã não havia água suficiente para meter a cabeça dentro dela. Quanto muito, na ribeira da Mourã molhávamos os pés quando faltávamos às aulas no colégio e íamos para lá namorar.
Às vezes corto a barba, pelo menos, aparo-a, mas vêm-se as olheiras, os olhos cavados, a cara macilenta, as manchas na pele, as peladas. Volto a deixar crescê-la e enquanto me lembrar de como me estou a transformar, deixo-a crescer livremente para me esconder lá por trás e não saberem que eu sou eu.
Tenho comido pouco. Resolvi entrar no mundo das dietas. Preciso de comprar medicamentos. E o dinheiro não é elástico. Mas já me questionei se a opção foi a melhor. Prolongar a vida esfomeado ou morrer de barriga cheia? Não devia ser uma pergunta difícil de responder. Mas, por outro lado, acabei por entrar no mundo da elegância. Voltei a vestir roupa que não me servia há anos.
Abro a janela da casa-de-banho e deixo entrar a luz. Coloco o banco de plástico junto à janela e o meu pé em cima do banco, iluminado pela luz da rua. Corto as unhas dos pés. Primeiro um. Depois o outro. Faço sangue nos dedos mindinhos. Já não os vejo muito bem. As unhas estão encaracoladas e de difícil corte. As unhas dos dedos mindinhos são pequenas. Às vezes corto pequenos lanhos que me deixam o pé a sangrar. Sento-me no sofá e espero que o sangue pare de correr.
Volta a acontecer. Faço sangue nos dedos mindinhos ao cortar as unhas dos pés. Sento-me no sofá a olhar para o ecrã desligado da televisão. Acendo um cigarro. Tosso. Tosso muito, ultimamente. Isto é já um ataque de tosse. Tenho tido ataques de tosse ao acender um cigarro. Depois passa.
Enquanto estou sentado, aguço os ouvidos para tentar perceber a vida à minha volta. Mas não ouço nada. Tudo em silêncio. Dir-se-ia que estou sozinho no mundo. Coço a cabeça. Trago caspa debaixo das unhas. O Linic já não faz grande efeito. Tenho de mudar de champô. Às vezes variar faz bem. Talvez no início do mês.
Ouço a campainha da rua a tocar. Alguém está ao portão. Levanto-me a custo. Tenho o corpo dorido. Apago o cigarro no cinzeiro sobre a mesa de apoio e saio da sala. Na cozinha levanto o intercomunicador e pergunto Quem é? e tenho o dedo suspenso sobre o botão que abre o portão. Mas ninguém responde. Eu insisto Quem é? e só há silêncio. Regresso à sala e trago o silêncio comigo. É só o que me resta, é só o que há aqui, silêncio.

[escrito directamente no facebook em 2024/04/23]

Deixe um comentário