Só Estamos Bem a Fazer Mal

Eu fico em casa. Ela sai. É Sábado e as pessoas saem de casa para se irem divertir. Ela sai. Eu fico. Não me sei divertir.
Ela passa a semana inteira num trabalho intenso. Ao fim-de-semana precisa de se distrair. Ao Sábado à noite vai jantar fora com os amigos. E beber uns copos. Eu fico em casa. Também tenho uma semana intensa, mas solitária. Não vejo ninguém. Ninguém para além dela. Não vejo ninguém e quanto menos gente vejo, menos tenho vontade de ver. Já não tenho amigos. Larguei-os todos ao longo do caminho. Pesavam demais. Agora falta-me lastro. Paciência.
Ela sai de casa e vai jantar com os amigos. Eu, o mais longe que me aventuro é o alpendre. Sento-me lá a fumar um cigarro e a pensar nestas merdas todas para tentar perceber se faz algum sentido, e irei chegar à conclusão que não faz sentido nenhum mas não irá servir de nada porque eu sou como a Gabriela, a do cravo e canela, Eu nasci assim, eu cresci assim, e sou mesmo assim, vou ser sempre assim. Enquanto ela conversa com amigos, e come um combinado de sushi e bebe saké aquecido, para começo de noite, depois irá passar por outros odores, talvez dar uma perninha de dança numa discoteca resistente dos anos dourados da vontade de dançar, talvez fumar um charro, vomitar os sapatos e voltar para casa de táxi porque não irá estar em condições de conduzir, eu vou ficar por aqui, bebo uns copos de Martha’s, aprecio o sabor a madeira queimada e dou cabo de um maço de cigarros enquanto o diabo esfrega um olho e eu tento ver as montanhas lá ao fundo mas não vou conseguir ver nada porque é noite, está escuro e eu estou a ver cada vez pior.
E é então que desfila à minha frente a vida como ela está agora, neste preciso instante: a guerra, os restos da pandemia, a inflação, a subida dos juros, a subida dos preços, o insuportável peso da renda da casa, o sobe-e-desce histérico dos combustíveis que parece o carrossel da Feira de Maio, a estagnação salarial e a sua perda de valor real, a desvalorização do trabalho, a falência de bancos, a antecâmara de uma nova crise financeira e económica, a intervenção dos governos, a morte do SNS e da escola pública, a falta de trabalho, a fome e…
Irei sentir um calafrio pelas costas, beber o que restar de Martha’s no copo, apagar o cigarro no chão e correr para a cama e enfiar-me lá dentro, cheio de medo. Sei que será assim porque tem sido assim. Eu já não saio de casa para não confrontar o medo e ele acaba por vir ter comigo. Vem sempre ter comigo. Gostava mais de ser como ela, sair de casa e ir divertir-me que pode ser o meu último dia, o último momento de vida na Terra, e deveria fazer uma saída em grande, mas afinal encolho-me e deito-me em posição fetal, na cama, debaixo do edredão, à espera de regressar a de onde nunca devia ter saído. Nós não estamos preparados para nós próprios. Somos uns seres estranhíssimos que só estamos bem a fazer mal.
Irei ouvir a chave a entrar na fechadura e abrir a porta da rua, os passos dela pelo corredor, os sons dela a despir-se, mas eu não irei fazer nada, não irei dizer nada, irei fingir-me de morto porque, afinal, pode não ser ela.

[escrito directamente no facebook em 2023/03/18]

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