As Esquinas dos Dias

Vejo a horas no relógio de pulso, herança do meu pai, a única herança do meu pai, e percebo que o dia está a morrer. Estou sozinho em casa e aguardo que ela chegue. À Sexta-feira ela chega sempre um pouco mais tarde. Tem de deixar uma série de coisas prontas para o fim-de-semana dos outros. Eu espero. Espero por ela. Já lá vai o tempo em que nos encontrávamos na cidade, nalguma esplanada, entre copos de cerveja e os amigos. Íamos jantar fora. Comíamos fritos e bitoques queimados. Bebíamos vinho tinto a jarro, vinho que nos deixava com azia. Mas entrávamos assim à bruta no fim-de-semana. Havia mesmo noites em que terminávamos na discoteca, a dançar que nem loucos e a limpar os poros com a transpiração. Às cinco da manhã íamos comer uma bola de berlim ao Rota do Sol, o único café aberto a noite toda. Não sei se a Rota do Sol continua aberta toda a noite, nem se a discoteca onde íamos dançar continua a existir. Já não nos encontramos com amigos nem jantamos fora bitoques rançosos. Agora espero-a em casa, a maior parte das vezes sentado no alpendre, a olhar as montanhas em frente e a estrada que a há-de trazer e fazer entrar pelo portão. Espero-a aqui, exactamente aqui onde estou agora, sentado no alpendre a olhar as montanhas e a estrada por onde ela há-de vir enquanto a noite rouba o lugar ao dia.
Acendo um cigarro. Agarro um dos gatos que estão enroscados à minha volta e coloco-o no colo. No início deita-me as garras, não gostam de ser agarrados, mas depressa sente o conforto do colo, o conforto quente e macio do colo. Faço-lhe festas no pêlo. O corpo dele acompanha a minha mão. O ronronar dele aumenta de intensidade. O cão olha para mim com alguma inveja. Nunca tive o cão no meu colo, mas dou-lhe mimo, bato-me com a mão no pêlo, pancadas carinhosas que ele gosta. Também gosto que me toquem. Que me façam festas. Que me passem a mão pelo pêlo. Que me beijem. É fim de dia. É final de semana. Onde andas?
Volto a ver as horas no relógio de pulso, herança do meu pai. Já é tarde, mesmo para ela. A esta hora já cá costuma estar. Não telefonou. Não mandou nenhuma mensagem. Há horas que não está activa nas redes sociais. Tento telefonar-lhe. Desligado. É um dos dramas dos nossos dias, o telemóvel desligado. E podem ser inúmeras as razões para estar desligado, das mais inócuas às mais vis. Não penso nisso. Não quero pensar nisso. Tento ter um pensamento limpo. Se o telemóvel está desligado é porque tem de estar desligado.
Tiro a mão de cima do gato e ele aproveita e salta de cima de mim. Vai para perto dos outros. Roça-se nelas. Corre-os a todos. Cheira-lhes o cu. Depois faz como eles, enrola-se e deixa-se estar quieto. O cão observa tudo do seu lugar sem se mexer. Quando o gato se enrosca, o cão olha para mim, com a mesma cara impassível de sempre, e volta a dormir. Sinto-me ignorado por todos eles.
Apago o cigarro. Levanto-me. Vou à cozinha. Encho um copo de vinho. Ligo a televisão para ver o que é que se passa na informação. SIC Notícias no intervalo; RTP3 ouve alguém a comentar o caso de António Costa não ter sido considerado arguido; CNN debate as eleições europeias com Catarina Martins, Marta Temido, Pedro Fidalgo Marques e Sebastião Bugalho; não chego à CMTV. Fico por aqui uns momentos. Gosto de ver os debates. Tinha-me esquecido deste. Beberico um gole de vinho. O debate está morno. Talvez me lembre porque é que me tinha esquecido do debate.
Ouço o telemóvel a tocar. O telemóvel está lá fora. Vou até à porta da rua e olho para a mesa de apoio no alpendre. O meu telemóvel está mesmo a tocar. Eu não me mexo. Não sei se quero atender. Já é de noite. Ela ainda não chegou. O telemóvel continua a tocar. Eu não me mexo. Ouço as despedidas da jornalista ao fundo, na televisão. Acabou o debate. O telemóvel continua a tocar. Eu continuo sem me mexer. Acho que não quero atender.

[escrito directamente no facebook em 2024/05/24]

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