Uns Partem Outros Chegam

Quando eles chegaram, já os outros tinham ido embora. Não é sempre assim? Uns partem e logo de seguida outros chegam. Como se estes soubessem o que se estava a passar. Como se houvesse uma divulgação sensorial sobre a mobilidade do povo. Como se as notícias navegassem através dos sonhos. Como as más notícias. Ninguém sabe como, mas chegam sempre primeiro. O que é óbvio, na verdade. As boas notícias são não-notícias, não se divulgam, as pessoas não lhes ligam, nem querem saber. Não transportam alterações. São as más notícias que interessam, porque alteram, modificam, transformam. Impõem.
Os outros ainda não tinham partido havia uma semana, já estavam estes a chegar. O que não chega para uns, há-de ser abundância para outros. Pelo menos durante algum tempo. O tempo da novidade. Depois a história repete-se.
Eu sei porque sou a constante. Estou aqui desde o início. Vi-os a todos partirem. E vi todos aqueles que chegaram depois. Tem sido sempre assim. Uns partem. Outros chegam. Eu despeço-me de uns e dou as boas-vindas a outros. Eu estou sempre cá. Fico quando todos eles partem. E se partem! Todos têm partido. Nunca nenhum deles ficou. Só eu. E eu não sou um deles. Não sou de nenhum deles. Eu faço parte do grupo original. Daqueles que já cá estavam quando este carrossel começou.
E este carrossel começou quando as pessoas que cultivavam os campos começaram a morrer. A ordem natural da vida. As pessoas velhas tendem a morrer. Os novos não sabiam trabalhar a terra. Não sabiam nem queriam. Os pais partiam e os filhos também partiam. Os primeiros para o cemitério à saída da aldeia, os segundos para a cidade. Para a periferia da cidade. À procura de trabalho nas poucas fábricas ainda existentes. Alguns deles emigraram. Muitos destes morreram quando a guerra lhes chegou. A guerra ainda não chegou aqui, e é por isso que continua a chegar gente à espera de pôr a funcionar estas terras. Mas agora, depois da morte dos velhos originais, ninguém dos que chega consegue fazer alguma coisa que se veja. Às vezes conseguem produzir alguma coisa, mas nada de significativo. É como se os campos estivessem esgotados. Como se estivessem cansados de alimentar quem os trata tão mal.
Eu ainda vou conseguindo cultivar algumas coisas. Poucas. É só para mim. Subsistência. E tenho conseguido. Não cultivo muito. Diversifico. Nunca na vida me tinha passado pela cabeça ter galinhas e coelhos em casa. E agora, atrás da casa, tenho um galinheiro. É um chiqueiro, que cheira mal que tresanda. Mas sabe bem. Sabe bem poder guisar uma galinha, ou assá-la na brasa. E as saudades que eu tenho de um peixinho? Antigamente ainda passava por aqui uma peixeira. Mas há muito tempo que deixou de passar. Talvez tenha morrido. Talvez tenha também ido embora. Talvez já não haja peixe. Tudo acaba. O trigo, o peixe, nós, a vida…
Eram cinco da manhã. Eles viajam de noite por causa do calor. Tem estado muito quente. Eles viajem em carroças puxadas por cavalos, burros, bois. Alguns vêm de bicicleta. É estranho. De repente voltaram as pasteleiras. Lembro-me delas no meu bairro de infância, um bairro popular, cheio de trabalhadores agrícolas. Andavam todos de pasteleira. A minha cidade era muito atrasada. Atrasada e pobre. Agora é o futuro. As pasteleiras são o futuro.
Eles viajam em caravana durante a noite. Viajam em grupo para se protegerem. Há muita bandidagem pelas estradas. Mesmo aqui tenho de estar atento. Especialmente quando estou sozinho, como estava até hoje. Entre a partida de uns e a chegada de outros fico algum tempo sozinho nestas terras. Com a aldeia deserta, é difícil ter alguma ajuda em caso de necessidade. Ainda não foi preciso, até agora, durante estes anos que já levamos. Mas tenho-me precavido. Tenho armas. Armas limpas e prontas a entrar em acção. Subi os muros do terreno e coloquei arame-farpado electrificado. Quando vedei a casa, lembrei-me de alguns bairros que conheci em África, noutros tempos. Ilhas douradas no meio do inferno. Chateia-me isto, mas não pode ser de outra maneira. Não, pelas histórias que vamos ouvindo. Esta gente, quando chega, traz muitas histórias. Muitas delas vividas na primeira pessoa. Histórias terríveis. Estou sempre com atenção ao cão. Se ladra, se se põe em sentido, se está nervoso.
Eram cinco da manhã quando os senti chegar. Fui acordado do meu sono nocturno. Tomei atenção ao tipo de barulho. Levantei-me e pus-me à escuta. Podia ser outra coisa. Ouvi com toda atenção. E sosseguei. E disse
São eles.
e levantei-me da cama, fiz café, acendi um cigarro, e fui para o alpendre vê-los chegar. Era grande, a caravana. Trazem bastante gente.
Vamos ver quanto tempo ficam por cá. Era bom que ficassem de vez. Estou cansado de estar sozinho. Estou farto dos diálogos comigo próprio.
Vou fazer um bolo e dar-lhes as boas-vindas.
Era bom que ficassem mais que os outros.

[escrito directamente no facebook em 2024/06/09]

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