O Pescador É uma Estátua

Chego e vou directo para o pontão sul do porto da Nazaré. Faço toda a circunferência exterior e entro por baixo, directamente para o pontão sul do porto de abrigo. Entro dentro do porto. Portas franqueadas. O café e o restaurante estão fechados. Passo pelos pavilhões e só páro junto ao início do pontão, sobre a praia que, dizem, vai ser o novo supertubos, mas não sei dizer. O meu conhecimento de surf resume-se ao que vejo fazer com o que há. Mas parece que já há gente a vir de Peniche para aqui, uma praia entalada entre a praia da Nazaré a norte e a dos Salgados a sul, a praia dentro do porto de abrigo, mesmo em frente ao Resort Holidays, casas em banda, geminadas, para alugar, frente ao mar, quase-quase junto ao mar mas longe o suficiente para sobreviver às cheias e às marés-vivas, mesmo que protegidas pelo pontão sul do porto de abrigo a norte e outro pequeno pontão a sul.
Páro o carro. Está frio, o dia, mas o sol bate no carro e aquece-me. Quando saio do carro, tenho de fechar o casaco. Há uma aragem fria que me corta a carne. Enfio as mãos nos bolsos das calças e caminho ao longo do pontão. Aproveito para tirar algumas fotografias, com o telemóvel, da Nazaré vista do lado do mar sem estar no mar, estou no pontão mas, nas fotografias, pareço estar no mar. Há muita gente à pesca, mas dentro do porto de abrigo, não no mar. Ao longo de todo o pontão, até ao pequeno farol, há uma série de pescadores, equilibrados nas pedras de três-pontas feitas em cimento. Uns em pé, outros sentados, canas esticadas sobre a água e a linha dentro da água. Sento-me na beira do pontão, os pés pousados numa das pedras de três-pontas e tento acender um cigarro. Está vento e nem mesmo o Zippo consegue manter a chama o suficiente para acender o cigarro. Desço um bocado para baixo e sento-me numa das enormes pedras de três-pontas. Volto a tentar acender o cigarro e já não há vento. Estou abaixo da linha ventosa. Fico por ali a fumar e a ver os pescadores a pescar. Admiro-lhes a paciência. Por vezes parecem bonecos. Não se mexem. Estão estáticos de frente para o porto, de cana na mão. Talvez não estejam mesmo ali. Talvez estejam algures, na cama de uma amante, de regresso ao passado, no jogo de ontem à noite, na fome do almoço que os obrigou a vir para aqui, à procura do jantar…
Passa o tempo. Passam horas. Eu estou por aqui. Encosto-me numa pedra de três-pontas e fico a apreciar os pescadores de cana. Fico espantado pela placidez deles, mas reparo como estou quieto há duas horas a observar o que não acontece. É que não aconteceu quase nada. Dois dos pescadores apanharam um peixe cada um. Não sei que peixe se apanha ali. E estão demasiado longe de mim para tentar perceber. Mas foi só. Os outros continuam na esperança. É esperança, não é? A esperança de conseguirem levar um ou mais peixes para casa, para a patuscada com os amigos ou para matar a fome aos filhos, sei lá, mas é a esperança de apanharem um peixe que os faz ficarem ali. Eu fumo cigarros. Observo-os de cana na mão. Vejo as nuvens brancas a passarem ao longo do céu azul. Vejo a encosta que contorna a Nazaré e descubro uma série de construções que imagino novas, não estavam lá, pois não? ou então nunca tinha reparado nelas, o que também é possível.
Tenho as pernas dormentes. Levanto-me. Estico as pernas. Agito os braços. Abro o casaco. Dispo-o. Tiro a t-shirt. Descalço as sapatilhas. Dispo as calças. Baixo os boxers. Tiro as meias. Desço o anfiteatro de pedras de três-pontas até à água. Mergulho na água do mar. Nado em frente. Faço cinquenta metros, mais coisa menos coisa. Não me cruzo com nenhuma traineira nem nenhuma mota de água. Inverto a marcha. Nado de volta. Fico cansado. Agarro-me a uma das pedras de três-pontas e puxo-me. Subo o anfiteatro. Vejo os olhares dos pescadores em mim. Sinto-os enquanto subo até à roupa que me aguarda. Visto-me molhado. Os boxers; as meias; as calças; a t-shirt; as sapatilhas; o casaco. Esfrego as mãos às perneiras das calças. Acendo um cigarro. Subo ao pontão. Continuo a sentir os olhares dos pescadores nas minhas costas. Percebo-os: O gajo é doido! Estou molhado. Dificulta-me o andar. Chego ao carro. Deito fora o cigarro. Entro e arranco. E pergunto-me Que raio é que eu fiz?

[escrito directamente no facebook em 2024/04/29]

Deixe um comentário