Os Velhos São Teimosos

O velho começou de manhãzinha a cavar. Quando vim à janela da cozinha, logo que me levantei, antes ainda de beber café e fumar o primeiro cigarro do dia, espreitei e vi-o lá, do outro lado do muro, a cavar nos terrenos da filha, a levantar a relva que já é só erva, urtigas e peladas queimadas com o químico que lá andou a aspergir para lhe matar as ervas-daninhas e acabou por matar tudo menos as ervas-daninhas. Eu sei porque ela contou-me. Apareceu cá um dia à tarde e disse
Já não sei o que fazer. Cada vez que digo alguma coisa, em jeito de queixa, o meu pai acha que lhe estou a pedir ajuda e tenta resolver, mas já não resolve nada, coitado, já só faz asneiras, vê lá tu que me queimou a relva do jardim para matar as ervas-daninhas que estão agora todas vivaças. E o jardim morreu. Já não sei o que fazer.
E eu agarrei-lhe a mão nas minhas mãos e disse-lhe
Não faças nada. Deixa-o sentir-se útil.
E ela deixou. E ele está ali, a cavar a terra, a arrancar a relva morta, as ervas, as urtigas, toda a variedade de coisas que começaram para ali a nascer desde que ele lhe aspergiu o químico, a revolver a terra para voltar a semear nova relva e fazer crescer um novo tapete bonito para satisfação da filha.
Já passaram algumas horas. Eu já tomei banho, bebi café, fumei três cigarros, já trabalhei em dois textos e o velho continua lá, a cavar a terra. É rijo, o velho.
Eu estou aqui à janela da cozinha a fumar um cigarro quando começa a chover. O velho continua a cavar debaixo de chuva, mas a chuva torna-se uma chuvada e o velho corre, naquele seu jeito de velho, um pé a seguir ao outro, a pedir licença, e o corpo em desequilíbrio, cai-não-cai, numa lentidão exasperante para debaixo do beiral da casa.
Ele não tem a chave de casa da filha? Nem da garagem?
Está ali debaixo do beiral. Mas a chuva vem tocada a vento. O velho está a molhar-se todo. Pego no telefone e ligo para a filha. Ela atende e eu digo
O teu pai está a apanhar chuva em tua casa.
Ela quis saber o que é que o velho andava lá a fazer. Ela não sabia que ele estava a querer voltar a semear relva nova. Ficou zangada. Não por o velho querer semear relva nova, mas por estar à chuva, a molhar-se, a ficar doente e a precisar que ela depois o leve ao hospital, de onde será recambiado para o centro de saúde depois de ser brindado com uma fita verde que lhe garantirá, pelo menos, umas dez horas de espera.
Ela desliga o telefone. Eu continuo a olhar o velho debaixo do beiral de casa. O velho leva a mão ao bolso da camisa e agarra no telemóvel. Atende. Com certeza, é a filha. O velho vai saber que fui eu quem o denunciou. Está a falar por alguns segundos. Ele desliga. Guarda de novo o telemóvel no bolso da camisa. Dirige-se à porta da garagem, enfia-lhe a chave e entra. E fica ali, dentro da garagem, a porta aberta, a ver a chuva a cair. Lá fora, no quintal, a motorizada, uma Vespa vermelha escura, descansa debaixo de água. Eu apago o cigarro, bebo um copo de água da torneira, abro o frigorífico para ver o que tenho para o almoço. Não tenho nada. Na despensa descubro uma lata de sardinhas com molho de tomate picante. Ainda tenho duas batatas. Posso cozê-las. E, então, volto aos meus textos.
Antes de sair da cozinha, dou uma última vista de olhos lá para casa da vizinha. O velho já está outra vez a cavar, mesmo que esteja ainda a chover. Não é grande chuva, é verdade, mas ainda assim, está a chover. É teimoso, o raio do velho.
E então, vejo o velho parar de cavar. Leva a mão ao coração. Estremece. Larga a enxada. E cai no chão. Cai em câmara-lenta. Eu reprimo um pequeno grito com a mão ao tapar a boca, abro a porta de casa e saio, descalço e em t-shirt, a correr alameda fora, faço a estrada de asfalto, galgo o muro da casa da vizinha e corro para o velho. Baixo-me junto dele. Ainda respira. Marco o Cento e Doze e chamo uma ambulância. Telefono para a filha para a avisar. Vou à garagem e encontro um chapéu-de-sol. Levo o chapéu-de-sol para ao pé do velho, abro-o e meto-me lá debaixo, junto ao velho, à espera da ambulância e da filha. À espera de quem chegar primeiro. E espero que o velho aguente.

[escrito directamente no facebook em 2024/04/26]

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