Cinquenta Anos na Avenida da Liberdade

Vejo as pessoas descerem a avenida pela televisão. Não estou lá. Não podia estar lá. Por tudo aquilo que disse no texto anterior de onde retiro o seguinte

íamos descer a avenida mas já não vamos. eu pelo menos não vou. não posso ir. não quero ir. houve algo que se perdeu nesta descida. não consigo pagar o aluguer de casa; não consigo ter um salário digno; não consigo ir de viagem para a capital do império para descer uma avenida que se vendeu às grandes marcas internacionais, pá! ou achas que eu não as vejo, cintilantes, por entre as árvores, enquanto descemos a avenida?
íamos descer a avenida mas eu já não vou. gosto de vás, tu e os outros, os outros todos que vão, que desfrutem da festa, a festa é vossa e vocês merecem-na, mas há os que não têm festa, os que caíram, os que se perderam, os que não têm mérito, os incapazes, os que estão tristes e desiludidos, os que deixaram de acreditar, os que têm de se levantar cedo de manhã para arranjarem qualquer coisa para comer ao meio-dia. não posso ir enquanto há gente a remexer no lixo das grandes superfícies; não posso ir com gente a dormir nas entradas dos prédios, debaixo dos arcos dos centros comerciais e nos bancos de jardim; não posso ir quando há gente nova de mão estendida porque não há trabalho nem comida nem um tecto para lhes proteger a existência; não posso ir enquanto há velhos de cabeça vergada com vergonha.

É por tudo isto que não estou lá. Mas como também disse, gosto de vos ver na avenida, uma enorme e larga avenida entupida de gente, uma avenida que se desce em vinte minutos, hoje demora horas, o tempo de um abraço, de um reencontro, o tempo das amizades, o tempo do renovar das esperanças. É um arraial, uma festa, um grito de liberdade que junta gente tão diferente. O dia de amanhã, logo se vê. Já estamos habituados a isso. Ao logo se vê. Não posso pagar a renda da casa? Logo se vê. Não tenho dinheiro para o almoço? Logo se vê. Não posso ir ao oftalmologista, ou ao dentista? Logo se vê. À falta de dentes, as gengivas. À falta de lentes, confiar na sorte e na desculpa Deixei os óculos em casa, que dizemos envergonhados, mas a vergonha não deveria ser de quem não tem e quem não pode, a vergonha deveria ser de quem tem, e de quem pode, e faz orelhas moucas às reivindicações justas. Mas os dois descem a avenida. Foi para isso que se fez o Vinte e Cinco de Abril. Para que possam descer os dois a avenida. Abril congrega, não separa.
Fiquei o dia inteiro em casa. Sinto algum frio. Visto um casaco. Vejo o dia político através das câmaras da SIC Notícias. As homenagens começaram logo de manhã. Tomo nota do que se diz. Do que não se diz. De quem diz o quê. E não há nada de novo. Não há grandes surpresas. Toda a gente representa o papel que se esperava que representassem. Os que se portam bem. Os que se portam mal (são sempre os mesmos). Os que se destacam pela qualidade. Os boçais. E, depois, no meio de tudo isto, vejo um grupo de fascistas ainda mais fascistas, aqueles de botas cardadas, que se manifestam no meio da manifestação, estes estão contra, contra Abril, contra a democracia, contra a liberdade, e gritam que estão contra, espumam raiva e ódio e são ladeados pela polícia para que não lhes façam mal e eles possam continuar a dizer mal desta democracia que lhes protege o direito de serem parvos.
Vejo a marcha. A marcha em forma de passeio. A marcha na Avenida da Liberdade. E, em espírito, estou lá. E desço a avenida de braço dado com todos eles, os que descem a avenida, mesmo não a descendo. Vejo milhares a caminharem em direcção ao futuro. Vejo milhões em casa, como eu, à espera que Abril se cumpra. Socorro-me do Sérgio Godinho

só há liberdade a sério quando houver
a paz, o pão
habitação
saúde, educação
só há liberdade a sério quando houver
liberdade de mudar e decidir
quando pertencer ao povo o que o povo produzir

e do Jorge Palma

ai portugal, portugal
de que é que tu estás à espera?
tens um pé numa galera
e outro no fundo do mar
ai portugal, portugal
enquanto ficares à espera
ninguém te pode ajudar

e quero lá ir, descer a avenida, quando, finalmente, Abril se cumprir neste país.
Desligo a televisão. Acendo um cigarro e vou até à cozinha. Abro a porta da rua e olho as montanhas. Está luar. Está uma noite calma. Silenciosa. E pergunto-me quanto tempo nos resta.

[escrito directamente no facebook em 2024/04/25]

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