Uma História de Amor

Conheci-a no dia em que o pai morreu. Entrei no bar. Sentei-me ao balcão. Pedi um gin tónico, Pode ser Bombay, disse, e ouvi uma fungadela ao meu lado. Era ela. Estava a chorar. Ofereci-lhe um lenço. Aceitou. Depois de ter bebido o meu gin, ofereceu-me ela outro. Aceitei. Conversou comigo. Foi aí que soube que o pai tinha acabado de morrer. Estava no hospital e tinha acabado de morrer. Ela largou toda a gente no hospital, o pai, a família, os amigos, o namorado e foi dar uma volta a pé pela cidade. Começou a chover. Entrou naquele bar. Bebeu um whiskey. Começou a pensar no pai. Na ausência do pai. Na falta que já sentia. Começou a chorar. E eu ofereci-lhe um lenço.
Foi nessa altura que vi como era bonita. Cabelos castanhos, nem muito escuros nem muito claros. Um pouco abaixo do ombros. Tapava-lhe o pescoço quando vista por trás, e eu sei porque vi quando fui à casa-de-banho e, ao regressar, regressei pelas costas dela.
Tinha uma voz doce, embora naquela altura estivesse um bocado amargurada. Mas percebia-se a doçura que lá estava. Era calma a falar. Mesmo no meio de toda aquela tristeza. Tinha os dedos esguios, compridos e finos, numas mãos elegantes, nem muito grandes nem muito pequenas. Eu reparei quando ela colocou a mão em cima da minha e me convidou para ir a casa dela. Eu lembrei-me dela ter mencionado um namorado. Hesitei por momentos. Mas momentos tão curtos que acho que ela nem se apercebeu da minha hesitação.
Entrei em casa dela nessa noite e nunca mais saí de lá. A partir desse dia aconteceu uma história de amor. Uma verdadeira história de amor. Como a dos romances de cordel. Eu gostava dela, ela gostava de mim e vivemos felizes para sempre. E foi mesmo isso que aconteceu. Vivemos felizes para sempre.
Estou a falar disto agora porque se acabou o Para sempre. Ela morreu. Morreu de morte natural, ao contrário do pai dela. Já estávamos velhotes. Ela e eu. Ela já foi e eu hei-de ir. Já não falta muito. Eu devia ter ido primeiro. O que é que estou aqui a fazer sem ela?
Acho que fiquei por cá para contar esta pequena história.
A nossa história começou com uma morte e acabou com outra. Primeiro o pai dela, agora ela. No meio, uma história de amor com final feliz. Mas o que ela não sabia, nunca soube, nem ninguém mais soube, foi que houve outra morte nesta história. Uma morte que só eu é que soube que acontecera. Quer dizer, toda a gente soube da morte, mas ninguém nunca soube como é que verdadeiramente morreu. Só eu. E sei porque estava lá. E fui o responsável pela morte. Pela morte do namorado dela. Para toda a gente foi um suicídio. Mas não foi.
Estávamos, eu e ela, a viver juntos já quase há um mês. O pai tinha morrido, tinham feito o funeral e a missa de sétimo dia quando, uma noite, depois de ter ido jantar um prego no pão ao balcão de uma tasca no centro da cidade, perto do sítio onde estava a trabalhar, era já tarde e resolvi comer um prego no pão antes de ir para casa, quando fui abordado por um tipo. Não o conhecia de lado nenhum. Mas ele conhecia-me. E apresentou-se. Era o namorado. O ex-namorado dela. Então primeiro apresentou-se e em seguida ameaçou-me. Que eu não sabia quem ele era, mas que não era flor que se cheirasse (palavras dele), e que sabia que ela ainda gostava dele só que estava desnorteada pela morte do pai e eu tinha ajudado a esse desnorte. O melhor a fazer era afastar-me. Eu ouvi-o. Mais por educação que por respeito. Eu nunca disse nada. Limitei-me a ouvir. No fim, quando percebi que já tinha debitado todas as ameaças para que eu enfiasse o rabo entre as pernas e saísse de casa dela, da vida dela e do amor dela, virei costas e fui para o carro. Estava ao volante do carro quando o vejo virado para mim, levar a mão à cabeça a formar um pistola e fazer um gesto com a boca que, na minha cabeça, ressoou como Bang!
Pus o carro a trabalhar. Fiquei ali uns momentos a olhar para ele com a mão em pistola na cabeça, até que começou a rir, a rir à gargalhada. Cínico. Eu meti a primeira, pisei o acelerador e arranquei com o carro para cima dele. Ao aproximar-me, guinei o volante para a direita mas, ele já se tinha assustado e tinha mandado um salto para a esquerda e acabou a pular o muro que dava para a linha do comboio que ali, naquela zona da cidade, passava desnivelado da estrada, e caiu no meio da linha no momento em que o comboio ia a passar.
Eu ainda parei o carro. Olhei para o muro. Percebi o comboio a passar. Ouvi o comboio a apitar. Percebi o comboio a travar. E fui embora. Não queria saber mais do que tinha acontecido. Talvez não tivesse acontecido nada. Talvez tivesse acontecido alguma coisa. Mas não queria saber. Queria apagar aqueles últimos minutos da minha cabeça. Queria esquecer. E esqueci.
Vivi… Quantos anos?… Mais de trinta anos com ela. Vivi… Vivemos uma verdadeira história de amor. Um com o outro. Eu esqueci o que tinha acontecido. O ex-namorado tinha realmente morrido na linha do comboio. Atropelado pelo comboio. Foi considerado suicídio. Por algum tempo, ela culpou-se por o ter deixado da forma que deixou. Mas passou. Tudo passa, não é?
Foi depois da morte dela que me lembrei daquela noite. Foi depois da morte que me lembrei onde estava ancorada a nossa felicidade.
É por isso que eu tenho de fazer o que vou fazer. Tenho de fechar o círculo. Espero conseguir levantar as pernas por cima do muro. É que o corpo já não me obedece como dantes.
Já vou ter contigo, meu amor.

[escrito directamente no facebook em 2020/02/08]

O Advogado

Ainda o autocarro não tinha saído de Sete Rios, já o tipo se anunciava ao mundo. Sim, era advogado, mas estava sem farda. Já era entradote e não estava de fato, o que complicou um pouco o imaginário. O meu imaginário. Sim, eu sei, as coisas já não são como eram. O mundo é outro. As pessoas evoluíram e os estereótipos são redutores, além de serem estúpidos e preconceituosos. Pronto, mas eu sou um tipo um bocado estúpido e cheio de estereótipos que me ajudam a balizar o mundo. Preciso de me manter em equilíbrio. O homem usava umas calças de sarja, salmão (quem é que usa umas calças salmão?). Calçava umas botas de pele, de meio-cano, com atacadores e fecho atrás, no calcanhar, umas botas daquelas com furinhos em forma de cornucópias na biqueira e de um castanho-amarelado quase-Camel. Na parte de cima, e por baixo de um anoraque cinzento, daqueles muito barulhentos que orquestram o ar a cada movimento, vestia um pulôver vermelho. Talvez tivesse uma camisa, não sei, mas não consegui ver por baixo do cachecol às riscas, em vários tons cinza, que tinha enrolado à volta do pescoço. Aquelas cores, muito próximas e, no entanto, tão diferentes, criavam assim uma espécie de ton-sur-ton bizarro e louco, demasiado colorido para alguém que se queria advogado, isto segundo as minhas leis pré-estabelecidas sobre a ordem do mundo, e antes de ser jogado para outra dimensão.
Então, ainda o autocarro estava em Sete Rios, o advogado dizia, num tom de voz jorrado do palco sobre a plateia, que estava a conduzir, tinha parado para uma mijinha (palavra dele), estava a ver o processo pelo WhatsApp enquanto bebia um cafezinho, mas que aquele tipo de assunto merecia ser visto num computador, com ecrã grande, que o deixasse pensar, o que iria fazer assim que chegasse ao escritório.
Eu estava zangado com a algazarra ao telemóvel, mas não deixei de sorrir à mentira gritada frente a tantas testemunhas. E pensei, É mesmo advogado?
O tipo estava sentado ao meu lado, no outro lado da coxia central. Cofiava a barba de três-dias, grisalha. Acenava com a cabeça como se o interlocutor o estivesse a ver. Mas aquela não era uma vídeo-chamada. Despediu-se com um Com certeza! e desligou a chamada.
À nossa volta, minha e dele, uma série de passageiros, quase todos com ar de estudantes universitários, todos agarrados a computadores e tablets e umas meninas, bastante coloridas nas roupas e na decoração, que falavam baixinho entre si e passaram o tempo todo a escrever nos telemóveis com dedos encimados com unhas-de-gel que faziam tec-tec-tec no ecrã, estavam em trânsito de uma cidade para outra.
Pensei no que esta gente fazia com os computadores e com os tablets porque não havia internet no autocarro. O wireless é uma miragem mais prometida que oferecida. Estava tudo morto. Só o telemóvel do advogado continuava a apitar.
Gritava para se fazer ouvir do outro lado. Está?, perguntava. Não era nenhum constituinte. Era a mulher. Sim, claro que a mulher sabia que ele ia de autocarro. E sim, sabia que tinha de o ir buscar. E sim, ainda tinha tempo para fazer o que precisava de fazer. Ele ainda estava em Lisboa, dizia quando se aproximava já de Loures, mas ainda não tinha passado a portagem. Eu não ouvia a mulher. Mas ouvia-o a ele e percebia-a a ela.
O autocarro não ia cheio. Qualquer coisa para cima de meio. Mas quem ouvisse o homem, julgaria que o autocarro estava vazio e que se tinha transformado em escritório de advogado que trabalhava por WhatsApp, embora o computador fosse melhor para analisar alguns casos.
E à mulher ainda disse Sim, querida, vamos jantar… O que tu quiseres… Pode ser uma sopinha. Ainda estou cheio do almoço, vê lá tu.
Depois uns beijinhos enviados em rapidez e, finalmente, desligou.
Fez-se um silêncio que me pareceu estranho. Já me tinha habituado.
Mas logo ouvi Oh, foda-se! quando o advogado percebeu que o wireless do autocarro não estava a funcionar. Olhou em volta para ver se alguém tinha internet, mas tal como eu não deve ter percebido nada. Toda a gente que se avistava estava a fazer coisas nos computadores, nos tablets ou nos telemóveis. Eu vi isto pelo canto do olho.
O silêncio não durou muito tempo. O telemóvel começou a tocar uma música clássica muito alto. O homem foi apanhado de surpresa. Vejo-lhe os dedos a tocarem no ecrã. Está aflito. Devia estar a fazer alguma coisa no WhatsApp, fora surpreendido com a música de chamada e não estava a conseguir responder à situação.
Finalmente consegue atender o telefone. Troca o barulho da música por um português que balança o samba. Percebo que fala com alguém brasileiro. O seu português ganha as curvas musicais adocicadas do hemisfério sul. E diz Não pude fazer a transferência porque o seu IBAN só tem 20 números e o nossos tem 21. O ATM não aceitou a transferência. Veja lá isso.
Sim, pensei eu, veja lá isso e dê-me tempo.
Depois desculpa-se e diz que tem outra chamada. Atende a outra chamada. Fica mais alegre. Ouço-o dizer O bom que há aqui é que não há ninguém no meio. Estou directamente com a empresa. Isto é cinquenta por cento para cada lado. Exactamente. Ok? Um abraço.
Quando era mais novo, não novo de adolescente, mas ainda jovem, conseguia dormir em qualquer lado e em quaisquer condições. Sentava-me sobre o cóccix, os joelhos presos nas costas do banco da frente, deixava-me embalar pelos solavancos do autocarro e passava pelas brasas. Recuperava forças. Dormitava um pouco e, quando chegava ao destino, estava pronto para o que o destino me quisesse aprontar. Agora era mais difícil. Estou maior. Mais gordo. O espaço entre os bancos encolheu, não encontro conforto e já não consigo dormir em andamento. Mesmo ler qualquer coisa provoca-me vómitos. Mas gosto de ir sossegado. A pensar com os meus botões sobre as vicissitudes da minha vida.
Mas aquele advogado ali ao lado, aquele advogado-actor que parecia estar em cima de um palco a falar para a última fila da plateia, estava a dar comigo em doido. E foi assim até ao destino.
Ao chegar ao destino, o advogado ansioso já em pé durante as manobras de estacionamento do autocarro, voltou a receber uma chamada telefónica do brasileiro do IBAN. Dizia que estava no ónibus e não podia tratar de nada. Agora não posso tratar de nada, dizia. Estou no ónibus. Amanhã, dizia. Mas tem de arranjar alguém com uma conta portuguesa com um IBAN de 21 espaços para 21 números. Veja lá. Amanhã… Amanhã…
E enquanto descia as escadas da porta traseira do autocarro, e eu atrás dele, o advogado continuava a dizer Amanhã… Amanhã… Cada vez mais baixo, como um final de peça, Amanhã… Amanhã… Cada vez mais baixo, quase até ao limite da audição. Amanhã… Amanhã…

[escrito directamente no facebook em 2020/01/28]

Setenta e Cinco Anos

E então?
É noite, embora fosse ainda dia. Fumo um cigarro à janela e ouço a telefonia na cozinha.
Hoje é dia de memórias. Passam setenta e cinco anos da libertação do campo de Auschwitz. Mas parece que ninguém aprendeu nada.
Continuamos a cuspir-nos ao espelho.
Espelho meu, espelho meu, existe alguém melhor que eu?
O trabalho liberta.
Soares é fixe.
O partido é sexy.
Diferentes mas iguais.
#MeToo.
Fumo o cigarro cá em cima, à janela. Lá em baixo passam as pessoas apressadas. Para o trabalho. Para casa. Fazer o jantar. Lavar a roupa. Passar a ferro. Fazer os TPC. Aspirar o pó. Cerzir as meias. Mudar a roupa da cama. Apanhar as batatas. Plantar milho. Cozer as couves. Assar um frango. Amanhar o peixe. Pintar as unhas. Cortar o cabelo. Lavar o carro. Ver o jogo. Corrigir as provas. Coçar um olho. Coçar os dois. Abrir a boca num bocejo. Que horas são?
Fumo o cigarro cá em cima, à janela. Lá em baixo passam as pessoas apressadas.
Uma voz grita Bebes um copo? As cabeças abanam. Todas as cabeças abanam. As pessoas estão atrasadas. Estão sempre atrasadas para irem fazer o que têm de fazer.
O trabalho liberta. Liberta quem?
Continuo a fumar o cigarro à janela enquanto ouço a telefonia na cozinha.
A mulher mais rica de África, ouço.
A mulher é uma ladra, ouço,
As provas não têm legalidade no país, ouço.
O trabalho liberta, lembram-me.
Não. O dinheiro liberta.
Setenta e cinco anos da libertação de Auschwitz. Não aprendemos nada.
Continuamos no ódio. Ao judeu. Ao árabe. Ao cristão. Ao preto. Ao amarelo. Ao vermelho. Ao comunista. Ao fascista. À mulher. Ao homem. Ao velho. Ao novo. Ao careca. Ao cabeludo. Ao albino. Ao cigano. Ao transmontano. Ao alentejano. Ao vizinho. A ti. A mim.
E então?
Está escuro e é já quase noite. Acabo de fumar um cigarro à janela e ouço a telefonia na cozinha.
Hoje é dia de memórias. Passam setenta e cinco anos da libertação do campo de Auschwitz. Mas parece que ninguém aprendeu nada.
Mando fora a beata do cigarro. Fecho a janela. Desligo a telefonia.
Silêncio.
Não estou.
Não estou para ninguém.
Tenho o jantar por fazer. A roupa por lavar. As camisas por passar. Os TPC por fazer. O pó por aspirar. As meias por cerzir. A roupa da cama por mudar. As batatas por apanhar. O milho por plantar. As couves por cozer. O frango por assar. O peixe por amanhar. As unhas por pintar. O cabelo por cortar. O carro por lavar. O jogo para ver. As provas por corrigir.
Foda-se!
Visto o casaco. Apanho o maço de cigarros, o telemóvel e a carteira. Saio de casa. Preciso de rua. De ar fresco. De gente. De conversar. Beber um copo. Rir. Dançar.

Ausência de Bilhete Validado

Há dias em que não consigo evitar e baixo às emoções do Correio da Manhã. A violência toma conta de mim. Por mais que lhe queira fugir, sinto-me atraído como os insectos voadores por uma lâmpada acesa na escuridão nocturna.
Então, a notícia que estava na ordem do dia era de uma mulher negra que tinha sido espancada por um agente da polícia. Li a notícia no Facebook. Li a notícia sentado no sofá com o iPad nas mãos.
Acendi um cigarro.
Fui às páginas do Correio da Manhã. Comecei a ler.
Era tarde. Não tarde de madrugada, mas já era noite. Uma noite fria. A mãe, cansada, depois de mais um dia como os outros, a correr de um lado para o outro, a cumprir todos os horários que tinha de cumprir, depois de fazer todos os trabalhos que tinha de fazer, depois do sol já se ter escondido para lá do horizonte e das luzes da cidade lhe conferirem uma falsa vida de fantasia colorida ao seu dia, estava finalmente a entrar no autocarro com a filha pequena pela mão. O autocarro que a iria levar para casa. Depois do último trabalho tinha ido a correr buscar a filha à escola antes que a escola encerrasse. E, depois da viagem, ia chegar a casa e preparar o jantar para ela, para a filha e para os outros dois filhos que já lá estavam à espera que a mãe chegasse. Verificar se os filhos tinham feito os trabalho da escola. Um banho rápido, mais um passar por água que propriamente banho. Ela e a filha, aproveitando o mesma água, o mesmo banho. E então, finalmente iria sentar-se um pouco na cadeira da cozinha a olhar, alheada, para a televisão que debitaria qualquer coisa que não lhe iria interessar mas que lhe serviria de companhia até adormecer. Iria acordar com a filha a chamá-la do quarto porque estava a ter um sonho mau e ela iria então para a cama dormir algumas horas deitada antes de ter de se levantar de novo e, de novo, retomar outra vez os mesmos rituais de todos os dias, dias iguais, dias tristes, dias alegres, dias cheios de esperança e desilusão.
Mas não foi o que aconteceu.
À entrada no autocarro, a mãe percebeu que a filha se tinha esquecido do Passe Social. O motorista-cobrador exigiu a validação da entrada das duas. Ela estava cansada. A filha estava com fome e sono. A mãe pediu para que o motorista-cobrador deixasse entrar a filha. Afinal só tinha oito anos. O motorista-cobrador mostrou-se inflexível. É a lei. A lei é para cumprir. E os dois esgrimiram razões. A mãe exaltou-se. O motorista-cobrador também. Elas tinham que abandonar o autocarro, dizia o motorista-cobrador. Que não, era noite, estava frio e a criança estava com fome e sono e ela só queria chegar a casa, dizia a mãe.
Desvairado, o motorista-cobrador arrancou com o autocarro pelas ruas da cidade e parou junto a uma esquadra de polícia. Um agente aproximou-se do autocarro. O motorista-cobrador abriu a porta da frente. Queixou-se ao agente da polícia. Queixou-se da mãe. E da ausência de passagem validada da criança. É a lei, disse o motorista-cobrador. É a lei, concordou o agente da polícia.
O agente pediu à mãe que saísse e fosse com ele à esquadra. Mas a mãe só queria ir para casa. Com a filha. E tinha lá os outros dois filhos à espera. O polícia insistiu. A mãe também. O agente chamou-lhe recusa a uma ordem da autoridade. A mãe enervou-se. Estava cansada. O agente também se enervou. Também estava cansado. Farto das más condições de trabalho. Farto da merda de vida que tinha. E depois de um dia difícil, aquilo ali assim… Para lhe estragar o resto do dia.
O agente pegou a mãe por um braço e puxou-a para fora do autocarro. A mãe gritou. Chamou nomes ao agente da polícia que ainda se enervou mais. O agente da polícia puxou a mãe à força. A criança tentava agarrar a mãe. Chorava com medo. O agente forçou a mãe a descer do autocarro. A mãe caiu para fora do autocarro. Caiu no asfalto. Arranhou a cara. Esfolou as mãos. Rasgou as calças de ganga. Depois tentou voltar a entrar no autocarro com a filha agarrada a ela. O agente deitou a mãe ao chão e tentou imobilizá-la perante o olhar assustado da filha. A mãe debateu-se. Era forte. Cuspiu no agente. O agente bateu na mãe. Deu-lhe dois murros na cara. Rebentou-lhe o lábio. Abriu-lhe um golpe no sobrolho. A mãe gritou. A mãe era preta. Assim como a filha. Mas o sangue brilhava sobre o preto da sua pele. Debateu-se. O agente em cima dela a tentar colocar-lhe umas algemas. Ao lado, a filha chorava.
Acordei.
A cigarro tinha-se consumido inteiro. Estava todo feito num rolo de cinza. Mexi-me e a cinza caiu-me em cima. Esfreguei os olhos. Sacudi a cinza para o chão. O iPad estava a negro. Voltei a acender outro cigarro. Liguei outra vez o iPad. Estava nas páginas do Correio da Manhã. Uma mulher que fora agredida pela polícia, tinha sido constituída arguida. Desliguei o iPad e larguei-o em cima do sofá. E fiquei por lá sentado, agoniado. Não consegui continuar a fumar. Estava com vontade de vomitar.

[escrito directamente no facebook em 2020/01/21]

Um Agente da G.N.R. Tocou a Campainha da Porta da Rua

Fiquei sem gasolina na motorizada. É uma merda ficar sem gasolina na motorizada às sete da manhã, depois de uma noite de trabalho em dia que promete chuva.
Sou o único a fazer as noites aqui na fábrica. O que fica a funcionar à noite é tudo automatizado, mas alguém tem de estar de vigia não vá o diabo tecê-las e alguma das máquinas parar, ou aquecer demasiado. Quando a fábrica acabou com o turno da noite, ninguém se prontificou a continuá-lo. Eu ofereci-me. Gosto de trabalhar à noite. Recebe-se um pouco mais. Não é muito mais. Mas ainda é algum. De qualquer forma, não tenho ninguém à minha espera em casa. Com excepção da minha filha quando cá vem. Ela vem e vai assim, quando lhe dá na telha. Nem diz água vai. Quando se farta da faculdade, dos colegas, do namorado, vem cá passar uns dias a casa. Às vezes mal a vejo. Ela entra e sai. Eu também entro e saio. Às vezes jantamos. Jantamos cedo para eu entrar ao serviço. Mas jantamos. Às vezes também tomamos o pequeno-almoço juntos. Já aconteceu eu estar a chegar a casa e ela ter a mesa posta, torradas feitas e barradas com manteiga e uns ovos mexidos, coisa que nunca como ao pequeno-almoço mas que me agrada que ela faça. Mas não acontece muito. Geralmente está a dormir quando chego a casa. E quando acordo, ela já não está por lá.
Começa a chover. Uma merda nunca vem sem companhia. Gaita.
Logo à noite tenho de vir mais cedo para fazer o caminho a pé e trazer um jerricã com combustível para a motorizada. Até me faz bem andar a pé mas, ao fim de uma noite de trabalho, quero é esticar-me na cama e deixar-me adormecer. Não andar a fazer maratonas. Já não tenho idade para maratonas. E agora chove. E começa a chover com alguma força.
Não vale a pena acelerar o passo. Já estou encharcado. E não consigo andar muito mais depressa com esta perna apanhada pelo reumatismo. Maldita velhice. Maldita vida de pobre.
As luzes dos candeeiros de rua ainda estão acesos. Já há alguns carros na estrada. E ali vai a carreira para Lisboa. Também ia nela para Lisboa. Ia ao Estádio da Luz ver o voo da águia Vitória. Ia a Belém comer um Pastel de Nata, daqueles a sério. Apanhava o comboio no Cais do Sodré e ia até Cascais. Depois voltava. Gosto de viajar ali assim, ao lado do rio que é quase já mar. Há zonas lá que quando as ondas estão mais furiosas quase que atingem o comboio. Gosto de ver isso. Gosto de ver a fúria daquele quase-mar quase em cima de mim. Já uma vez lá fui. E gostei. Prometi que voltava. Nunca mais voltei.
Também gostava de apanhar o Cacilheiro e cruzar o rio até à outra margem. Passear-me ali pelo Cais do Ginjal. Ver aqueles carros que se enfiam por lá, a tentar sair sem cair ao rio. Há gente muito doida. Muito doida mesmo.
Fumava um cigarro, mas molhava-se todo. É melhor não.
Também ia comer um bife à Portugália. Um dia não são dias. E levava a miúda. Se ela quisesse ir comigo. Gosto daqueles bifes com molho. Acho que é um molho de mostarda, não é? E um ovo estrelado por cima do bife. E as batatas fritas. Gosto de molhar as batatas fritas naquele molho. E tenho de pedir o bife mal passado. Quase cru. Senão, torram-no todo. Há quantos anos não vou a Lisboa?
Nem sei porque é que estou a pensar nestas coisas. Sei que não vai acontecer. Eu nem posso sair daqui. Quem é que iria fazer as noites na fábrica? Ninguém quer fazer as noites na fábrica. Só eu.
Tenho de fumar um cigarro antes de entrar em casa. Não fumo em casa com a miúda lá. Ela não gosta do cheiro. Eu percebo-a. E não me custa nada, não é?
Aqui. Aqui na paragem dos autocarros. Sento-me aqui um pouco e fumo um cigarro. A casa é já ali. Fumo um cigarro e depois vou descansado para casa.
Acendo o cigarro. Faço um esquema do meu dia. Tomo um banho. Seco-me. Deito-me. Adormeço. Tenho de me levantar mais cedo, amanhã. Para ir buscar combustível para a motorizada e fazer o caminho a pé até à fábrica. Como qualquer coisa. Arranjo o farnel para a noite. E vou à estação de serviço. E agora, um banho antes de me deitar. Estou encharcado. Encharcado e com frio. Talvez ela tenha feito o pequeno-almoço.
Acabo com o cigarro. Vou até casa. Entro. A casa está às escuras. E em silêncio. Cheira-me a café. Vou até à cozinha. A máquina do café esta ligada. Ela fez café, mas não fez pequeno-almoço.
Está uma folha de papel em cima da mesa da cozinha. Agarro no papel.
Fui-me embora. Não sei quando venho outra vez. Arranja um telemóvel. Xi♥. A tua filha.
Fico ali um bocado em pé com o bilhete na mão. Sei que nos vemos pouco. Que não conversamos muito. Mas agora que sei que ela voltou, de novo, para Lisboa, sinto a casa ainda mais triste. Triste e fria. Tenho um arrepio de frio. Lembro-me que estou molhado. Bebo uma caneca de café que ela deixou feito e vou para a casa-de-banho. Tomo um duche quente. Seco-me. Vou para o quarto. Deito-me na cama. Estou cansado. Ponho o despertador e fecho os olhos. Aguardo que o sono me leve.

Sou acordado com a campainha da porta da rua a tocar. Abro os olhos. Vejo as horas. Ainda é muito cedo. Muito cedo para mim. Levanto-me. Visto umas calças. Calço uns chinelos. Saio do quarto. Percorro o corredor e abro a porta da rua. Está um agente da G.N.R. do outro lado da porta aberta. Conheço-o. Faço uma interrogação com a minha cara. Ele diz Houve um acidente com a carreira que ia para Lisboa.

[escrito directamente no facebook em 2020/01/14]

Naquela Época…

Naquela época não havia grande diferença entre o Natal e a noite de Passagem de Ano. A minha mãe passava os últimos dias na cozinha a popularizar odores que enchiam a casa. Havia talvez menos gente na Passagem de Ano. A comida também era diferente. Menos doces. Menos comida de adulto. Mais petiscos. E o que eu adorava petiscos. Também se bebia mais. Não eu, que tinha direito ao mesmo copo de sumo de laranja da Superfresco no Natal e na Passagem de Ano, mas os meus pais diversificavam o que bebiam e que eu ia percebendo pelas diferentes garrafas que se iam abrindo. No Natal era mais o vinho tinto, de garrafas iguais que se iam despejando, umas atrás das outras, enquanto que na Passagem de Ano mudavam frequentemente de garrafa de tipo de bebida e as garrafas não eram bebidas até ao fim. Com excepção do espumante que vertia metade para o chão da sala, sobre a alcatifa que, anos mais tarde, seria toda levantada e o chão de madeira afagado até porque a alcatifa fazia mal à minha bronquite, e o resto era despejado pelas goelas dos meus pais, aos poucos, e a mim era dado a provar um pouco daquelas borbulhas que me faziam impressão no nariz e que jurei nunca vir a gostar. E a verdade é que não gosto muito de espumante. Mas chega a noite da Passagem de Ano e, se ainda estiver em pé, é que há anos em que não chego acordado à meia-noite, já para não falar das Passagens de Ano que faço agarrado ao lava-louças, a lavar a louça do jantar e a evitar falar com quem quer que seja com quem me incompatibilizei por qualquer motivo tão estúpido quanto sem sentido e do qual já nem sei a razão, despejo uma garrafa pelo gargalo e no final arroto sonora e satisfatoriamente para gáudio da criançada que por qualquer azar do destino por cá se encontre.
Naquela época ainda acreditava no Pai Natal, em unicórnios e na bondade do homem. Naquela altura tudo isto me parecia mágico.
Agora a magia termina quando a carteira fica vazia. E tão facilmente ela fica vazia.
Agora sento-me na varanda, uma mantinha por cima dos ombros, e aguardo o fogo-de-artifício que a câmara municipal faz questão de mandar do alto do castelo. Tenho um volume de cigarros e um pacote de dez litros de Capataz. Deve chegar até à meia-noite e mais alguns minutos a acompanhar o fogo-de-artifício pelo ano novo dentro. Depois vou deitar-me. Talvez já bêbado. A desejar que o ano que se abre seja melhor que o que se foi. E doze meses depois perceber que é sempre igual. É sempre tudo igual. A história repete-se. E a minha vida também.
Estou um velho chato e demente. No meu tempo é que era bom. No meu tempo, no tempo em que os meus pais é que tratavam de tudo e eu não precisava de ser nada mais que um miúdo traquina que os pais amavam mais que a vida, é que as Passagens de Ano eram boas.
Agora só quero que tudo passe o mais rápido possível para que a vida recupere o seu regular caminho igual, monótono e chato com que consigo lidar todos os dias.

[escrito directamente no facebook em 2019/12/31]

A Passagem de Ano Já Chegou?

À minha volta é a azáfama. Ultimam-se os preparativos para a Passagem de Ano. Sou um privilegiado. Eu sei.
Estou na cozinha, encostado à janela aberta, a fumar um cigarro, e já sinto o frio que não esteve durante a tarde mas que começa agora a chegar.
Vejo, em cima da mesa, uns frascos individuais com Panna Cotta. Alguém pôs o bacalhau a cozer em leite. Alguém está a fazer molho béchamel (Isso de comprar em pacotes já feito, no supermercado, é para meninas, ouço dizer). Dizem-me que é para o Bacalhau com Natas que vamos comer amanhã ao jantar. Eu ainda adianto que Bacalhau com Natas não é comida de Passagem de Ano, mas logo alguém me responde que a cozinha está à disposição se eu quiser cozinhar algo digno da Passagem de Ano. Eu faço um sorriso amarelo e declino o convite.
Alguém passa por mim e deposita-me um copo de gin nas mãos. Não é um copo grande, em balão, para gins modernos. Não. É um copo alto, clássico, a lembrar as noites a perder madrugadas nos idos de ’80. É Bombay, dizem-me. Aceno um agradecimento.
No fogão fritam-se batatas. Voltam a dizer-me que é para o Bacalhau com Natas. Eu aceno, entendido, a cabeça. Mas fazer Bacalhau com Natas desta forma artesanal dá muito trabalho. Eu costumo comprar bacalhau já desfiado, batata palha e béchamel em pacotes. Mas antecipo um pitéu à maneira. Que venha o Bacalhau com Natas.
Na mesa vão crescendo pequenas taças com patés vários que alguém está a fazer. Azeitonas com alho e azeite. Jaquinzinhos da Horta. Toda a gente faz coisas. Eu fumo um cigarro e observo. Alguém tem de dar conta do que se faz e contar para memória futura.
No ano de 2019, nos fundilhos da calças já gastas do final do ano, houve alguém que se deu ao trabalho de cozinhar coisas boas para eu comer.
Lanço fora a beata do cigarro já consumido e vou pôr música. Alguém tem de cuidar do que é realmente importante. Ponho o No Home Record da Kim Gordon, aquele que foi, para mim, o álbum do ano. Aumento os decibéis a rebentar as colunas e os tímpanos. Há gente a abanar a cabeça enquanto trabalha em prol dos outros.
É para amanhã? Não, também é para hoje. Também comemos hoje, não? Ou ninguém tem fome?
Descubro pudins, bolos, um Tiramisú, um Strawberry Cheese Cake, na mesa da cozinha que vejo cada vez maior e mais cheia. Só doces. Onde estão os salgados, pá? Adivinhando as minhas preces, alguém leva-me um rissol de camarão à boca. É bom, a porra do rissol. Mas desfez-se num instante. Assim como o meu gin.
Agora vou eu fazer um. Pergunto quem quer. Copos altos, elegantes. Copos do tempo. Despejo gelo. Espremo limão. 1/3 do copo de Bombay. 2/3 de água tónica. Faço a distribuição. Esta gaita é boa.
Acendo novo cigarro.
Alguém chega com camarão. Passa-o por água. Coloca numa caixa de plástico e deposita-o no frigorífico. E eu pergunto-me porquê? Por mim morria já agora aqui. Mas sigo as ordens dos outros. Às vezes esqueço-me como é viver em comunidade. Como é viver com os outros. Então tenho de fazer um esforço para não ser parvo. E fico quieto. À espera que alguém decida. Tome a razão. Agrupe as vontades. O camarão é para amanhã. Assim seja.
Outro alguém passa por mim e larga-me uma pedra nas mãos e diz Faz aí uma, se queres ver. E eu tenho um momento de pausa. O que faço ao cigarro que tenho na mão?
Mando o cigarro pela janela. Faço o charro. Acendo-o. Dou-lhe mais duas passas e passo-o ao outro. No caso, à outra. Uma das que está a trabalhar aqui na cozinha.
Depois está toda a gente a rir. Depois está toda a gente a comer. Depois alguém diz, Deixem alguma coisa para amanhã. Depois alguém estende a mão e diz-me Faz outra! e larga-me outra pedra na mão. E eu faço outra. E fumo-a. E passo-a ao lado. E já toda a gente se ri. Eu também me rio. Nem me reconheço. Depois toda a gente come. Depois alguém diz Caga na Passagem de Ano.
E ouve-se uma gargalhada geral amplificada pelos sentidos de percepção aguçados e muito sensíveis que eu tenho.
Eu sou muito sensível, ouço-me dizer. E toda a gente me ouve dizer. E toda a gente se ri. E eu também me rio de mim.
Alguém abre uma garrafa de espumante. A rolha salta e ninguém vê para onde foi. O espumante espalha-se pelo chão da cozinha. Alguém diz Que se foda a Passagem de Ano. E depois toda a gente bebe pelo gargalo. E alguém diz Tu não que tens herpes. Tenho herpes é o caralho, responde outra voz.
A garrafa circula. Alguém agarra numa esfregona e tenta limpar o chão da cozinha.
Alguém agarra-se a mim e beija-me. Sinto uns lábios a roçarem-se nos meus. Sinto uma língua a entrar dentro da minha boca. Sinto uma mão à procura do meu sexo. Ouço uma voz sussurrada dizer-me ao ouvido Feliz Ano Novo. E eu penso Mas ainda não é hoje, ou é?

[escrito directamente no facebook em 2019/12/30]

O Caminho Até ao Esquecimento

Eu passava pelo corredor, a porta do quarto dela estava encostada, tinha medo de estar fechada no quarto, era muito medricas, mas ao mesmo tempo queria estar sozinha, isolada do resto da casa, do resto da família.
Em silêncio, espreitava para dentro do quarto pela frincha da porta encostada e via-a sentada na cama, as costas apoiadas na parede fria e a almofada a aparar a cabeça, os pés, os pés dentro das sapatilhas sujas, acho que nunca tinham sido lavadas, espojados em cima da coberta da cama. A cama estava por fazer, claro. Ela pegava nas orelhas do edredão e da coberta e puxava para cima, mas não fazia a cama. Deitava-se todos os dias assim, naquela espécie de enxerga mal parida de panos enrodilhados neles próprios, dia-após-dia, durante uma semana, até ao dia em que a mãe lhe mudava a roupa da cama e então sim, a cama era feita, bem feita, e ela conseguia dormir, pelo menos uma vez por semana, numa cama lavada, de lençóis esticados e frescos, e um edredão sacudido de lixos e cheiros que ela acumulava ao longo da semana até ser novamente Sábado e a mãe entrar pelo quarto a dentro, a ralhar, mais uma vez, com ela, mas as conversas a entrarem e a saírem à mesma velocidade, a velocidade de quem não quer saber nada disso e consegue viver assim sem estas merdas pequeno-burguesas de limpeza e respeito pelos pais.
Ela estava então com as sapatilhas em cima da coberta, uma coberta que só não parecia tão nojenta porque era escura, os auscultadores nos ouvidos e o telemóvel na mão, a ler não-sei-o-quê, a escrever não-sei-o-quê, a ouvir não-sei-o-quê e, se calhar, na conversa com sei-lá-quem.
Os dias repetiam-se mecanicamente. Eram sempre iguais. Ela estava sempre em cima da cama agarrada ao telemóvel. Nunca a via estudar. As notas, embora não tivesse negativas, eram de um suficiente que me exasperava. Para mim aquilo era medíocre. Não estudava. Se estudasse… Se estudasse podia ter boas notas e escolher, afinada, o curso que mais lhe agradasse. Assim, com aquelas notas de cábula, aspirava a quê? Balconista de Centro Comercial sem consciência sindical?
Eu percebia que o mundo dela era tecnológico. Eu próprio chegava a pedir-lhe ajuda em momentos mais complicados quando o telemóvel se armava em teimoso. Ou o computador encontrava alguma incompatibilidade entre os programas oficiais e os pirateados. Mas não ia além disso. Numa conversa estava sempre calada. A falta de cultura geral deixava-me apreensivo. Não seguia as notícias. Não reconhecia nomes. E, no entanto, tentava fazer-me passar vergonhas com os nomes dos youtubers que seguia. Mas o que é que aqueles programas de merda contribuíam para a felicidade de qualquer um de nós? Que coisas é que aqueles programas nos ensinavam? Que caminho lhe ofereciam? O futuro não iria passar por ali, também.
Eu entrava no quarto, ela levantava a cabeça do telemóvel e revirava os olhos como se dissesse O que é que este quer agora? O este era eu, o chato do pai. E o que eu queria era duas ou três palavras. As palavras que abafava durante o jantar silencioso que fazia connosco, comigo e com a mãe. Comia, quando comia, com a cara fechada sobre o prato. Às vezes até parecia que sorvia a comida. Como se tudo fosse sopa. Outras vezes comia assim de boca aberta. Eu a chamar-lhe a atenção e ela a fazer de propósito, a mastigar sonoramente, a abrir ainda mais a boca cheia de comida e a mostrar-me a pasta em que a estava a transformar. E eu não conseguia não rir. Eu e a mãe. Ainda lhe dizia Não sejas parva!, mas ela insistia naquelas parvoíces e eu e a mãe achávamos piada. Mas logo se levantava. Nunca queria sobremesa. Nem doces nem fruta. Comia o que comia, não esperava por ninguém, e depois saía da mesa. Às vezes regressava à cozinha para fazer crepes ou panquecas, procurar uns biscoitos, um iogurte, e a mãe perguntava-lhe se não tinha jantado ao que ela respondia sempre Estou a crescer! Estava sempre a crescer. Estava sempre a crescer mas acabou por nunca crescer.
Então abri a porta e vi a cama bem feita. Edredão e coberta bem esticadas. Várias almofadas organizadas em cima da cama. Há quantos anos não se sentava ninguém naquela cama? Já tinha dificuldade em lhe sentir o cheiro. Só não me esquecia da cara porque uma fotografia numa moldura em cima da secretária mo lembrava de cada vez que entrava lá dentro.
Agora já não havia pés em cima da cama. Agora não havia auscultadores nos ouvidos a ignorar mundo em troca de uma qualquer musiqueta de dança parva. Agora era somente uma memória. Uma memória que estava a fazer o seu caminho até ao esquecimento. O meu esquecimento. E será que isso era possível? Será que eu alguma vez a poderia esquecer?

[escrito directamente no facebook em 2019/12/26]

O Primeiro Natal

Era o primeiro Natal depois da morte do meu pai. E toda a gente estava empenhada em ajudar a minha mãe a ultrapassar essa ausência da melhor maneira possível.
Família que eu nunca vira. Alguns amigos, não assim tão chegados. Vizinhos solitários. Toda esta gente resolveu passar a noite da consoada lá em casa.
E eu percebi que iria cair tudo em cima de mim. Previ a catarse geral. O choro compulsivo. O rasgar das vestes (havia algumas tias mais dadas a excentricidades). O tecer de elogios de quem nunca tinha privado com ele. A amizade de quem nunca o ajudou quando ele mais precisou. Enfim. Não são assim as pessoas? Distantes na miséria mas simpáticas e condoídas depois das desgraças fúnebres? Depois de morrer, toda a gente era a melhor gente do mundo.
Eu estava empenhado em que nada daquilo se passasse. Queria a minha mãe distante de tudo. Queria que a ausência não fosse mais que uma ausência.
Não me meti na organização da festa de Natal e deixei que as pessoas fizessem como bem entendessem. Deixei tudo nas mãos experientes das damas da família com muitos natais nas mãos. Escolheram a ementa. Fizeram divisão de tarefas. Arranjaram mealheiro colectivo e não me pediram dinheiro.
O meu único contributo para a noite da consoada foi pôr a mesa de Natal, sem lugar para o meu pai, assim decidi, para não aumentar o tamanho da ausência. Assumi a cabeceira. A minha mãe ao meu lado. O resto, distribuído por afinidades ou falta delas para não criar ansiedades nem desgostos. Há sempre quem aproveite o Natal para criar expectativas. Pelo menos nos meus natais tem sido assim.
E, depois, uma pequena surpresa. A confecção de uns pequenos e saborosos bolos. Uns pequenos e saborosos bolos de haxixe. E fiz umas miniaturas para as crianças, sem haxixe.
No início da noite andei a oferecer bolinhos a toda a gente. Ninguém se negou comê-los. E eu insistia em ficar por lá até os ver comer tudo, até à última migalha. E foi o que aconteceu. Não sobrou uma migalha. Até a minha mãe comeu. Fui elogiado. Eu e os bolinhos.
O jantar foi devorado.
Ninguém foi à Missa do Galo.
A noite foi passada a discutir a hipótese, plausível, de Jesus Cristo ser um extra-terrestre de Alfa-Centauro. Ainda se referiu a Atlântida e a Ilha de Mü. As estátuas gigantes da Ilha da Páscoa e os astronautas nas Linhas de Nazca.
Acabou toda a gente a dormir lá por casa. Qualquer canto era uma boa cama. Andei a distribuir cobertores e almofadas. Descalcei quase toda a gente. Havia quem tivesse as meias rotas. E logo os tios mais ricos. São sempre os mais miseráveis.
Na manhã seguinte saí cedo com a criançada toda até ao parque infantil no jardim da cidade. E deixei a casa, em silêncio, a curtir a ressaca do Natal.

[escrito directamente no facebook em 2019/12/23]

Houve uma Época

Houve uma época em que gostei do Natal. Houve uma época em que eu brinquei ao Natal como todas as outras pessoas, crianças e adultos que, nesta altura, brincam às amizades, aos amores e à paz no mundo entre os homens.
Houve uma época em que me levantava de manhãzinha para ir ao fogão da cozinha buscar as prendas que o Pai Natal lá deixava. Não era na lareira porque não havia lareira lá em casa. Nem era na chaminé porque a chaminé era um buraco negro e escuro lá em cima, por cima do fogão onde a minha mãe cozinhava as filhoses e as fatias douradas, dias antes do Natal, e o bacalhau na noite em que nos reuníamos os quatro à volta da mesa, felizes com o que tínhamos porque não sabíamos que havia mais para ter, que havia gente que tinha muito mais e gente que não tinha nada. Naquela altura o Natal não era quando um homem quisesse, era mesmo a 24 de Dezembro a cair para o 25 a festejar o nascimento do Cristo.
Houve uma época em que a mesa da sala levava um acrescento a meio, e a mesa da cozinha ia fazer companhia à mesa da sala para albergar toda a gente que ia jantar lá a casa. Eram os pais, os filhos, os avós, alguma família de todos os lados de todas as famílias, alguns amigos. Gente, muita gente. Muitas prendas que toda a gente presenteava os outros, em especial os mais pequenos. As prendas não era muitas. Mas não havia cá prendas das lojas dos chineses nem a um euro e despacho já o Natal de toda a gente. Dava-se o que era preciso, preferido, desejado. Livros. Jogos. Roupa. Alguns brinquedos. Sim, éramos uma geração estúpida que ainda não tinha encontrado a sagração da tecnologia.
Houve uma época em que nos sentávamos todos à mesa a comer bacalhau, polvo, peru. Mousse de chocolate, pudim flan e molotov. Filhoses, coscorões e rabanadas. Os jantares terminavam com um café da avó a acompanhar uma fatia de Bolo Rei, de que toda a gente retirava as frutas cristalizadas, e uma bebida branca, licores para os mais fraquinhos e whiskey para os mais fortes.
Houve uma época em que tive família e o Natal era, por excelência, a minha festa. A festa da minha família. Numa época em que até eu tive família.
Houve uma época, houve.
Depois, depois deixou de haver uma época. A família desintegrou-se. A morte rondou. Zangas. Separações. Ódios. Oh, tantos ódios e invejas. A família desentendeu-se. A desgraça veio ao caminho da família e irmãos de armas transformaram-se em irmãos com armas.
Sento-me agora aqui fora e deixo-me ir com eles. Com todos eles. Com as crianças que choram. Com os adolescentes de telemóvel em punho e olhar vidrado. Com homens atrasados. Com mulheres desesperadas. Tudo a correr. Tudo a comprar. Compram-se uns aos outros para, em cinco minutos, voltarem a virar costas uns aos outros e até para o ano que haverá mais. Temos de nos encontrar mais vezes, dizem. Eu telefono, continuam a dizer. E fingem acreditar.
Estou sentado aqui fora na rua há duas horas. Já tanta gente passou por aqui e ninguém me viu. Estão todos muito ocupados. Demasiado ocupados para olharem em volta. Para verem.
Hoje morreu alguém. Alguém que eu conhecia. Hoje morreu alguém que eu conhecia e morreu sozinho. Sozinho e na miséria. Esquecido de todos. Eu também o esqueci. Não sou melhor que os outros. Não me lembro melhor que os outros. Acho que só choro um pouco mais. Porque também eu estou esquecido. O Natal não mora aqui.

[escrito directamente no facebook em 2019/12/10]