Eu Estava Vivo ou Morto?

Estava sentado nas escadas do alpendre, nu, a aproveitar os poucos mas quentes raios de sol que conseguiam romper as nuvens que desde manhã transformaram este Verão em Outono, quando senti uns pingos de água fria salpicarem-me a cara. Abri os olhos e vi umas nuvens negras a fazerem desaparecer por completo o sol e pintar de cinzento o que restava de azul no céu. A temperatura caía a pique e congelei. Tive um arrepio que me subiu pelas costas acima. Levantei-me num pulo e corri três passos até entrar em casa pela porta da cozinha ao mesmo tempo que lá fora tombava um diluvio que pensei estar a assistir, em directo, ao fim do mundo.
Não foi o fim do mundo. Mas pareceu.
Fui secar-me e vestir um fato-de-treino. Calcei sapatilhas. Corri a fechar as janelas que arejavam a casa a tentavam afastar este cheiro a humidade que teima em não me abandonar. A chuva vinha tocada a vento e alguma já tinha entrado dentro de casa.
Depois de fechadas as janelas, fui acender um cigarro e colocar-me a uma das janelas da cozinha a olhar para o fim do mundo.
Comecei a ver formar-se um pequeno rio a descer a alameda. Ia furioso, o rio. Tinha uma cor barrenta, de um castanho quase laranja. Já não conseguia ver as montanhas, por trás da queda de água.
Vi água a entrar por baixo das janelas. Apaguei o cigarro e fui à casa-de-banho buscar toalhas e fui colocá-las a vedar todas as janelas da casa. A água já estava a furar por baixo delas todas.
Juntamente com a chuva, veio o vento. Ouvia-o soprar por cima da queda da chuva. Depois um raio de luz iluminou-me a casa. Logo depois, um trovão rouco e assustador. Protegi a cabeça com os braços, num gesto automático e involuntário.
Dei nova volta a casa. As toalhas estavam a ficar molhadas mas a água não entrava. Lá fora era um lamaçal. Algumas pedras de calçada do quintal estavam levantadas e nasciam pequenos buracos cheios de água.
Voltei à cozinha. Acendi novo cigarro. Faltou a luz. Vi desaparecer as horas do forno e a luz de stand-by da pequena televisão. Desliguei o computador da ficha. Fiz o mesmo à televisão. Fui à sala desligar também a outra televisão da ficha.
Pus-me à janela a ver o fim do mundo. Já se formava um pequeno lago no terraço. E a água ia subindo. O rio que descia a alameda tinha um caudal cada vez maior e corria com maior violência.
O cão e os gatos vieram refugiar-se no alpendre, mas a água do jardim estava a subir a um ritmo tal que o alpendre também poderia ficar alagado. Abri a porta da cozinha e deixei entrar a bicharada. Fechei a porta do interior da casa para que não fossem lá para dentro. O cão enroscou-se em cima do tapete por baixo da mesa. Os gatos espalharam-se. Um deles subiu para cima da mesa e sentou-se a olhar para mim. Outro pôs-se a dar fé de tudo na cozinha. O terceiro foi deitar-se em cima do fogão. Dei uma pequena risada quando o vi lá deitado.
Apaguei o cigarro. Já havia água a entrar pelo alpendre. Agarrei no telemóvel e descobri que não havia rede. Levantei a tampa do computador. Estava sem internet.
Sentia-me isolado. Sozinho no mundo. E a chuva que não parava de cair.
Senti um dos vidros, lá de dentro da casa, a partir-se. Saí da cozinha e procurei pela casa. Tinha sida na sala. A chuva entrava livre e caía sobre o sofá. Fechei os estores. Fui buscar novas toalhas à casa-de-banho e voltei a dar nova volta à casa, fechando os estores e colocando as toalhas em cima das outras.
Voltei à cozinha. Sentia-me enervado. Talvez com medo. O coração parecia querer sair de mim e enfiar-se debaixo do chão. Pensei na minha solidão e no porquê de estar ali sozinho. Sentia falta de poder partilhar o medo. De poder falar para alguém me ouvir. De poder ouvir a voz de alguém.
Fui buscar um copo de vinho. O gato em cima da mesa da cozinha não parava de olhar para mim.
Voltei a uma das janelas da cozinha no preciso momento em que um dos pinheiros era arrancado pela raiz e tombava no quintal. Disse alto o suficiente para eu próprio me ouvir e assustar
Estou fodido!
estremeci, virei-me para dentro da cozinha e vi água a entrar por debaixo da porta. Corri à casa-de-banho a buscar mais duas tolhas e coloquei-as nas duas portas que havia para a rua.
Voltei à cozinha. Sentei-me à mesa. O gato veio para perto de mim e miou-me. Deitei a cabeça na mesa e adormeci.

Acordei com os três gatos em cima da mesa a olharem para mim. O cão estava ao meu lado, com o focinho em cima da minha perna. Lá de fora já não se ouvia o fim-do-mundo. Eu estava vivo ou morto?

[escrito directamente no facebook em 2024/06/29]

Deixe um comentário