Bluesnoise Soundmachine

São dez da noite. Saímos os dois de casa. Eu e ela. Vamos ver os Bluesnoise Soundmachine ao Texas, uma espécie de roadhouse na periferia da cidade.
Jantámos em casa, antes de sair, uma sopa de feijão verde e partilhámos uma tosta mista de presunto, polvilhada com orégãos. Eu bebi um copo de vinho tinto. Ela bebeu um chá de hibisco. Anda a antibióticos e evita o álcool e a cafeína.
Chegamos ao Texas e ainda está pouca gente. Encostamo-nos a uma mesa de pé-alto virados para o palco. O palco já está preparado. Várias guitarras eléctricas. Um conjunto de teclados. Um baixo. Uma bateria, ao centro, atrás, e ao lado, um conjunto de várias percussões.
Gosto de chegar cedo para que não reparem em mim quando chego. Não gosto de fazer a passerelle. Quando chego cedo, sou eu que reparo em quem chega. Mas acabo sempre por nunca reparar em ninguém. Fico sempre de costas para a entrada, virado para o palco. Mesmo que não goste de ficar de costas para a entrada. Foi assim que morreu Wild Bill Hickok, uma lenda do oeste americano, morto pelas costas numa mesa de poker. Tenho sempre o cuidado de nunca me sentar de costas para a entrada. Principalmente nos restaurantes. Mas esqueço-me. Esqueço-me quase sempre. Encosto-me à mesa de pé-alto de costas para a entrada, de frente para o palco, ninguém me matou ainda pelas costas e eu observo o aparato instrumental montado em palco para o concerto. Abstraio-me de tudo ao meu redor. Esqueço-me de onde estou. Esqueço-me dela. Até que sou acordado com um abanão. É ela. E pergunta-me
Não queres uma cerveja?
Eu olho para ela, ainda entorpecido por momentos, a tentar perceber quem é ela, onde é que estou e o que foi que ela disse, e depois de processar tudo aceno que sim com a cabeça, como a dizer que sim e antes de me afastar da mesa de pé-alto para ir ao balcão ela ainda diz
Traz-me uma água, se faz favor.
e eu continuo a acenar com a cabeça enquanto me afasto, me viro para trás, para a entrada do bar e me dirijo ao balcão, e dou conta, pela primeira vez, que o bar está quase cheio de gente e eu não dei conta desta gente toda ter entrado por ali dentro. Acontece-me muito estas paragens temporais enquanto a vida continua a seguir o seu curso.
Ao balcão peço uma imperial e uma garrafa de água. Volto para a minha mesa de pé-alto onde ela está e me aguarda. Dou um gole na imperial e ela abre a garrafa de plástico da água e molha os lábios. Dou conta que a música ambiente que está a tocar, que tem estado a tocar, é um grunge do início dos anos noventa e pergunto-me porquê. É claro que também o ouvi durante muito tempo, nesse tempo, mas hoje sinto-o anacrónico, já não me faz muito sentido, é um rock que sinto envelhecido, muito envelhecido, morto.
Fumava um cigarro. Maldita lei que não nos deixa intoxicar em sítios de perdição.
Ela mostra-me algo no Facebook e rimo-nos os dois. Mas esqueço depressa o que vi. Viro-me para trás e fico admirado com quantidade de gente que entrou sem eu ter dado conta. Olho para a cara das pessoas e tento reconhecer alguma. Procuro reconhecimento com alguma ansiedade. Não reconheço ninguém. O meu tempo morreu. Os meus amigos desintegraram-se em vidas de adultos e já não vêm a estas coisas para adolescentes tardios e gajos solitários. Estão todos em casa com as mulheres e os filhos a olhar alheadamente para a televisão. Alguns estão com as amantes. Outros a jantarem em restaurantes caros onde provam, aos fins-de-semana, que têm uma boa vida.
As luzes do bar diminuem a intensidade. Algumas apagam-se. Os projectores incidem sobre o palco. A banda entra e sobe lá para cima. As pessoas batem palmas. Eu bato palmas. Ela também.
Ouve-se a gravação de um discurso. Penso tratar-se do célebre discurso I Have a Dream de MLK, mas não tenho a certeza. A gravação parece ser de um rádio-fanhoso, o que lhe confere um ar vintage e cria uma atmosfera irreal que a bateria, que começa a bater fustigada por um shaman, cadente, rítmica, primitiva, acentua com naturalidade.
Sou sugado para o centro do palco. À minha volta, a bateria explode com inclemência, num ritual. A guitarra, em distorção, eleva-me. O baixo e as percussões desintegram-me e o sintetizador baralha-me a consciência com gotas de ácido.
Estou desfeito.
O som foge de mim. Vai para longe até se extinguir por completo. Eu volto a incorporar-me e descubro-me sozinho no meio do bar. Onde é que ela está? E todos os outros? E a banda? Para onde é que foram todos? Ou fui eu? Onde é isto aqui?
Corro à volta do bar, por cima do palco, por detrás do balcão, entro e saio da cabine do DJ e não há ninguém, não vejo ninguém, não há barulho, não ouço nenhum som, não há música, nem o som dos meus pés a baterem no soalho em corrida eu ouço, só vejo as luzes que fustigam as paredes do espaço e entram por mim dentro e me fazem dançar, danço enquanto corro, abro os braços para voar e voo de pés no chão.
Onde estou?
E ela?
Onde é que ela está?

[escrito directamente no facebook em 2024/06/28]

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