Uma Personagem Preocupante

Estou sentado nas escadas do alpendre a fumar um cigarro. Estou descalço e intrometo-me num carreiro de formigas que passa por baixo das minhas pernas, na calçada do quintal. Guino o pé e esmago, inadvertidamente, uma formiga com o dedo grande. As outras formigas continuam o seu caminho. Nenhuma delas se importou com a morte de uma delas. Acho que eu fiquei mais incomodado.
Ela chega ao pé de mim. Sinto-a atrás de mim. Atrás das minhas costas. Está de pé, no degrau acima. Desce um degrau e senta-se ao meu lado. Ela também está a fumar. Olha para as formigas tal como eu. Depois pergunta
– O que é que tens?
– Não tenho nada.
– Estás chateado?
– Não.
– Então, porque é que estás assim?
– Assim, como?
– Assim como estás.
– E como é que eu estou?
– Assim. Estás assim.
– Não sei. Não sei o que é que tu estás a dizer.
– Estou a dizer-te que estás assim, triste.
– Não estou triste.
– Estás, estás.
– Pronto, está bem. Estou triste.
– E porque é que estás triste?
– Não sei. Nem sabia que estava triste.
– Achas que estás bem?
– Acho que sim.
– Achas que estamos a ter uma conversa normal?
– Não costumamos ter conversas assim?
– Sim, costumamos. Quando tu não estás bem.
– Então achas que não estou bem?
– Acho.
– E porquê?
– Não sei. Não me pareces bem.
– Mas sinto-me bem.
– Pronto, está bem.
– Agora és tu que estás chateada.
– Não gosto quando foges de mim, assim.
– Mas eu não estou a fugir. Estou aqui sentado nas escadas do alpendre.
– Estás a desconversar.
– Não entendo o que é que tu queres.
– Eu não quero nada.
Durante toda a conversa não olhei uma única vez para ela. Continuei a dar toda a minha atenção às formigas. Matei mais duas delas, nem sei porquê.
Ela levanta-se. Deixa cair a beata no chão e esmaga-a com a bota. Põe-me a mão sobre a cabeça, faz-me uma festa e despenteia-me o cabelo. Na verdade, o meu cabelo já é bastante despenteado, normalmente. Ela só o abana e modifica um pouco o despenteado normal. Desce o resto dos degraus do alpendre e vai pela calçada do quintal fora. Caminha em frente. A meio vira-se para trás e diz-me
– Vou dar uma volta pela aldeia.
e volta a virar-se, desce a alameda, sai pelo portão e deixo de a ver.
Fico a pensar na conversa dela.
Eu estou triste?
Ela está chateada comigo? Nem sequer me perguntou se eu queria ir com ela.
O que é que fiz?

[escrito directamente no facebook em 2024/06/11]

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