Íamos Descer a Avenida

Íamos descer a avenida como vão todos, não íamos? Pois íamos. Íamos de braço dado, de mãos-dadas, um sorriso na cara, o cansaço da semana de trabalho esquecido durante aquela tarde de descida da avenida, nunca demorámos tanto a descer aquela avenida, pois não? nem mesmo em dias de greve da Carris ou do Metro, o trânsito insuportável, os carros no pára-arranca, nós arrancávamos os cabelos às mãos-cheias dos nervos pelo estado do trânsito e dizíamos Foi para isto que se fez o Vinte e Cinco de Abril? Para estarmos aqui enfiados uns nos outros, à espera que o tempo passe e não passe demasiado, e consigamos chegar a casa antes de ter de voltar a sair de lá outra vez? mas dizíamos em tom de brincadeira ácida, porque víamos a cidade crescer sem condições para isso, cada vez mais carros na cidade, cada vez mais poluição, cada vez mais hotéis e alojamento local e cafés e restaurantes iguais aos cafés e restaurantes de todo o lado, e as pessoas cada vez mais longe umas das outras e do centro, mais longe da cidade, criam novos centros, novas cidades, blocos de apartamentos anónimos nas periferias, guardados uns em cima do outros como produtos no supermercado, mas naquele dia não, naquele dia a cidade era nossa. A avenida, aquela avenida, era nossa. Encontrávamo-nos lá todos em cima, ao pé do Leão. Não há Benfica mas há Vinte e Cinco de Abril. A música; as palmas; as palavras de ordem; a Grândola Vila-Morena; o sorriso; o passeio; os amigos; os abraços; os sonhos renovados, pelo menos até se chegar ao fim da avenida, ao fim do dia, e voltarmos para a casa cinzenta e triste e dizer Para o ano há mais. Novos e velhos. Os velhos cada vez mais velhos e cada vez menos. Os novos sempre novos e cada vez mais, antes isso, pá. Antes isso.
Íamos descer a avenida como temos descido todos os anos desde que começámos a descê-la. Íamos de mãos-dadas. Um cigarro ao canto da boca. Os olhos atentos aos conhecidos. Gente que só encontramos ali. A vida leva-nos, mas traz-nos para aqui, aqui é o portal dos encontros. Ainda não morremos, pá. Nenhum de nós morreu. Ainda bem. Ou não?
Íamos descer a avenida e trocar beijos de liberdade, beijos de língua, húmidos, desejosos de tudo, capazes de engolir o mundo agora que o mundo é nosso. O mundo é nosso, não é? É pois! Pelo menos enquanto descemos a avenida e os sonhos se mantêm acordados É como um sonho acordado / Esse vulto besuntado / A revolver-se no lodo / A deslizar de uma larva / Emergindo lá no fundo / Tenho medo, oh medo / Leva tudo é tudo teu / Mas deixa-me ir…*
Íamos descer a avenida mas já não vamos. Eu pelo menos não vou. Não posso ir. Não quero ir. Houve algo que se perdeu nesta descida. Não consigo pagar o aluguer de casa, não consigo ter um salário digno, não consigo ir de viagem para a capital do império para descer uma avenida que se vendeu às grandes marcas internacionais, pá! ou achas que eu não as vejo, cintilantes, por entre as árvores, enquanto descemos a avenida?
Íamos descer a avenida mas eu já não vou. Gosto de vás, tu e os outros, os outros todos que vão, que desfrutem da festa, a festa é vossa e vocês merecem-na, mas há os que não têm festa, os que caíram, os que se perderam, os que não têm mérito, os incapazes, os que estão tristes e desiludidos, os que deixaram de acreditar, os que têm de se levantar cedo de manhã para arranjarem qualquer coisa para comer ao meio-dia. Não posso ir enquanto há gente a remexer no lixo das grandes superfícies; não posso ir com gente a dormir nas entradas dos prédios, debaixo dos arcos dos centros comerciais e nos bancos de jardim; não posso ir quando há gente nova de mão estendida porque não há trabalho nem comida nem um tecto para lhes proteger a existência; não posso ir enquanto há velhos de cabeça vergada com vergonha.
Mas não te culpo, nem a ti nem ao Vinte e Cinco de Abril. É assim a vida, não é? É assim. Dizem-nos que não há almoços grátis. Dizem-nos que não há alternativa. E eu vejo os milhões tornados armas na Ucrânia e em Gaza. Não, pá. Viva o Vinte e Cinco de Abril. Viva a Liberdade. Mas eu não vou descer a avenida, pá. Fico na fila da sopa para ver a ainda a como quente.

[escrito directamente no facebook em 2024/04/24]

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