Choques Eléctricos

A noite ilumina-se em golfadas. São relâmpagos de luz que trazem por instantes o dia à noite. Depois, atrasado, sempre atrasado, o trovão, mal-disposto, azedo, agressivo. Cai o céu, a casa e a cabeça explode em pedaços de merda espalhados pela cozinha.
Acendo um cigarro e chego-me à janela.
Em miúdo tinha medo da trovoada. Quando era mesmo pequenino, não já bebé, mas uma criança ainda com os dentes de leite, fugia para a cama dos meus pais. Não sei como fazia o trajecto, da minha cama, do meu quarto, através de uma casa às escuras, açoitada por chicotes de luz que previam o brutal arroto final, até à cama dos meus pais. Subia pelos fundos da cama, arrastava-me pelo meio deles, no vale entre os dois corpos adormecidos, enfiava-me dentro dos cobertores e agarrava-me à minha mãe. Ela acordava e perguntava-me
O que é que estás aqui a fazer?
e o meu pai resmungava, lá do sono dele
Deixa-o estar, coitadinho.
e lá dormia eu e eles, eu agarrado à minha mãe, a ferrar-lhe as unhas a cada nova investida sonora do deus Thor.
Depois os anos foram passando e a vontade de sair de casa era maior que o medo e o medo acabou por se perder e eu deixei de me importar com o mau tempo, os relâmpagos, as trovoadas e as chuvas diluvianas.
Agora, ao fim de todos estes anos que já transporto sobre os ombros, aprendi a gostar deste destilar zangado que nos vergasta como chicotes de luz e nos grita palavrões mal-humorados, às vezes carregados pelos ventos ciclónicos, que bem os ouço a assobiar enquanto passam à minha volta, a tentarem amedrontar-me, como se eu fosse o miúdo que já não sou, que nos querem arrancar da face da Terra.
Cai mais um relâmpago. As montanhas iluminam-se e a Terra parece o seu negativo. A imagem perdura cá dentro bem depois de já se ter ido embora. Puxo uma valente passa no cigarro enquanto aguardo o trovão. E ele não se demora muito. É como um solo de bateria a três tempos, com o amplificador no máximo, mas sem distorcer. A atmosfera em jeito de alta-fidelidade. Bem melhor que a aparelhagem que me restou para ouvir os vinis do século passado depois de ter perdido a Pioneer que os meus pais me deram na adolescência, numa casa qualquer por onde terei andado perdido durante alguns anos da minha vida.
Vou ao armário buscar a garrafa de Martha’s. Dou dois dedos num copo simples, liso e redondo. Volto para a janela. O exterior está escuro. Percebo os candeeiros de iluminação pública lá ao fundo, por detrás da chuvada, mas não iluminam quase nada deste negrume. Ou então sou eu que já estou habituado aos roucos gritos brancos que iluminam mal a noite.
Olha, mais um. Parece um choque eléctrico. Com vibração. Quase se diria uma animação da Feira de Maio, não se desse o caso de ser grátis, não estar confinado ao parque de estacionamento do estádio Dr. Magalhães Pessoa e assustar uma grande parte das pessoas, bem mais que a montanha-russa. Cá em casa, não. Cá em casa gostamos de trovoadas. Eu gosto de trovoadas. Não gosto? Gosto.
Há alguém que não goste? Se há, que se manifeste.
Mas ninguém se manifesta. Ou gostam realmente das trovoadas, ou não me querem contrariar. Percebo que talvez não me queiram contrariar.
Eu continuo aqui, em pé, junto à janela, a beber uma Martha’s, a acender o segundo cigarro, a ver os relâmpagos, a ouvir a trovoada e a imaginar que deve haver vidas mais interessantes que a minha, mas não são a mesma coisa. Não são, não. Ah, pois não.

[escrito directamente no facebook em 2024/06/07]

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