Os Excessos Adoram-me

Todos os anos a mesma história: ela convida-me para a acompanhar a uma prova de vinhos. Vinhos tintos, brancos, rosés e espumantes no rés-do-chão do Mosteiro, bebidas destiladas, gin, vodka, rum, tequila e whiskey no primeiro andar. A embalar o álcool, djs a tocarem drum’n’bass e trip hop, bits e bites para ajudarem a escorregar os destilados que, o vinho, bebido a seco e sem companhia musical, aguçaram o estômago a prometer paraísos que os destilados acabaram por desenganar. Ainda não me tinha ido embora e já tinha recorrido à casa-de-banho a gritar pelo Gregório, e só não passei mais vergonhas porque escondi-me dos olhares alheios enquanto a cabeça tentava ganhar vida própria e desengatar-se do resto do corpo.
Depois da primeira fila inicial, ainda na rua, uma fila que nem se percebeu muito bem porquê, a entrada franqueada, o saquinho de pano cru na mão, o bloco de papel, o copo de vidro e de pé, a passagem pelas salas dos diferentes produtores, do Alentejo ao Douro, do Dão à Península de Setúbal. Eram tintos, brancos, rosés e espumantes. Não champagnes, claro, mas igualmente borbulhantes, borbulhosos e muito espirituosos. Escorregavam bem. Umas bolachas de água e sal limpavam o palato e acomodavam o estômago. Saltitávamos entre as cores. A portagem entre os diferentes vinhos dos diferentes produtores. Ouvíamos as qualidades. As diferenças. As persistências. A garrafa de D. Pellegrino, agarrada logo à entrada para as necessidades futuras, limpou a garganta e o estômago depois da passagem pelos corredores vinícolas. À frente, a escadaria levava ao céu: os destilados. Ainda não era desta que iria vomitar. Tinha ainda muito para beber.
Comecei com o gin, passei pelo vodka, pelo rum e terminei na cachaça brasileira. Nessa altura já não sabia quem era. Trouxeram-me um Red Bull. Que ajudava. Que limpava o estômago. E limpou. Corri para a casa-de-banho. Chamei pelo Gregório. Tivemos uma longa e bela conversa. Perdemo-nos um ao outro. Encontrei-me com as batidas na porta
Estás aí?
e eu sem saber o que responder. Estava ali, mas não estava. Não queria ser visto por ninguém. Não queria falar com ninguém. Não queria o colo de ninguém. Queria estar sozinho. Eu e o meu mal-estar. De joelhos, debruçado sobre uma sanita usada por uma quantidade de gente não quantificada nem negligenciável. A queda quando acontece é rápida. É sempre a descer. Do outro lado da porta, a mesma voz dizia
Tenho aqui um pacote de milho tufado.
e nem isso, que gosto bastante, me entusiasmava.
Não, a minha vida tinha terminado ali. Amanhã talvez houvesse outra vida. Agora, neste momento, estava morto. Inerte. Não estava para ninguém. Nem para mim. Eu era um ausente. O álcool é malandro. E eu sou muito fraco. Esvazio-me. Desfaço-me. Desintegro-me.
(preciso de uma sopa, uma sopa cremosa, sem sólidos, e um bocado de pão, miolo de pão, sem manteiga, só pão, o pão é bom para ensopar, e a sopa é boa para alimentar)
(o que é aquela coisa vermelha que vejo no meio daquela massa espumosa?)
(não me consigo levantar)
(estou na feira de maio? num carrossel na feira de maio?)
(continuo enjoado)
(onde é que ela está? à porta?)
(foda-se!)

[escrito directamente no facebook em 2024/05/20]

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