Um Passeio pelo Mato em Dia de Quarentena

Estava bom tempo. Fui dar uma volta pelo mato. Saí de casa, direcção a sul. A pé. De sapatilhas e calças de ganga. Era um passeio, não uma corrida nem jogging. Dois ou três quilómetros depois, saí da estrada e entrei pelo mato dentro. Havia um caminho. Os sulcos de um tractor.
Nos últimos dias tem chovido e, logo no início do caminho, duas enormes poças de água que me obrigaram a subir pelo meio dos fetos para passar adiante. Continuei em frente.
O mato é pobre em variedade. O arvoredo é composto exclusivamente por pinheiros bravos e eucaliptos. Entre eles muitos fetos e silvas.
Esta é uma zona de muito barro. Há muitos buracos onde outrora se tirou o barro e ficaram uns pequenos charcos que agora estão invadidos por rãs. Ouço-as a coaxar. Fazem uma orquestra à minha passagem. Por momentos torna-se insuportável. Depois deixo os charcos para trás e o coaxar vai ficando esquecido e abafado pelo som dos pássaros. Não sei que pássaros são. Não percebo nada de pássaros. Já vi umas rolas e uns melros, mas pela barulheira que fazem devem ser outros, devem haver outros.
Não deixa de ser engraçado que mesmo no meio de toda aquela cacofonia em stereo, percebia-se o silêncio humano. Não se ouvia barulho de carros. Não havia motores nem buzinas. Não havia gritos de pessoas nem o seu eterno bruá feito de conversas que nunca terminam. Ouvia os meus passos a pisar a caruma seca, a pisar pequenas poças de água e quando eram maiores, a evitá-las pisando os terrenos encharcados adjacentes e a fazer chap-chap. Ouvia bastante a minha respiração. Uma respiração tranquila mas pesada. Afinal ia a subir. O caminho levava-me de subida por entre os pinheiros e um ou outro eucalipto descamisado, mas com as cascas caídas aos pés das árvores. Aqueles eucaliptos não eram de plantação. Aqueles eucaliptos não eram para alimentar as celuloses. Estavam para ali. Perdidos, provavelmente.
Lembrei-me de quando a minha mãe ia ao mato perto de casa buscar folhas verdes de eucalipto para cozer com água numa panela e me fazer respirar o vapor do eucalipto por causa da minha bronquite. Parece que fazia bem. Acho que a mim nunca fez bem nem mal. Continuei com bronquite, mas gosto de cheiro do eucalipto. Lembro-me do cheiro que ficava lá por casa durante o resto do dia, e que era bastante agradável.
Continuei pelo caminho do mato, ainda caminhava bastante mais para o interior, mas lá mais à frente havia um corte que me iria levar à estrada, cinco quilómetros a norte de minha casa.
Apanhei um campo de malmequeres amarelos. Parecia um verdadeiro jardim. Não havia charco. Deitei-me no meio deles e tentei tirar uma fotografia minha deitado no meio dos malmequeres amarelos, ainda pensei em despir-me e fotografar-me no meio da natureza como vim ao mundo e foi nesse momento, no momento mesmo antes de tirar a fotografia, que me lembrei que havia muitas cobras no mato. Levantei-me de um pulo e voltei ao caminho. Enfiei as perneiras das calças nas meias para evitar que alguma coisa subisse pelo interior das calças acima.
Parei um bocado. Fiquei em pé. Estava numa clareira. Olhei em volta. Fiz trezentos e sessenta graus. Teria de virar à direita. Quis fumar um cigarro. Era altura da pausa para o cigarro. Já não tinha o maço. Devia ter caído no campo de malmequeres amarelos. Que merda!
Cortei à direita. Continuei em frente. Não deixava de pensar nos cigarros. Acelerei o passo. Nem pensei que naquela clareira costumavam encontrar-se as bruxas da zona. Já tinha ouvido histórias delas irem para ali, para aquela clareira, em noites de Lua cheia, dançarem nuas ao luar. Mas eu nunca vi. Só ouvi contar. Mas isso só pensei depois, quando voltei a pensar na minha volta pelo mato, que é o que estou a fazer agora porque, no momento, só pensei em fumar um cigarro e não tinha tabaco comigo.
De passo acelerado passei por um pomar. Filas e filas de macieiras em flor. Lá do outro lado havia um barracão que dava apoio ao pomar. As marcas do tractor que tenho visto deviam ir para lá. Mas já não via as marcas há algum tempo.
Passei por uma pequena ponte feita de pequenos troncos de árvores atadas umas às outras. Passei por cima de um pequeno riacho que mais parecia um charco. Havia alguns juncos. Uma ilha de canas. Voltei a ouvir o coaxar das rãs.
Os incêndios têm poupado o mato. Pergunto-me até quando?
Depois passei por uma zona de mato sem arvoredo. É um quadrado com cerca de cem metros de lado. O chão é de terra. Não há nada verde. Nem restos de folhas, nem fetos, nada. Parece um chão estéril. Ao cimo do quadrado, um conjunto de colmeias. Não sabia que havia algum apicultor por aqui. As coisas que se aprendem nas voltas da quarentena. Não vi nenhuma abelha. Se calhar não era altura de andarem por aí na galderice, de flor em flor, a comer todo e qualquer pólen.
Mais à frente recuperei a estrada. Voltei ao asfalto. Não havia carros. Nem pessoas. Nem sequer os animais de que tanta gente fala. Só pássaros. E rãs. E mesmo assim, só lhes ouvi a cantoria. Nem os vi. É melhor assim. Não estou para ninguém. Também não vi nenhuma cobra.
O sol estava a cair. O tempo começou a arrefecer. Ainda tinha cinco quilómetros para fazer, mas ia pelo asfalto. Se tivesse frio, podia sempre correr um pouco. Afinal, estava de sapatilhas. E tinha cigarros em casa.

[escrito directamente no facebook em 2020/04/10]

O Meu Primeiro Dia de Liberdade

Preciso de beber. Preciso de me embebedar. Preciso de me embebedar ao balcão de um bar.
Estou farto de livros de filmes de séries, estou farto de notícias e das frases bonitas com que os jornalistas da SIC se despedem todas as noites, estou farto que utilizem o Mário Viegas como se fosse o Cristiano Ronaldo (vão buscar o Cristiano Ronaldo, caralho!), estou farto das estatísticas e dos gráficos e dos números da DGS que esqueço assim que os ouço, estou farto de me aturar, de me ouvir cuspir palavras amargas todos os dias, farto de me ver engordar dia após dia no espelho da casa-de-banho, já não vejo a pila, as calças de ganga não me servem, tenho os cabelos compridos como um headbanger num concerto dos Judas Priest e a barba mal cortada e cheia de peladas, e os pêlos do nariz e das orelhas parecem bigodes, e estou farto desta solidão triste e melancólica que me arrasta através dos chinelos rotos que não tiro dos pés vai para mais de um mês.
No dia primeiro da minha liberdade vou sair de casa. Abrir a porta da rua e dar um passo, pousar o pé do lado de fora da porta. Depois de tomar um banho quente e lavar o cabelo com champô anti-caspa, vestir uma roupa casual e uns ténis porque os meus pés não aguentarão mais que isso, irei sair de casa e caminhar os mil novecentos e sessenta e seis passos que me separam deste meu quarto andar em prédio citadino ao snack-bar que fica um pouco mais acima na mesma rua e que eu frequentava diariamente antes de me fechar em casa para sobreviver à peste e que irei voltar a frequentar porque sou um gajo de rotinas. Irei caminhar todos esses passos durante os quais irei fumar um cigarro ao longo da rua, enquanto relembro o cheiro a monóxido de carbono das viaturas que irão recuperar as artérias da cidade e irei entrar no snack-bar onde já me conhecem de anos e irei sentar-me ao balcão sujo onde irei colocar um cotovelo enquanto pedirei ao empregado um copo de bagaço que irei despejar de um gole, assim como o segundo e o terceiro, e irei pedir um quarto que irei beber devagar para não vomitar logo tudo, e irei pedir um pires de tremoços e ele irá dizer que é só para acompanhar as imperiais e eu irei então pedir uma imperial para poder trincar os tremoços, e trincarei os tremoços e beberei a imperial no intervalo dos bagaços e irei lamentar-me que não hajam pevides, e ao meu lado irá lá estar a mesma puta de todos os dias, a mesma puta que está sempre sentada no mesmo banco ao balcão desde o princípio dos tempos do snack-bar e ela irá cravar-me um cigarro e eu irei dizer que lhe darei um cigarro se foder comigo na casa-de-banho, dir-lhe-ei que estou necessitado sem um pingo de carinho há muitas semanas, e ela irá anuir sem falar e iremos para a casa-de-banho foder sem preservativo, quem é que irá pensar em preservativos nessa altura?, e será uma coisa assim tão rápida e desenxabida que nem vou perceber que acabei de dar a primeira foda depois da quarentena, e irei regressar ao balcão, beber um quinto bagaço, pagar outro à mulher que está sempre no mesmo banco ao balcão e que me acompanhou à casa-de-banho, e oferecer-lhe-ei um cigarro, irei fumar um com ela e o empregado do snack-bar irá refilar connosco como refila sempre, mas eu irei cagar para o que o empregado irá dizer e depois do sétimo bagaço, irei virar-me para a mulher que está lá sentada desde sempre no mesmo banco e irei vomitar-lhe no colo, irei vomitar tudo o que tenho acumulado dentro de mim até sair a bílis verde quando já não houver mais nada para sair e o empregado irá agarrar em mim e levar-me-á de rojo pelo snack-bar fora até me lançar para a rua, e irei cair no passeio de calçada portuguesa e irei bater com o queixo no chão, abrir um lenho e partir dois dentes e deixar-me lá estar caído até que a mulher vomitada irá lá ter comigo e ajudar-me-á a levantar e será o meu apoio para fazer os mil novecentos e sessenta e seis passos de regresso a casa, durante os quais voltarei a cair e numa dessas quedas quebrar a cabeça, e o sangue irá escorrer-me pela face e a mulher irá dizer que será melhor ir ao hospital e eu dir-lhe-ei, com um sorriso na cara, Estamos livres, mulher! Foda-se!

[escrito directamente no facebook em 2020/04/09]

A Última Super Lua

Escureceu. A noite caiu antes de tempo. O dia estava farto e abalou. Amanhã há mais, disse.
Mas o amanhã não chegou a chegar. Ficámos todos pela noite, mesmo. Era uma noite de super Lua. Estão em promoção. Quase todos os meses há uma super Lua. Ficam muito em conta. Mas desta vez correu mal.
Fartos de estarem em casa uns com os outros, a comerem que nem umas bestas, a aturarem-se mutuamente, a aguentarem as birras dos filhos, a lutarem pela posse do comando da televisão, a guerrearem-se para ver quem levava o cão e o gato a passear pelas ruas da cidade deserta, fartos das filas civilizadas e silenciosas como velórios para entrar nos supermercados, onde alguns compravam só uma coisa de cada vez para terem a desculpa de estarem sempre a voltar, de manhã, à tarde e não já à noite porque agora os supermercados estão fechados à noite e assim até poupam nas horas extras, as pessoas aproveitaram esta super Lua, a primeira da quarentena (acho que havia outra já para o mês que vinha aí), para saírem todos em romaria a cantar canções de embalar e gritar juras de amor em altos berros e mau hálito por perca dos rituais normais de higiene e limpeza pessoal.
Saíram de casa em fatos-de-treino com garrafas de vinho e licores, bebidas brancas e cerveja, charros, coca e mdma e tudo o mais que fosse festivo, e martelos de São João e manjericos de Santo António, realejos e harmónicas, adufes e guitarras e fizeram um enorme happening.
Juntaram-se todos debaixo da super Lua não muito grande mas branca, branca e luminosa como um sol nocturno, como gatos com o cio, abraçaram-se numa enorme corrente humana a cantar o We Are the World e a chorar e acabaram a pegar-se uns-aos-outros o coronavírus que gosta destas correntes humanas de solidariedade dos corpos para se transmitir em alegre passeata.
Não foi preciso muito tempo. Nem as máscaras, nem luvas, nem álcool-gel os salvaria do destino a que se propuseram ao participarem no evento. Não seriam necessários, como não foram, os ventiladores. Tudo seria já tarde demais. E só não foi tarde porque já não havia ninguém para o dizer. Ninguém pôde afirmar É tarde! Nem eu.
Começou primeiro a falta de ar. As gargantas apertaram-se. O ar deixou de chegar aos pulmões e ser irrigado para o resto do corpo. De repente toda a gente sofria de asma. Sofria mesmo. Quem já estava habituado, como eu, já não ligava muito. Já estavam preparados. A preparação de uma vida. E então, começaram a cair. A cair que nem tordos. Toda a gente acabou por morrer. Até eu.
Esta história? Uma simples liberdade artística privilégio dos dotados. Mesmo morto continuo a criar.
Quando o dia regressou, não regressou para ninguém. Nem para mim.

[escrito directamente no facebook em 2020/04/08]

Tocar a Rebate

E era o quê? O fim de uma época? O fim de uma história? E onde é que eu estava nela? Na história? Era o protagonista ou um mero figurante a quem davam as ordens a executar? Vira ali, faz assim e assado ao cabelo com a mão, acelera mais um pouco o passo e baixa a cabeça, e os olhos, toma especial atenção em baixar a cabeça. Era o respeito?
No fim de tudo aquilo só queria perceber se eu significava alguma coisa. Se era algum marco na história. Se tinha relevância. Senão, nada valia a pena e o melhor era mesmo acabar com tudo e de vez.
Depois de tantos anos a fazer como as galinhas de carne rija com que a minha mãe fazia a cabidela, a acartar pedra para o castelo, calejar as mãos, magoar as costas, perder a visão e os nervos fazerem-me cair o cabelo, a inação fazer-me crescer a barriga e a pila ficar cada vez mais sem tesão, vejo-me na eminência de perder tudo o resto, o pouco que me sobra, a vida. Uma vida sem grande valor, é certo, mas que é a minha.
Desanimado com tudo o que tem vindo a acontecer, sentei-me no sofá a ver a terceira temporada da série The Deuce. O coração da Big Apple na sua fase mais decadente mas, talvez, a mais criativa. Times Square é um balde de lixo mas onde jorra vida, a vida dos sobreviventes, dos sobreviventes da marginalidade que vinha de trás, a pornografia, a prostituição, a indústria de cinema pornográfico, as drogas e os clubes nocturnos onde toda a gente renascia para mais uma dose de loucura, entre a arte e os excessos. Já se morria de Sida. Eram os homossexuais, primeiro. Não tardaria a chegar a toda a gente. Mas a carga de doença homossexual iria sobreviver ao futuro, mesmo que já todos saibamos que não.
Num dos episódios uma personagem diz para outra que está infectada com o HIV. Morre, mas morre a gritar, a fazer barulho, a chamar a atenção.
E foi aí que parei. Não vi o resto da temporada. Sei como é que terminou Times Square, agora limpo e higienizado, rico, glamoroso. Não sei como é que terminou a história de Vincent (o irmão gémeo, Frankie, esse foi morto a tiro nas ruas sombrias e decadentes), Candy, Abby, Lory e todos os outros construtores em negativo do sonho americano. Um sonho americano feito em cima de corpos vendidos em pensões baratas, no celulóide e mais tarde no vídeo, e nas ruas sujas e a cheirar a mijo.
Fui ao quarto. Ao armário do quarto. Ao fundo do armário do quarto. À caixa escondida no fundo do armário do quarto. Agarrei no revólver. Prendi-o no cós das calças. Saí de casa. Parei no alpendre. Acendi um cigarro. Um dos gatos veio roçar-se em mim. Baixei-me e fiz-lhe uma festa. O gato caiu no chão de patas para cima à espera que lhe afagasse o peito. Assim fiz. Depois desci a alameda até à estrada. Vi o cão a olhar para mim do quintal. Os gatos acompanharam-me enquanto descia a alameda e pararam ao portão a ver-me fazer a estrada em direcção à aldeia.
Era um dia de sol. Estava sol e calor. Um céu azul como só no Verão. Ninguém diria que estávamos ainda em pleno Março, não era sequer a Páscoa e vivíamos na hora de Inverno.
Fiz a estrada a fumar o cigarro. Quando entrei na aldeia sentia a transpiração a escorregar-me pela testa, os sovacos a ficarem inundados e os olhos a fecharem-se com o excesso de claridade.
Não havia ninguém na rua. As pessoas, pelo menos as da aldeia, e pelo menos naquela altura, estavam a levar a sério a história do confinamento, da reclusão, da quarentena que nos tinham sugerido para não dizer imposto. Agora que tinham começado a morrer uns velhos. E estes já tinham nome. Eram vizinhos, amigos, família. Agora a morte existia e tinha rosto. Finalmente obedeciam à sugestão. Afinal estamos em democracia, não é? O povo é soberano. Pena que uma parte do povo não saiba ser povo e é tão só e ainda animal, animal feroz a aprovisionar para tempos difíceis para si e para os seus esquecendo que somos grupo, sociedade, e só assim, juntos e em grupo conseguimos sobreviver a todas as contrariedades que nos possam aparecer à frente.
Não havia então ninguém nas ruas da aldeia. Talvez fosse afinal por estar calor e terem aproveitado para dormir a sesta. Já que quase ninguém estava a trabalhar, às vezes ainda se via um ou outro aldeão a cuidar dos seus talhões de terra a plantar batatas e milho e outras coisas da época, mas aqueles que trabalhavam na cidade e estavam de regresso a casa, alguns deles despedidos num eufemístico lay-off e outros sem apelo nem agravo, já sem terem onde cair, a comer os últimos tupperware com sopa que uns velhos mais velhos faziam sempre a mais e chega sempre para mais um, a fome que começava a alastrar, a fome que, final, nunca tinha desaparecido desde antes da revolução dos cravos, porque há sempre uns que não encaixam, que são excedentários, que não interessam, chamam-lhes ervas daninhas ou as maçãs podres do cesto, porque há sempre quem saiba tudo e saiba bem e marque o destino dos outros porque antes os outros que eles, antes que eles se tornem nos outros, e então estariam a dormir a sesta porque enquanto se dorme a sesta afugentam-se as fomes, as tristezas e, ao despertar, há sempre um momento em que a história pode tombar para qualquer um dos lados e, um dia, até pode ser que tombe para o lado certo.
Não havia ninguém nas ruas quentes e brancas da aldeia. As portas da igreja estavam abertas. Mas não estava ninguém. Agora ninguém vinha à igreja. A missa era transmitida pela internet. As portas estavam abertas para se algum fiel quisesse, precisasse, de se sentir em comunhão, mas um de cada vez que as regras agora são essas. E eu entrei na igreja e fui direito à torre sineira e abri a porta e entrei e agarrei-me à corda do sino e comecei a puxá-la para baixo com toda a minha força e deixei-me subir com ela no embalo e voltei a puxar a corda e o sino começou a bater a bater com força um toque de rebate violento forte e eu a subir na corda no embalo e a regressar para bater de novo e outra vez e mais outra os pés no chão os pés no ar a puxar a voar a bater a rebate outra vez e mais outra e outra e gritei gritei alto a plenos pulmões todas as minhas dores gritei todo o calão aprendido no anos de liceu e com as mulheres dos pescadores da Nazaré até me deixar sem voz no berro final…
Deixei o sino embalado a tocar sem parar.
Estava transpirado. Cansado. Afónico. Os olhos muito abertos.
Agarrei no revólver que tinha preso no cós das calças e fui para a entrada de portas abertas da igreja. O revólver na mão.
Venham. Venham.

[escrito directamente no facebook em 2020/03/28]

Para um Diário da Quarentena (Sexto Andamento)

Estou a contabilizar treze dias de reclusão. Na verdade estou aqui em casa como tenho estado ao longo dos últimos anos, saio para me abastecer, cuidar da minha mãe e pouco mais. A diferença é que se ia pouco a sítios de convívio, agora deixei mesmo de ir.
Não estou em quarentena, mas estou em reclusão. Uma falsa reclusão já que tenho saído de casa. Todos os dias desço a pequena alameda e vou até à estrada. Mas até os carros deixaram de passar aqui em frente. Sinto-me só, principalmente porque a minha vizinhança sonora agora é o silêncio. O silêncio e os grilos que me prometem um Verão quente, um Verão, por ventura, também recluso em casa.
Ainda se ouvem, ao longo do dia, os sinos da igreja. Talvez sejam as horas. Não sei se será mais alguma coisa. Talvez para avisar os fiéis que a missa da hora está a passar em directo na internet? Ou que está gravada para poder ser degustada como os fiéis preferirem às horas que preferirem?
Agora que me dizem para estar por casa tenho mais dificuldade em estar por cá. Quer dizer, estar, estou, mas apetecia-me não estar. É o meu desejo de ser do contra. A porra de um feitio que me leva ao não por defeito. Não vou. Não quero. Não sei. Não gosto. Foda-se!
Estou há treze dia em casa, com todas estas minhas saídas por necessidade lá pelo meio, mas ao final do dia de hoje, e depois de ter ficado toda a manhã na cama a prometer levantar-me Daqui a cinco minutos! até terem passado quatro horas e depois de ter andado toda a tarde a engonhar entre a sala e a cozinha, a ida ao alpendre para fumar um cigarro, o regresso ao quarto para arrumar alguma coisa que tenha ficado por arrumar que ando a fazer isto às mijinhas, talvez para não me cansar, talvez para ter uma desculpa para lá voltar, talvez mesmo só para me obrigar a fazer coisas ao longo do dia e não ficar com aquela sensação com que fico, afinal de contas passou-se um dia novo e inteirinho e eu acabei por não fazer a ponta de um corno.
São tempos excepcionais!, digo-me como desculpa para não ter feito o que devia ter feito, que estou em casa mas tenho coisas para fazer, coisas tão importantes como lavar as mãos e os dentes e acabo sempre por esquecer, não querer fazer, estar-me a marimbar para estes rituais que deveriam ajudar-me a manter um certo equilíbrio emocional mas acho que já estou todo quebrado e não há volta a dar.
Estou há treze dias por aqui, mas com a sensação de fim dos tempos e, ao final do dia, de um dia geralmente de merda, como o dia de hoje, sento-me no sofá com um copo de vinho tinto, e descubro num jornal online, que os espanhóis apresentaram um estudo que revelava que tão importante como lavar as mãos e usar álcool-gel e a distância social é o copo de vinho, ligo a televisão e ponho-me a par das últimas notícias e, normalmente, acabo por ficar maldisposto.
Estou, portanto, há treze dias assim, mais ou menos por casa, mais preocupado que normalmente e sento-me no sofá com um copo de vinho numa mão, acendo um cigarro e ligo a televisão.
Hora das notícias.
Há coisas que já sei. Sei de véspera e que fui ouvindo ao longo do dia.
Sei que o presidente brasileiro é um merdas evangélico que acha que, esta crise que pode dizimar milhões nas favelas das principais cidades, não será mais que uma gripezinha para um atleta como ele. E fui ver ao Youtube como ele é atleta. Ri-me cheio de vontade. Com esperança que o vírus acertasse no caminho.
Também sei que o presidente americano, religioso-fanático como é está preocupado com a Páscoa e o facto das pessoas não irem à missa e, acima de tudo, não gastarem dinheiro. Da família de presidentes e primeiros-ministros imbecis, o presidente norte-americano acha que a América é forte o suficiente para dar cabo do vírus chinês em duas semanas. Foi o que ele disse.
Ouvi também que o governador do Texas garante que os velhos texanos não se importarão de dar a vida pela economia do país. Nada como o templo capitalista para se apelar à fé no santo Dólar.
Sobre Itália e Espanha, já perdi a noção dos números. Estão sempre a serem actualizados e já estão para lá da minha compreensão. Isto numa altura em que a Organização Mundial de Saúde avisa que o epicentro da crise pode mudar para os EUA num prazo de duas semanas. E ainda continuo a ouvir gente afirmar que a gripe normal mata mais, muito mais. Cansado de pessoas sem formação lançarem-se à sabedoria adquirida na universidade da vida.
Por cá vamos bem lançados para entrar nos números da Europa. Ao menos que sejamos Europa nisto, já que não somos em quase nada ou, pronto está bem, não quero ser muito mau nem mal-agradecido, em pouca coisa, então que sejamos Europa nisto, mesmo que as verbas da Europa não cheguem cá como chegaram as dos anos oitenta que enriqueceu muita gente mas acabou por não afinar o país nem os seus empresários.
Vim aqui para registar o meus diários dos dias difíceis e acabei a falar do que me tem atormentado durante estes dias. Ainda por cima não é por mim que me atormento, mas pelas pessoas de quem gosto e que gostaria de não ver nestas situações de perigo.
A UEFA adiou o Europeu de Futebol. O COI adiou os Jogos Olímpicos. O Festival da Eurovisão foi cancelado. O Festival de Cannes foi adiado. Os festivais de Verão não sei o que vai ser deles. As pessoas, principalmente as mais velhas, vão continuar a morrer. Outras vão continuar a sair em grupo porque são imunes. Há muita gente que vai ser despedida. Muitas empresas, especialmente PME, que irão à falência. As pessoas podem ficar sem dinheiro para as despesas correntes. Renda da casa. Luz. Água. Gás. A fome vai chegar. As outras doenças estão a perder prioridade e podem levar outras pessoas também à morte por outros caminhos. O Estado avança com linhas de crédito através dos bancos, os únicos que não dão nada a ninguém e acabam por ganhar com a crise. As concessionárias das auto-estradas podem vir a ser indemnizadas por falta de utentes e a Padaria Portuguesa pede ajuda ao Estado para pagar mal e porcamente aos seus empregados. Acho que estou a assistir em directo ao fim do neo-liberalismo.
Estou aqui sentado há um tempo no sofá com o copo de vinho ainda intacto na mão e o cigarro inteiro transformado em cinza pronto a tombar sobre o tapete. Na televisão passam anúncios publicitários e nem percebo a quê e pergunto-me quem será o público-alvo. Estou um pouco perdido nos meus dias. Preciso de me colocar em ordem.
Amanhã vai ser um dia mais organizado.
Amanhã vai ser um dia melhor.

[escrito directamente no facebook em 2020/03/25]

Moro num T1+1

Moro num rés-do-chão baixo, ao nível da rua. É um T1+1, o que quer dizer que tem um quarto, uma sala e um pequeno buraco que fazia parte da sala mas que foi separado por um tabique para quarto de empregada, ou de arrumação e fazer o apartamento subir um nível no valor do arrendamento. Fiz desse buraco uma espécie de escritório com uma mesa mais pequena que fui comprar ao Vassoureiro e os livros aguentam-se empilhados uns nos outros à espera de melhores condições de vida (minha) que lhes garantam outra dignidade (uma estantes seguras) num apartamento de divisões um pouco maiores e com vista para qualquer lado que não os ouvidos putrefactos da vizinhança.
A minha casa é pequena, mas é suficiente para mim. Tenho um quarto, uma sala, uma cozinha, uma casa-de-banho com uma pequena janela de vidro que abre e deixa entrar ar fresco e o buraco que me serve de escritório. Um pequeno corredor vai da sala à cozinha fazendo a distribuição das outras divisões.
A sala fica paredes meias com a rua. Quando vou à janela fumar um cigarro, fico à altura das pessoas que passam por lá. O pequeno buraco que me serve de escritório também. Também fica paredes meias com a rua. E também tem uma janela. Às vezes deito-me no chão do escritório, arredo a cadeira e deito-me no chão do escritório, entre as pilhas de livros, para endireitar as costas, e sinto as pessoas a passarem por mim, quase como se me tocassem na cabeça. Às vezes alguns miúdos da rua encostam-se à minha parede a fumar uma ganza e ouço-lhes as conversas. Conversas de merda, na maior parte das vezes. Mas já me ri desgraçadamente.
O quarto e a cozinha têm uma janela para um pátio nas traseiras dos prédios. Quando vim para esta casa, às vezes ia até lá, fumava um cigarro a passear entre as couves e as batatas que os porteiros dos prédios que formam aquele pátio interior lá iam plantando. Saltava a janela da cozinha e passeava por lá. Mais tarde cimentaram todo o pátio e os porteiros deixaram de ter sítio onde plantar hortaliças. Depois começaram a descer os vizinhos dos vários andares, desciam pelas escadas de incêndio e juntavam-se no cimento a jogar o Monopólio, à bola, a beber cerveja e a fumar umas ganzas. Eu deixei de frequentar o pátio. E é raro fumar à janela da cozinha para não dar com os vizinhos a fazer o mesmo que eu e a dar fé das vidas dos outros. Fumo no interior da cozinha com a janela aberta. Ou fumo no escritório também com a janela aberta. Mas é raro fumar no escritório porque é raro abrir a janela. O barulho é quase sempre ensurdecedor. O passeio tem dois metros de largura e depois há uma estrada de duas faixas em sentido único e os carros aceleram por ali. Às vezes há vizinhos que param os carros em segunda fila, com os quatro piscas ligados, às vezes nem isso, e provocam engarrafamentos e buzinadelas. O som é insuportável.
Era. Já não é. Era.
O meu T1+1 que me servia na perfeição, tornou-se, de repente, enorme e minúsculo. Os dois contrários ao mesmo tempo. Mesmo tempo, mesmo tempo, não. Em tempos diferentes.
Quando me deito no chão do escritório, que agora faço com muito mais assiduidade, já não escuto as conversas dos miúdos na rua, nem os carros a galgar asfalto, nem há carros a buzinar a outros carros parados em segunda fila. Agora já não há pessoas, nem carros, nem barulho. Agora só há silêncio. Por vezes estou na sala a ler um livro e fico admirado por o barulho da história ser maior que o barulho da minha vida.
Mas quando estou há mais de duas semanas em casa, fechado como agora, e só saio para ir ao pão ou para comprar alguns mantimentos à mercearia que fica cinquenta metros acima na rua, a casa parece minúscula, demasiado acanhada para a enormidade da minha neura, uma neura criada na obrigatoriedade de ficar em casa, coisa que eu até gosto de fazer. Mas não obrigado. Não por decreto. Não porque me mandam. Agora até a rua me parece pequena. As duas pastelarias fechadas. A oficina a trabalhar a meio-gás (estão de porta fechada mas ouço o barulho no interior). As escadas que levam à C+S lá mais acima, desertas. A casa dos tecidos encerrada. O restaurante onde ia por vezes comer uma alheira de caça, encerrado. Tudo fechado. Ou quase tudo. Tudo em silêncio. E eu. Eu aqui, fechado em casa. Não estou de quarentena. Estou só em isolamento. Estou recluso. Em fuga ao vírus.
Agora trocava o meu T1+1 por uma casa velha com um quintal mal amanhado e uma casota para um cão e um galinheiro para umas galinhas e uma vista sobre árvores e montanhas e um riacho e o barulho das cigarras e dos grilos e dos pássaros e até do raio das corujas que não se calam durante a noite inteira mas que me adormeceriam e me fariam ser mais bem-disposto. E há quanto tempo não chove?

[escrito directamente no facebook em 2020/03/23]

Faz Agora Cem Anos, a Pandemia

Primeiro colocaram-nos em casa e trancaram as portas. Depois fecharam o país. Nada entrava e nada saía.
Era preciso estancar a disseminação do vírus. Isolar toda a gente. Impedir a propagação trazida de fora. Em casa, sem contactos físicos uns com os outros, não éramos veículos transmissores.
Só estavam a funcionar os grandes centros de distribuição alimentar. Toda a alimentação era acumulada nesses centros, criavam-se cabazes alimentares para uma, duas, três e quatro pessoas e os militares estavam encarregados de fazer a distribuição por todo o país. De porta em porta. Em todas as portas de todas as casas do país inteiro.
As únicas pessoas com autorização para saírem eram as pessoas envolvidas neste processo de distribuição, os técnicos das empresas de energia, das empresas de água e os médicos e enfermeiros que continuavam a trabalhar nos hospitais, muitos deles improvisados em tendas de campanha, pavilhões gimnodesportivos e escolas C+S, que tentavam minorar os danos da pandemia.
No início ainda havia aulas não-presenciais dadas através da internet. Ainda havia quem fizesse teletrabalho. Mas as redes de distribuição de internet começaram a colapsar. Demasiada gente ao mesmo tempo durante demasiado tempo a circular informação online. Os alunos começaram a desistir das aulas recebidas através dos ecrãs dos telemóveis, muitos deles com o vidro quebrado, coisa de miúdos. Os pais que estavam em teletrabalho depressa se fatigaram de trabalhar em pijama, sem horário, a terem de prover aos filhos e às mulheres. E o trabalho, na verdade, deixou de existir. O que havia para fazer num mundo que estava a ficar parado?
Ao fim de algum tempo, o ócio transformou as semanas de filmes e séries em discussões violentas. Começaram a voar livros pelas janelas. Os jogos de tabuleiro eram lançados às peças para durar mais. O ódio começou a destilar. E apareceram as primeiras mortes fora do quadro directo do vírus.
Foi logo ao fim do primeiro mês de distribuição alimentar que os cabazes começaram a deixar de vir com a mesma regularidade. Foi logo ao fim do primeiro mês que os cabazes de distribuição alimentar começaram a chegar com menos quantidade e menos qualidade de alimentos. As pessoas começaram a manifestar-se nas janelas. As cidades passaram a ser coros de revolta. Um bairro inteiro a gritar palavras de ordem. A bater em tachos e panelas. Contra. Contra. Contra. Já nem se sabia bem do quê, em concreto. Contra o estado geral das coisas. O cansaço do confinamento. A fadiga da companhia. A falta de solidão. A ausência de rotinas que se foram perdendo. Já ninguém tomava banho. Ninguém lavava o cabelo. Os homens não faziam a barba. As mulheres já não pintavam as unhas, os lábios, as raízes negras dos cabelos loiros. Era preciso gritar. Era preciso explodir.
Os trabalhadores do centro de alimentação e os produtores de frescos, frutas, lacticínios, carne e peixe andavam exaustos. Demasiado trabalho para tão pouca gente com a responsabilidade de milhões.
E, depois, depois a comida começou a escassear. As fronteiras fechadas. A insuficiência. E quanto mais escasseava mais escasseava ainda mais porque havia quem, na cadeia, começasse a desviar para proveito próprio.
Foi ao final do segundo mês que as coisas aconteceram.
A fome começava a instalar-se. Havia algumas pessoas mais afoitas que faziam saídas à rua, à noite, às escondidas, e negociavam no mercado negro que tinha começado a funcionar. Mas o grosso, o grosso das pessoas começava a enfrentar uma enorme fome. Muita gente já só tinha a água que continuava a correr nas canalizações. Começaram a aparecer cadáveres na rua, atirados pelas janelas e varandas dos enormes prédios das cidades-dormitório.
Quando o governo se preparava para declarar vencida a pandemia, os sobreviventes saíram para a rua e revoltaram-se contras as autoridades que encontravam pela frente. Houve muitas mortes. Mortes de parte a parte. Embora o exército estivesse armado e mais bem preparado, as pessoas traziam a fúria dos desesperados que, enclausurados durante quase três meses, e o primeiro mês foi quase um exercício de estilo pós-moderno na forma de uma quarentena auto-infligida, como umas férias forçadas para ler os livros comprados e nunca lidos à espera do dia certo, e fora esse o dia certo, cansados do ócio e do confinamento com gente com quem nunca tinham estado mais do que algumas horas por dia e a maior parte delas a dormir, partiram furiosos para cima do único inimigo que conheciam e sobre o qual queriam despejar todas as frustrações.
Muita gente morreu naquele período. E não foi só cá, neste país. Foi igual em todo o lado. Em todos os países. Em todos os continentes. A globalização normalizou-nos. E reagimos todos da mesma maneira.
No final, restaram uma minoria. Uma minoria por país. A economia estava de rastos. Era necessário recomeçar tudo. Recomeçar tudo de novo. Do zero. Só que desta vez as coisas seriam diferentes. Desta vez as coisas não seriam deixadas ao acaso.
Desta vez havia um único governo mundial. Um governo composto por um grupo de sábios. As pessoas tinham as suas vidas programadas desde a infância. Ninguém podia fazer menos, ninguém podia fazer mais. Ninguém passava fome, ninguém era obeso. Mas havia contra-medidas para esta segurança da vida das pessoas. Ninguém podia ser o que quisesse. Fazer o que quisesse. Quando quisesse. Se quisesse. Toda a gente tinha de contrair matrimónio aos dezoito anos. Todos os casais deveriam ter três filhos. A manipulação genética garantia as necessidades de género. E os casais tinham de ser, obrigatoriamente, compostos por um homem e uma mulher.
Todas as pessoas tinham a sua vida programada. Desde o nascimento à morte. Cada pessoa era destinada a determinado objectivo consoante as necessidades do mundo e essas necessidades eram decididas e controladas pelo conselho de sábios.
Mas algumas pessoas não estavam de acordo.
A pandemia da Covid-19 aconteceu faz agora cem anos. Setenta por cento da população mundial pereceu nesses terríveis meses de contágio e, mais ainda, durante as revoluções pós-confinamento.
O meus bisavós foram dos poucos sobreviventes. Os meus avós aguentaram os primeiros anos de regime mundial. Depois cometeram suicídio-social. Desapareceram do mapa e criaram a primeira rede clandestina global. Os meus pais já nasceram na clandestinidade. Os dois.
E a história que vos contei hoje foi a história que me foi contada a mim, durante as longas e escuras noites que tivemos de passar escondidos, a lutar pela liberdade de todos nós, mesmo daqueles que nem sabem o que é a liberdade. A liberdade de poder escolher o seu destino ou de poder fumar um cigarro, beber um copo de vinho tinto e mandar alguém para o caralho.

[escrito directamente no facebook em 2020/03/20]

Para um Diário da Quarentena (Segundo Andamento)

Acordei com a luz do dia a bater-me na cara. Virei-me para o outro lado. Fechei os olhos. Tentei dormir mas já não era possível. Os olhos abriam-se e olhavam para a parede em frente onde batem as sombras das árvores e produzem uma espécie de sombras chinesas. Recomeçaram de novo as histórias de todos os dias projectadas ali, naquela parede. Os ouvidos colocaram-se logo à escuta. Havia vento lá fora. Puxei o edredão mais para cima de mim. Sentia o frio à minha volta no quarto.
Estava desperto mas não tinha vontade de me levantar. Tinha de ir mijar, mas estava a protelar. Sentia-me bem ali deitado na cama. No quente da minha cama.
É início da semana. Mas que semana? Este início de semana é parecido com o fim-de-semana. Estou em casa. Estou sempre em casa. Estou sempre em casa todos os dias de todas as semanas e fins-de-semana. Trabalho em casa. Trabalho à distância que o wi-fi me permite. Trabalho como quero e quando quero e passeio-me pela rua fora, pelas ruas curvas e sombrias e solarengas e subo à serra e mando seixos ao rio e apanho fruta das árvores e oferecem-me ovos verdadeiros de galinhas verdadeiras que vivem em galinheiros no meio do campo alimentadas a milho e que passam os dias a depenicar o chão à cata sabe-se-lá-do-quê.
Não me apetece levantar.
Hoje não me apetece trabalhar.
Estou… Estou uma série de coisas que poderia enumerar. Neura. Melancólico. Deprimido. Preguiçoso. Cansado. Psicologicamente cansado.
Não me apetece ouvir música. Nem ver um filme. Nem uma série. Não quero ler um livro. Nem folhear uma revista. E tenho aqui tantas revistas atrasadas para folhear, ler, reler, guardar alguns artigos, algumas revistas inteiras. Não me apetece ver ninguém. Não me apetece falar com ninguém.
Nada. Nada de nada.
Virei-me para o tecto. Havia luz no quarto, a luz do dia, de um dia com um pouco de sol a bailar entre tufos de nuvens. O dia não estava escuro, até estava mais-ou-menos brilhante, com um sol amarelo a fugir às nuvens. Durou pouco. Ao início da tarde o sol morreu, as nuvens desapareceram e o céu escureceu e ficou cinzento. O vento mantinha-se e manteve-se. Um vento a grande velocidade e muito frio.
Não. Não me queria levantar.
Tocou o telefone. Deixei-o tocar. Chegou uma mensagem. Não a fui abrir.
Pensei que o mundo poderia ainda estar pior que na véspera. Estiquei o braço e liguei a rádio que está com o despertador. Estava na TSF. Os noticiários foram-se sucedendo. Ao longo do dia.
Eu fui dormitando. Adormecia. Acordava. Ouvia um segmento noticioso. Bocejava. Voltava a dormir. Esqueci-me que tinha vontade de mijar.
Quando dei por mim já era de noite. A TSF continuava a debitar notícias. Percebi que a vida continuava lá fora. Mas já tinha havido a primeira morte em Portugal. A fronteira com Espanha ia ser fechada. E falava-se na possibilidade de se levantar um estado de emergência.
Foda-se! Levantei-me rápido e fui mijar. Mijei. Senti-me aliviado e, por momentos, esqueci-me da quarentena e destes dias de excepção.
Lavei as mãos. Senti fome. E decidi fazer uns ovos mexidos.
Lembrei-me da mensagem que tinha recebido. Talvez tivesse recebido mais. Talvez alguns mails. Talvez… Não. Não haverá nada. Talvez só uma mensagem com a conta do telemóvel para pagar.
E pensei Amanhã não posso não fazer nada.

[escrito directamente no facebook em 2020/03/16]

Para um Diário da Quarentena (Primeiro Andamento)

No segundo dia de quarentena e não noto diferença no ritmo da minha vida. Continuo fechado em casa, com vários passeios pelo quintal a olhar as montanhas ao fundo, a beber copos de vinho tinto e a fumar cigarros no alpendre. Nada que já não faça nos outros dias da minha vida desde que resolvi virar costas à cidade que me estava a tratar mal.
Normalmente dou uns passeios pela aldeia. Bebo um café e um bagaço no café central, ao lado da igreja, e abasteço-me de pequenos produtos alimentares, frescos e pão, na mercearia. Ontem e hoje não saí daqui. Amanhã talvez vá comprar pão fresco. Se a mercearia estiver aberta.
Hoje o dia começou com sol. Não estava frio mas estava vento. Fumei um cigarro no alpendre, em pé, com um dos gatos a roçar-se nas pernas despidas. Depois voltei para casa e por cá tenho ficado.
Devia ir levar comida ao cão e aos gatos, mas estou com preguiça. Hoje não comem ração. Talvez cacem um rato ou um coelho. Os gatos costumam caçar coelhos e partilham-nos com o cão. Dão-se bem e não estão muito dependentes de mim. Mas eu prefiro dar-lhes ração para não andarem para ai restos de animais mortos e bolas de pêlos a voar. Sou alérgico aos pêlos dos animais.
Hoje não tomei banho. Já não lavo o cabelo há três dias. E está muito grande. Devia cortá-lo, mas não há-de ser agora. Não irei à cidade durante os próximos tempos.
Desde que me levantei que tenho andado nu cá por casa. A casa é quente e confortável. Tenho andado indeciso sobre o que fazer e ainda não vesti nada porque estou sempre a ponderar voltar para a cama e ir dormir.
Hoje não me apetece trabalhar. Comecei a ver uma série nova, The Outsider, e estava com vontade de terminar a temporada de uma vez mas, deu-me a fome e acabei por parar no terceiro episódio para ir grelhar um hambúrguer. Comi-o dentro de um pão da avó que torrei. Juntei-lhe uma fatia de queijo Limiano e um pouco de ketchup Heinz. Acompanhei com um resto de uma garrafa de vinho sobrevivente. Já tinha um pouco de pé. Ainda bem que o acabei. Amanhã tenho mesmo de ir à mercearia. Ou procurar alguém que tenha uns garrafões para vender.
Enquanto estava a comer o hambúrguer apanhei o Primeiro-Ministro na televisão a explicar as novas medidas de emergência. Não consegui concentrar-me no que ele disse. Sinto-me um pouco tonto. Tenho vertigens quando me falam de coisas que não quero ouvir. Mas acabo por perceber o geral da conversa. E percebi. Vou continuar fechado cá por casa. Nada a que não esteja habituado. Vou continuar a trabalhar em casa. O que já faço. Não vou a concentrações de pessoas. E não vou mesmo. Mesmo quando posso. Ou podia.
Passo na casa-de-banho para mijar. Lavo os dentes depois de ter comido o hambúrguer.
Páro no corredor. Sinto falta dos jogos de futebol. Tento perceber o que vou fazer. Tento perceber o que é que me apetece fazer. E percebo que não me apetece fazer nada. Acabo por rumar à cama. Deito-me. Tapo-me com o edredão por cima da cabeça.
Espero que os dias passem todos muito depressa, eu envelheça e mude de opinião. Às vezes gostava de voltar ao convívio das outras pessoas. Depois passa.

[escrito directamente no facebook em 2020/03/15]

Interrompido

Tinha agarrado nas quatrocentas páginas de O Amor nos Tempos de Cólera e ido para o alpendre, sentado numa cadeira, um copo de gin na pequena mesa de apoio ao lado e um cigarro aceso nos dedos quando o telefone tocou. Era ela. Atendi.
Olá!, disse. Ela ficou em silêncio depois do meu cumprimento e demorou a dizer Olá!
Ela é que tinha telefonado, mas eu é que fiz a conversa. Percebi que estava nervosa. Talvez arrependida de ter ficado em casa sozinha. Talvez arrependida de não ter aceite o meu convite. E eu disse-lhe Estou no alpendre. De papo para o ar a adormecer esta solidão. Podias estar aqui. Podíamos estar a jogar Monopólio.
Ela deu uma pequena gargalhada. Talvez a primeira desde…
Tossicou um pouco e disse Estou à janela a olhar para a rua. Não passa ninguém.
Aqui também não passa ninguém, respondi-lhe, solidário. Mas era verdade. Desde manhã que não via ninguém a passar na estrada lá ao fundo. Nem a pé nem de carro. Nem as motorizadas de motor estridente que se ouvem normalmente a passar na aldeia se ouviam. Mas ouvia vozes ao longe. Devia haver gente no campo, a tratar das hortas, dos pomares, do gado.
Olhei para o fundo do quintal. Tentei focar o olhar.
Pousei o livro na mesa ao lado do copo de gin e levantei-me da cadeira. O olhar ao fundo. Ao fundo do quintal.
Ela disse Já contei os mosaicos da casa-de-banho. São bastantes. Mas já esqueci quantos eram. Eu respondi Cá em casa não há mosaicos na casa-de-banho, como sabes. Só azulejos. São maiores. Serão menos, de certeza. Falava com ela enquanto descia as escadas do alpendre de olhos postos ao fundo do quintal.
Não sabia do cão e dos gatos. Deviam andar a passear alheios a toda esta situação de emergência. E ela disse Tenho comprimidos suficientes para um mês. Ainda bem!, saiu-me. Mas sim, ainda bem. Ainda bem por ela. Sabia como precisava dos comprimidos. Sabia como ficava sem os comprimidos.
Eu aproximava-me do fundo do quintal.
Ela disse Não tenho conseguido cozinhar. Tenho comido latas de conserva. Havia só dois dias que tínhamos ficado confinados em casa e ela já estava cansada. Esperava que conseguisse aguentar o tempo que fosse preciso. E vinha aí muito tempo. Muito tempo fechados em casa. Mesmo que ela quisesse agora aceitar o meu convite, eu não podia lá ir buscá-la. Ouvia as notícias que contavam das autoridades a patrulhar as áreas com mais densidade populacional para obrigar as pessoas a ficarem em casa. Já havia relatos de prisões. Já tinha lido no Facebook que tinham sido disparados tiros que tinham atingido algumas pessoas que teriam furado a quarentena. Para irem para a praia, dizia-se. Mas não sabia se era verdade ou não. Por aqui não se via polícias, guardas ou militares. É verdade que não tinha visto ninguém a passar aqui ao fundo. Mas ouvia vozes. Barulhos. Devia haver gente nos campos. A tratar das hortas. Dos pomares. Do gado. As pessoas aqui estão isoladas do mundo e aproveitam para furar o bloqueio. Devem andar de casa em casa. Eu estou por aqui. Sozinho.
Abri uma lata de atum com feijão frade. Nunca pensei gostar. Não é mau.
Cheguei ao fundo do quintal. Mandei fora a beata do cigarro. Baixei-me. Era um pássaro morto. Não estava ferido. Não via nenhum golpe. Não havia sangue. Estava morto mas estava intacto.
Está? ouvi lá do outro lado ela a sentir-se ignorada. Desculpa! disse, e continuei Descobri um pássaro morto aqui no quintal.
E depois senti o som seco de uma pancada um pouco mais ao lado, dentro do quintal. Fui até lá. Era outro pássaro que tinha acabado de cair. Igualmente intacto. Olhei à minha volta e não vi ninguém. Olhei para o céu e não vi nada. Olhei para a estrada e descobri mais dois pássaro caídos no asfalto.
Senti-me engolir em seco. Lembrei-me do copo de gin que tinha deixado na mesa lá em cima no alpendre. Tentei salivar para humedecer a garganta, mas não consegui. E disse-lhe para o telefone Tenho de desligar, e desliguei.
Comecei a andar mais depressa para o alpendre enquanto tentava ligar para o cento e doze. Interrompido. Para a polícia. Interrompido. Cheguei ao alpendre e bebi um grande gole de gin. Refresquei a garganta. Tentei ligar para a guarda. Interrompido. Acendi um cigarro. Vi cair mais dois pássaros no quintal. Tentei ligar para a linha de saúde, para o jornal da cidade, para a câmara municipal… Tudo interrompido!

[escrito directamente no facebook em 2020/03/14]