A Mulher, parte 03

[continuação de ontem]

A paragem de autocarro estava vazia. Bem, vazia, vazia não. Ela estava lá. Sentada no banco de alumínio e a cabeça muito direita, suportada pela parede de acrílico onde estava encostada. Continuava a agarrar a carteira pousada no colo. E, preso entre as pernas, o saco de cartão onde ia a bata para lavar em casa.
Os autocarros já tinham deixado de passar. Era tarde. Bastante tarde. Já era de madrugada.
Passava um ou outro táxi que se abeirava da paragem a ver se era alguém perdido à procura de transporte. Mas não. Era somente alguém que ali estava a dormir. Talvez uma sem-abrigo. Gaita!
Passaram dois miúdos de skate e, um deles olhou para ela e riu, riu descaradamente e alto, e apontou com o dedo para ela, para mostrar ao outro miúdo, no outro skate. Mas o segundo miúdo passou à frente. Não se manifestou. Pararam os dois mais à frente. Sentaram-se no lancil do passeio, com os pés na estrada, os skates parados ao lado, a fumar um cigarro.
Nem assim ela acordou. O cansaço acumulado fechou-a para o mundo. Podia vir aí uma réplica de 1755 que ela continuaria a dormir.
Passou o camião do lixo. Parou ao lado da paragem de autocarro para apanhar o lixo de uns caixotes. O barulho do camião. O barulho do elevador do camião. O barulho dos caixotes a baterem para largar todo o lixo no camião.
No prédio em frente abriu-se uma janela. Alguém foi fumar um cigarro para a janela e ver o camião do lixo na sua tarefa nocturna.
Ela continuava a dormir. Mas não estava ali. Continuava lá. Lá na terra de onde viera há uns anos. Estava cheia de esperança. Com toda a esperança que tem quem nada tem. Lembra-se quando reuniu os pais. E alguns irmãos. Os mais velhos. E lhes contou. Contou que ia embora. Que não podia mais continuar a ajudar lá em casa porque se ia embora. À procura do futuro. Do seu futuro. Da sua vida. Sozinha? Não, sozinha não. Com o homem. O seu homem. Vou com o meu homem. E os pais choraram. E os irmãos despediram-se. E prometeram-se viagens. E férias. E regressos. E nada disso aconteceu. Ela nunca mais regressou. Nunca encontrou a vida que procurava. Mas não podia dizer que se sentisse desiludida. Não, não se sentia desiludida. Era assim. Era assim, a vida. As coisas eram assim. Havia uns dias melhores que os outros. E era tudo.
Chegou cá. Engravidou. O homem cansou-se dela. Da vida que levava. Da vida que ambos levavam. Do corpo dela. Da criança. Arranjou outra. Mais nova. Sem filhos. E ela ficou sozinha. Sozinha com o filho. O seu filho. O filho só dela. O filho que um dia iria levá-la de volta à sua terra. Às suas praias. Ao seu mar.
Ela suspirou. Ela suspirou e, devagarinho, começou a acordar. Abriu os olhos. Pestanejou. Olhou à volta. Abriu a boca. Não conseguia dizer nada. Levantou-se, nervosa. A carteira na mão, muito junta ao peito. O saco de cartão com a bata para lavar tombou quando ela tirou os pés e foi até à estrada. Olhou para um lado e para o outro. Já começava a chegar gente. Pessoas que iam trabalhar cedo. Bastante cedo. Mas já era tarde.
Ela tirou o telemóvel da carteira e viu as horas. E ficou ali parada, por momentos, a olhar para o telemóvel a tentar processar o que lhe tinha acontecido. Ela tinha ficado ali a dormir? A sério?
E agora? E agora, o que faço?, perguntava-se. Já não vale a pena ir a casa. E o miúdo?
Marcou um número no telemóvel e ligou. Esperou. Esperou. Ninguém atendeu.
Do outro lado da estrada já havia um café aberto. As luzes ligadas. Um jovem que, ruidosamente, montava uma esplanada. Ela olhou para trás, para a paragem de autocarro e viu o saco de cartão tombado no chão. Foi lá apanhá-lo. Chegou um autocarro. Saiu gente. O autocarro arrancou. Ela cruzou a estrada e foi ao café. Sentou-se numa mesa a um canto. Pediu uma bica e uma torrada. Voltou a tentar telefonar.
Ao balcão, um velho pegava num copo de bagaço e bebia-o de um só gole. Nem pestanejou.
Ela desligou o telemóvel. Ninguém atendia. Veio a torrada. E a bica. Comeu. E bebeu.
Saiu do café. Já se via alguma luz do dia. Já havia mais gente na rua. Carros. Autocarros. Motorizadas. Gente. Gente com mochilas para a escola. Gente com pastas para o escritório. Gente com sacos de plástico para todo o lado. Gente.
Ela sentia-se nervosa. Não estava bem. Não se sentia descansada. Podia ser da falta de sono. De ter dormido ali, na rua. Podia ser muita coisa. Mas havia algo que a incomodava. Sentia um aperto no coração.
Viu o autocarro a chegar à paragem. Cruzou a estrada, o mais rápido que conseguia, sem olhar para os lados, tal a pressa. E entrou no autocarro para casa. Era hora de ir trabalhar mas ia regressar a casa. Estava com um pressentimento.

[escrito directamente no facebook em 2018/10/15]

Dia de Natal

Fui acordado de madrugada. Ainda era de noite. Em todo o lado o silêncio. Só cortado por aquele murmurar ao ouvido Vá, ainda temos uma meia-hora.
Sim, eu percebi. Ela agarrou-me, eu agarrei-a, e sem grandes preliminares nem grandes jogos de sedução, começamos a libertar o corpo daquela tensão dos últimos dias.
Tínhamos acabado de nos virmos, estávamos a dar o beijo de apaziguamento, quando a mais nova entrou quarto dentro a gritar que era dia de Natal, dia de presentes. E eu pensei Acabou-se o sossego.
E era verdade, acabara-se o sossego.
Ela saltou para cima da cama, para o meio de nós e só tive tempo de puxar o edredão até aos queixos e rabujar com o frio.
A mãe levantou-se e seguiu-a porta fora, mas antes fez-me sinal de que precisava de ajuda. Maldito Natal!
Levantei-me, vesti umas calças de fato-de-treino, fui à casa-de-banho urinar, lavar a cara e os dentes e lá segui para o cadafalso.
A mais pequena estava atarefada a ler os nomes nos presentes. A mãe estava na cozinha a aquecer leite para o mais velho que só apareceria mais tarde.
Quando a mãe entrou na sala, começou o ritual dos presentes. E foi nessa altura que desliguei.
Sei que estavam a abrir os presentes porque as via a abrir embrulhos e até me deram alguns a mim, mas não estava ali. Estava numa outra cama, agarrado a alguém, a ouvir a chuva a cair lá fora e a pensar como era bom estar ali. E era mesmo bom estar ali, no quentinho, e sentir a tempestade do lado de fora e pensar como é bom viver estas pequenas coisas.
E lembro-me de agarrar um presente e agradecer, mas na verdade, o que eu vi foi uma bandeja com um belo pequeno-almoço que iria partilhar e que agradecia.
Alguém tinha posto música a tocar, acho que reinava a alegria e a boa disposição ali naquela sala mas, eu, eu estava noutro sítio, num quarto, a dançar a mesma música mas abraçado a alguém e sentia-me bem enrolado assim naqueles braços.
Gostaste?, ouvi. E por momentos não percebi quem estava a falar e do quê. Até que ela se aproximou de mim, franziu a testa como se perguntasse o que é que se estava a passar e voltou a dizer Gostaste?, enquanto via, lá mais ao fundo, a mais nova à espera da minha resposta e eu disparei Sim, sim! Muito! e a mais nova riu, e a mãe dela sorriu-me, debruçou-se e deu-me um beijo na face.
E eu não consegui voltar para o quarto onde conseguia ouvir a chuva. E ainda não consegui perceber se eram memórias ou previsões. Ou tão somente um desejo.
Sei que estou de volta ao mundo real. E amanhã tenho de voltar ao trabalho. E a Passagem de Ano está à porta e nunca mais chega o sossego.

[escrito directamente no facebook em 2017/12/25]