[continuação de ontem]
A paragem de autocarro estava vazia. Bem, vazia, vazia não. Ela estava lá. Sentada no banco de alumínio e a cabeça muito direita, suportada pela parede de acrílico onde estava encostada. Continuava a agarrar a carteira pousada no colo. E, preso entre as pernas, o saco de cartão onde ia a bata para lavar em casa.
Os autocarros já tinham deixado de passar. Era tarde. Bastante tarde. Já era de madrugada.
Passava um ou outro táxi que se abeirava da paragem a ver se era alguém perdido à procura de transporte. Mas não. Era somente alguém que ali estava a dormir. Talvez uma sem-abrigo. Gaita!
Passaram dois miúdos de skate e, um deles olhou para ela e riu, riu descaradamente e alto, e apontou com o dedo para ela, para mostrar ao outro miúdo, no outro skate. Mas o segundo miúdo passou à frente. Não se manifestou. Pararam os dois mais à frente. Sentaram-se no lancil do passeio, com os pés na estrada, os skates parados ao lado, a fumar um cigarro.
Nem assim ela acordou. O cansaço acumulado fechou-a para o mundo. Podia vir aí uma réplica de 1755 que ela continuaria a dormir.
Passou o camião do lixo. Parou ao lado da paragem de autocarro para apanhar o lixo de uns caixotes. O barulho do camião. O barulho do elevador do camião. O barulho dos caixotes a baterem para largar todo o lixo no camião.
No prédio em frente abriu-se uma janela. Alguém foi fumar um cigarro para a janela e ver o camião do lixo na sua tarefa nocturna.
Ela continuava a dormir. Mas não estava ali. Continuava lá. Lá na terra de onde viera há uns anos. Estava cheia de esperança. Com toda a esperança que tem quem nada tem. Lembra-se quando reuniu os pais. E alguns irmãos. Os mais velhos. E lhes contou. Contou que ia embora. Que não podia mais continuar a ajudar lá em casa porque se ia embora. À procura do futuro. Do seu futuro. Da sua vida. Sozinha? Não, sozinha não. Com o homem. O seu homem. Vou com o meu homem. E os pais choraram. E os irmãos despediram-se. E prometeram-se viagens. E férias. E regressos. E nada disso aconteceu. Ela nunca mais regressou. Nunca encontrou a vida que procurava. Mas não podia dizer que se sentisse desiludida. Não, não se sentia desiludida. Era assim. Era assim, a vida. As coisas eram assim. Havia uns dias melhores que os outros. E era tudo.
Chegou cá. Engravidou. O homem cansou-se dela. Da vida que levava. Da vida que ambos levavam. Do corpo dela. Da criança. Arranjou outra. Mais nova. Sem filhos. E ela ficou sozinha. Sozinha com o filho. O seu filho. O filho só dela. O filho que um dia iria levá-la de volta à sua terra. Às suas praias. Ao seu mar.
Ela suspirou. Ela suspirou e, devagarinho, começou a acordar. Abriu os olhos. Pestanejou. Olhou à volta. Abriu a boca. Não conseguia dizer nada. Levantou-se, nervosa. A carteira na mão, muito junta ao peito. O saco de cartão com a bata para lavar tombou quando ela tirou os pés e foi até à estrada. Olhou para um lado e para o outro. Já começava a chegar gente. Pessoas que iam trabalhar cedo. Bastante cedo. Mas já era tarde.
Ela tirou o telemóvel da carteira e viu as horas. E ficou ali parada, por momentos, a olhar para o telemóvel a tentar processar o que lhe tinha acontecido. Ela tinha ficado ali a dormir? A sério?
E agora? E agora, o que faço?, perguntava-se. Já não vale a pena ir a casa. E o miúdo?
Marcou um número no telemóvel e ligou. Esperou. Esperou. Ninguém atendeu.
Do outro lado da estrada já havia um café aberto. As luzes ligadas. Um jovem que, ruidosamente, montava uma esplanada. Ela olhou para trás, para a paragem de autocarro e viu o saco de cartão tombado no chão. Foi lá apanhá-lo. Chegou um autocarro. Saiu gente. O autocarro arrancou. Ela cruzou a estrada e foi ao café. Sentou-se numa mesa a um canto. Pediu uma bica e uma torrada. Voltou a tentar telefonar.
Ao balcão, um velho pegava num copo de bagaço e bebia-o de um só gole. Nem pestanejou.
Ela desligou o telemóvel. Ninguém atendia. Veio a torrada. E a bica. Comeu. E bebeu.
Saiu do café. Já se via alguma luz do dia. Já havia mais gente na rua. Carros. Autocarros. Motorizadas. Gente. Gente com mochilas para a escola. Gente com pastas para o escritório. Gente com sacos de plástico para todo o lado. Gente.
Ela sentia-se nervosa. Não estava bem. Não se sentia descansada. Podia ser da falta de sono. De ter dormido ali, na rua. Podia ser muita coisa. Mas havia algo que a incomodava. Sentia um aperto no coração.
Viu o autocarro a chegar à paragem. Cruzou a estrada, o mais rápido que conseguia, sem olhar para os lados, tal a pressa. E entrou no autocarro para casa. Era hora de ir trabalhar mas ia regressar a casa. Estava com um pressentimento.
[escrito directamente no facebook em 2018/10/15]