Uma Fila de Miseráveis à Espera de Serem Esmifrados

O economista, na televisão, explica
Aumenta a inflação porque os preços estão mais altos, e os preços estão mais altos, não porque as matérias-primas tenham aumentado os preços, mas porque a procura não pára, o turismo não abranda, mas este aumento de preços não está a reflectir-se nos salários dos trabalhadores, mas no aumento dos lucros, o que faz com que os portugueses sintam o custo de vida mais alto e eles sem poder de compra.
Isto é sobre o turismo. O tal motor de alavancagem (é bonita a palavra, não é?) da economia que, na verdade, não alavanca nada, ou alavanca o mesmo para os mesmos, que a ganância não tira férias, os salários são mínimos, as regalias poucas, por vezes trabalha-se mais horas do que se devia, e os lucros só entram num bolso. Para além do mesmo turismo fazer aumentar as rendas das casa, ou fazerem desaparecer casas do circuito de arrendamento, e afastarem as pessoas de férias em casa porque não podem pagar os preços inflacionados. Ir para o Algarve agora é um luxo.
Estou eu a pensar neste estado de coisas, as tais coisas que dizem-nos é mesmo assim, é a economia, estúpido, blá-blá-blá mérito, blá-blá-blá amor à camisola, blá-blá-blá não fazes mais que a tua obrigação, blá-blá-blá não tenho dinheiro para te pagar mas como é uma coisa que gostas de fazer, lembrei-me de ti, blá-blá-blá blá-blá-blá, quando o telemóvel toca.
Dou um pulo na cadeira da cozinha. Não estou habituado a ouvir o telemóvel a tocar. Olho para ele. É um número. Não tem nome. Não o tenho gravado na agenda. Não reconheço o número. Mas lembro-me que não reconheço números nenhuns. Não sei nenhum de cor. Nem o meu. Agarro no telemóvel e atendo. Pergunto
Sim?
e do outro lado está alguém de uma produtora de cinema. Não conheço a pessoa que me telefona. Uma rapariga. Geralmente são raparigas. Não conheço a produtora. Não conheço o filme. Não conheço o realizador. Não conheço ninguém. Precisam de um assistente de realização em Lisboa com urgência. Eu pergunto
Quanta urgência?
e a rapariga responde
Amanhã.
e eu digo
Amanhã é Domingo.
e a rapariga concorda
Pois é!…
e eu continuo e digo que é muito em cima da hora. Estou disponível. Mas não tenho onde ficar em Lisboa. E ela responde que também não tem onde eu ficar em Lisboa.
Eu fico em silêncio.
Ela fica em silêncio.
Ficamos os dois em silêncio.
Eu pergunto-me a quem competirá romper o silêncio. A mim? ou a ela?
Eu não tenho mais nada para lhe dizer. Ela provavelmente também não. Não ultrapassámos um problema. Não nos encontrámos. Será que podemos desligar os telemóveis?
Acendo um cigarro. Ouço-a escrever num teclado de computador com uma certa velocidade.
Ela acaba por romper o silêncio e pergunta-me
Não tem mesmo como arranjar onde ficar?
e eu, simpaticamente respondo-lhe que a esta distância, de hoje para amanhã, não de certeza.
Ela regressa ao silêncio. Eu já sei que não vale a pena. É uma conversa sem sentido. Desligo o telemóvel.
O economista já não está na televisão. As notícias já vão no Europeu de Futebol. Mas não consigo ligar aos jogos e aos resultados finais dos jogos já realizados, embora tenha a impressão que todos os jogos até agora terminaram com goleadas. Este deve ser o europeu das goleadas. A informação passa para selecção portuguesa e eu não consigo desligar-me do turismo e do sucesso turístico português e dos salários baixos que o turismo continua a pagar sob a égide de que as coisas estão mal. As coisas estão sempre mal. Porra de país onde tudo está sempre mal. Mas está sempre mal para os mesmos. E não são aqueles que se queixam. São os que têm de aceitar tudo sem refilar e nas condições que forem porque há sempre mais alguém na fila pronto para ser esmifrado.
E gritam-nos que não há alternativas. Há, há. Claro que há alternativas. Não interessam é a quem lucra com este estado das coisas. É preciso manter o status quo da elite, diz a elite.

[escrito directamente no facebook em 2024/06/15]

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