Dançar com os Pés Descalços

Estou de cu enterrado no sofá a ler um livro que não sabia que tinha, encontrei-o por acaso, fora de sítio, nas prateleiras dos livros, em M, como de Maria Moisés (o título do livro), quando na verdade deveria estar em C, de Camilo Castelo Branco, o autor. De resto, desconhecia esta novela que leio, e que está aqui neste livro com o mesmo nome, da colecção Livros RTP da editorial Verbo, na companhia de duas outras novelas, O Cego de Landim e A Morgada de Romariz. Não sei quem terá cá deixado o livro ou se, por acaso, o livro afinal é meu e não me lembro, o que me deixa mais preocupado ainda porque não é um acontecimento isolado. Isto, de eu não me lembrar.
Estou com o livro aberto e leio
D. Tibúrcia e D. Maria Filipa eram solteiras. Passavam dos cinquenta, idade em que o sexo principia a descaracterizar-se, período equívoco em que a mulher, se não tem filhos que lhe afirmem uma serventia retrospectiva, parece que foi sempre assim, uma coisa melancólica, embalsamada, e presa à bisca sueca pelo espírito e à caixa do esturrinho de mil oitocentos e treze pelo nariz.
quando ela entra na sala e se vem sentar ao meu lado.
Eu finjo continuar a ler, o nariz entre as folhas amarelas do livro já antigo, mas já não estou a ler, a chegada dela tirou-me a concentração, já não consigo focar as letras e seguir a leitura, e passo a estar atento aos gestos que ela faz, gestos esses que são comunicação, são comunicação para mim, querem dizer coisas e eu devo estar atento a elas para não ser ultrapassado pelos acontecimentos.
Ela está descalça. Anda muita vez descalça por casa. Àa vezes até vai ao quintal assim, descalça. Eu às vezes acompanho-a. Mas não gosto de ter os pés sujos. Lembro-me de um filme pornográfico português dos anos noventa, que ficou conhecido como o filme dos pés sujos. Os protagonistas, os tipos que andavam lá a foder um com o outro, tinham os pés gloriosamente nojentos e, a maior parte do tempo, virados para a câmara. Enfim, memórias de outros tempos, de alguém que já leva muitos anos de vida e de estórias.
Ela está descalça e toca com os pés descalços em mim. Eu também estou descalço porque tenho os pés em cima da mesa de apoio, mas tenho os chinelos no chão, à minha frente, à espera dos pés, quando eles resolverem voltar para baixo. Ela esfrega os pés dela nos meus. Mas não diz nada. Não fala.
Ela acende um cigarro.
Eu viro-me para ela e pergunto-lhe
Quantos anos tens?
e ela responde-me
Tu sabes quantos anos eu tenho. Porquê?
e sim, eu sei quanto anos ela tem, mas estou a prepará-la para me meter com ela. Uma brincadeira agressiva, mas a que não consigo resistir. E digo
O Camilo Castelo Branco diz que, as mulheres passadas dos cinquenta, idade em que o sexo principia a descaracterizar-se, período equívoco em que a mulher, se não tem filhos que lhe afirmem uma serventia retrospectiva, parece que foi sempre assim, uma coisa melancólica, embalsamada, e presa à bisca sueca.
Ela olha para mim mas não diz nada. Faz uma cara séria.
Eu olho para ela à espera da resposta. Sei que ela está à procura da resposta certa para me dar. Mas não deve estar a ser fácil.
Eu começo a esboçar um sorriso. Ela dá-me um pontapé nas pernas. E depois, bate-me com as mãos nos braços. Várias vezes. Sem muita força. E diz
Cabrão!
e eu desato a rir-me à gargalhada.
Ela pára e continua a fumar o cigarro. Já não roça os pés nus dela nos meus. Mas olha para eles e diz
Tens de cortar as unhas dos pés.
Pois tenho. Estão enormes. Tenho andado de chinelos. Se andasse de sapatilhas já tinha rompido vários pares de meias. Amanhã corto-as.
O que é que queres jantar?
Afinal foi para isso que aqui veio. Já são sete da tarde. Tenho fome? Não sei.
Não sei. E tu?
pergunto-lhe. Ela diz
Há creme de cogumelos. E ovos. Queres uns ovos mexidos com salsa?
Pode ser.
Ela levanta-se. Quando chega à porta vira-se para trás e diz
Vem pôr a mesa.
e eu marco a página que estou a ler, e fecho o livro. Largo-o em cima da mesa de apoio. Calço os chinelos e vou com ela até à cozinha.
Bocejo.
Ela apaga o cigarro. Abre o frigorífico. Retira um tupperware. Coloca o creme de cogumelos em duas tigelas e leva-as para o micro-ondas. Abre o armário de baixo e agarra numa frigideira. Eu pergunto-lhe
Queres vinho?
e ela responde
Pode ser.
E enquanto ela faz uns ovos mexidos com salsa na frigideira e a sopa aquece no micro-ondas, eu abro uma garrafa de vinho alentejano e acabo de pôr o resto da mesa.
Amanhã é véspera de fim-de-semana. E suspiro.

[escrito directamente no facebook em 2024/05/23]

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