Tudo se Vai Desfazendo

Regresso a onde? Não tenho onde regressar. O passado já não existe. Só nas memórias que, ainda assim, estão a desfazer-se. Aos poucos.
Já não tenho aquela casa que não era a minha, nunca fora minha, mas que era minha, a casa que me tinha visto crescer, a casa da minha infância, da minha adolescência, a casa onde beijei a minha primeira namorada, a casa de onde me fui embora para ser adulto, a casa onde voltava quando voltava a casa, durante anos, o porto certo e seguro, a casa-casa. A casa-colo. A casa-mãe. Já não existe. Nada existe. É já só uma ideia-memória.
Regresso a onde?
Era a casa dos cheiros. O cheiro ao cozido, às sardinhas assadas, à feijoada à transmontana, às ameijoas à bolhão pato. O cheiro da sopa de feijão. O cheiro do bolo das cerimónias. Das filhoses. Do bolinho. O cheiro do doce de tomate e da marmelada. O cheiro das barrelas de Primavera, janelas todas abertas, o vento a entrar, os cobertores a arejar pendurados nas janelas, os tapetes levantados, a cera esfregada no chão de madeira.
São ainda os cheiros o que me liga mais às memórias da casa. A hortelã que a minha mãe usava na canja de galinha e na sopa do cozido.
Era também uma casa de plantas. Todas as varandas em volta da casa estavam cheias de plantas de todas as cores e feitios. Não lhes sei os nomes, nunca soube, mas vejo-as a todas, dentro dos seus vasos, à varanda, e a minha mãe a regá-las nos dias quentes de Verão.
Era também a casa da viagem no tempo. Do meu outro tempo. De todas as minhas vidas passadas. O meu quarto que se mantinha igual, mais arrumado e sem pó. Os mesmos móveis. A mesma cama sempre feita de lavado e o mesmo colchão. A almofada que já não era a minha almofada que essa levei-a comigo. A mesma estante com os poucos livros que lá tinha deixado, os Cinco, os Sete, as Gémeas, o Julio Verne, o Robin dos Bosques, o Ivanhoé e o Robinson Crusoé. As revistas da Walt Disney que tinha renegado ao crescer. Várias revistas soltas, a Première francesa, a Kapa, as revistas especiais de A Bola, a Playboy brasileira, a Photo. A colecção dos carrinhos da Matchbox. Os cromos de futebol agrupados por equipas. Algumas t-shirts antigas que usava para dormir ou para jogar à bola no campo das freiras depois de saltarmos as grades, cada vez maiores, agora enormes e intransponíveis. As chuteiras de pitons que nunca mais usei. O carrinho-de-rolamentos arrumado na garagem. A bola de futebol furada. O colchão-de-ar onde tantas vezes me lancei ao mar em São Pedro de Moel. A bicicleta que é cada vez mais pequena.
Já não existe nada disto. São só memórias. É o que me resta quando já não tenho onde regressar. Mas até elas me abandonam. Eram tantas. São só estas. São as que me restam. E até quando?

[escrito directamente no facebook em 2024/05/17]

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