O Caderno de Capas Pretas

O reggaeton a tocar ao fundo da casa, vindo lá da cozinha, onde as miúdas preparam o lanche. O som de pratos e talheres, o frigorífico a abrir e a fechar, o som da torradeira a cuspir o pão torrado, a máquina de café a vomitar aquela lama preta e os gritinhos delas a sobreporem-se àquela pobreza musical que me está a dar cabo dos nervos.
Coloco o livro de lado. Acendo um cigarro e vou para a janela.
A janela do quarto dá para as traseiras. Não tenho grande vista, nas traseiras. São as traseiras. Vejo o telheiro onde guardo o carro. Uma arrecadação. Umas escadas de madeira que com tanta intempérie em cima, já não deve ser de confiança. Um frango de borracha do cão.
Ouço um prato a cair e a estilhaçar-se. Eu petrifico. O corpo arrepia-se. Ouço-as rir. Não ficaram preocupadas com o facto de terem partido um prato. Riem-se. Eu enervo-me. Acho que já nem se lembram que eu estou em casa.
Salto pela janela para a rua.
Abro a porta da arrecadação. Entro. Cheira a mofo. Os olhos demoram a habituarem-se à pouca luz. Fumo o resto do cigarro enquanto aguardo pela visão. Quando acabo o cigarro, já tenho os olhos habituados ao escuro, mesmo que continue a não ver grande coisa. A minha vista anda muito cansada. A falta de óculos com a graduação certa estão a piorar-me a vista. Tento sobreviver a isto e esperar que não se deteriore demasiado. Avanço pela arrecadação dentro. Páro. O que é que vim aqui fazer? Olho em volta e não sei o que é que vim aqui fazer. Depois lembro-me que quis fugir ao reggaeton. Vim para aqui como podia ter ido para outro lado.
Vejo uma arca ao fundo. O que é que está naquela arca? Há já tanto tempo que não entro aqui que já não sei o que é que está aqui arrumado. Abro a tampa da arca. Olho lá para dentro. Caixas. Caixas de aparelhos. A caixa da Cannon. A caixa do Mac. Uma bola de futebol esvaziada. Alguns sacos de plástico com papéis dentro. A caixinha do iPad. A caixa da coluna JBL. A mala que usava na faculdade. Abro a mala. É uma mala de mão. Daquelas antigas. Agora é vintage. Alguns cadernos. Folhas. Um livro. Abro um dos cadernos. Folheio-o. Apontamentos de aulas. Leio algumas coisas. Não sei o que estou a ler. Varreu-se-me tudo da cabeça. Eu estudei Linguística?
Agarro noutro caderno. A mesma coisa. Outra matéria. Um terceiro caderno. De capas pretas. Folheio-o. Pequenos textos. Leio umas linhas.
Fecho a tampa da arca e sento-me em cima dela. Leio o que está escrito no caderno. Avanço algumas folhas. Leio outras coisas. Avanço mais ainda. Leio mais um pouco. Sinto-me entusiasmado. Parece que sou outro. Sento-me no chão e encosto-me à arca para estar mais confortável. Abro o caderno desde o início. E começo a ler a primeira folha. E vou por ali fora. Foda-se! Escrevi isto? Quer maravilha!…

Desperto da leitura com o barulho de um carro a trabalhar. O carro começa a andar e desce a alameda. Vai-se embora. O barulho afasta-se até desaparecer e regressa o silêncio. As miúdas saíram. Posso regressar a casa. Preciso de fumar outro cigarro.
Saio da arrecadação e levo comigo o caderno de capas pretas. Dou a volta a casa e tento entrar pela porta da cozinha. A porta está fechada à chave. Raios! Volto às traseiras e entro pela janela do quarto. Largo o caderno na mesa-de-cabeceira. Vou até à cozinha. Abro a porta da rua, a porta para o alpendre. Depois acendo um cigarro e pergunto-me
O que é que há aqui para jantar?

[escrito directamente no facebook em 2024/05/10]

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