A Carta-Registada

Sou acordado pela buzina da motorizada do carteiro. É raro ele chamar-me. Deve haver uma razão. Algo de muito importante deve ter acontecido. Quem morreu?
Que trágico. Sempre a pensar o pior.
Afasto o edredão e levanto-me a custo da cama. Estou nu e fico com frio. Sinto a pele a arrepiar-se. Pele de galinha, costumava ela dizer, quando dizia coisas. Agora não diz nada. Está calada. Está calada há cinco anos.
Visto as calças de fato-de-treino, uma camisola de algodão e calço uns chinelos. Esfrego os olhos. Vejo tudo desfocado. Passo pela casa-de-banho e lavo a cara. Bochecho água para tirar o sabor empastelado que tenho na boca. Devia lavar os dentes. Mas ainda não bebi café. Nem comi nada. E tenho de tomar o Trixeo antes de lavar os dentes. Assim está bom.
Saio pela porta da cozinha para o alpendre e agarro no maço de cigarros ao sair. Acendo um. Cruzo o quintal e desço a alameda. O carteiro está ao fundo, do outro lado do portão, na estrada. Ouço o barulho da motorizada a trabalhar ao ralenti.
Abro o portão e saio. Aproximo-me do carteiro. Estendo-lhe o maço de cigarros. Ela aceita e acende um cigarro. Devolve-me o maço. Depois estende-me um envelope. Carta-registada. Uma carta-registada vindo directamente da Câmara Municipal. Assino o registo. Não fico agradado com aquela surpresa matinal. O carteiro está a fumar o cigarro e parece que está à espera que eu lhe diga o que é. Não lhe vou dizer. Não vou abrir o envelope aqui.
Eu digo-lhe Vem lá chuva. Ele diz Sim.
Eu mando fora o resto do meu cigarro. Viro as costas ao carteiro para me ir embora e levanto-lhe o braço numa despedida. Ouço a motorizada continuar a trabalhar ao ralenti. Páro antes de entrar pelo portão. Abro o envelope. Na verdade rasgo-o. Desfaço o envelope para o abrir. E vejo o papel que lá vem dentro. Não fico contente.
Digo alto, sem me virar Uma multa de estacionamento. E ouço-o dizer Uma merda.
Entro pelo portão e fecho-o nas minhas costas. Começo a subir a alameda. Ouço a motorizada a ir embora. Percebo as mudanças. Quando estou a chegar ao quintal já não a ouço.
Ao passar pela churrasqueira amachuco o envelope rasgado juntamente com o papel da multa e mando tudo lá para cima. E entro em casa.
Estou na cozinha. Hesito em ir tirar um café. Talvez um chá?
Encho a chaleira com água. Ligo-a. Procuro na despensa por um chá. Descubro uma latinha de metal que trouxe dos Açores, de São Miguel, numa visita ao Chá Gorreana. Não sei do que é. Já não tem a etiqueta. Se calhar já não são as folhas originais. Se calhar já lá enfiei outras. Mas o quê? Que se foda. Vai mesmo isto.
A chaleira desliga. Coloco a água numa chávena. Coloco as folhas dentro de uma bola de alumínio com uma corrente e ponho a bola dentro de água.
Levo a caneca comigo para o quarto. Sopro para a água quente. Dispo-me. Enfio-me de novo na cama. Agora a cama está fria. Fico outra vez com pele de galinha. Viro-me para o outro lado. Ela continua sem falar. Já lá vão cinco anos. E acho que adormeço.

[escrito directamente no facebook em 2023/02/14]

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