Fascínio pelo Abismo

Hoje apercebi-me de uma coisa. Não foi só hoje que me apercebi disto, desde há muito que me apercebi, mas só hoje consegui verbalizar o que já tinha percebido: as pessoas são fascinadas pelo abismo. Entre o certo e o incerto, as pessoas escolhem o certo, mesmo que os conduza à morte. Sempre o conhecido. Sempre mais do mesmo. Sempre a segurança do que é conhecido, mesmo que não seja, efectivamente, seguro.
As massas apoiam-se entre si. Quantos mais, mais seguros das suas certezas, mesmo que erradas. São como os ratos do Flautista de Hamelin, a serem conduzidos ao mar, caiem, vêm cair os outros, mas não conseguem não pularem juntos para a morte. É a vertigem da queda.
Páro o que estou a pensar ao sentir chegar-me ao nariz o cheiro do manjericão. Ela está na cozinha. Deve estar a preparar uma salada caprese para o jantar. Gosto de saladas. Adoro manjericão. Adoro o cheiro do manjericão que se espalha pela casa. Temos manjericão caseiro. Num pequeno cantinho no quintal. Temos lá várias ervas e especiarias. Foi difícil ensinar os gatos a não irem para lá escavacar tudo. Agora vem-me o cheiro do manjericão e já não consigo mais pensar no que estava a pensar. De repente o meu objectivo é jantar. Nada mais me interessa. Nada mais me importa.
Levanto-me. Vou a flutuar corredor fora até à cozinha.
Ela está a preparar um prato com a salada caprese. Ainda a apanho a espalhar pimenta preta sobre o queijo.
Abro uma garrafa de vinho. Ponho a mesa. Ela coloca a salada na mesa, entre os pratos nos dois individuais. Eu encho os copos com vinho. Batemos num brinde. Bebemos um gole. Eu chego-me a ela e dou-lhe um beijo nos lábios. Ela demora-se. Os nossos corpos aproximam-se. Ela está muito quente. Os lábios tocam-se e arrastam as línguas para o meio da confusão. Sinto-lhe a respiração pesada. Ela tira-me o copo das mãos. Larga os dois copos na mesa. Dá-me a mão e leva-me com ela. Saímos da cozinha. Percorremos o cobertor. Entramos no quarto. Ela vira-se para mim e beijamo-nos de novo. Depois empurra-me docemente para cima da cama.
Eu ainda tenho tempo para voltar a pensar como as pessoas são fascinadas pelo abismo, mas às vezes fazem pequenas pausas para satisfações pessoais. Como o sexo. E depois percebo que as pessoas, as pessoas de que estou a falar, sou eu, que é de mim que estou, afinal, a falar. Sou eu que tenho fascínio pelo abismo. Gosto da sensação de vertigem. Do corpo que se agiganta e se curva. Mas não agora. Não, não agora. Abano a cabeça para mandar estas ideias para longe e delicio-me a vê-la despir-se, enquanto levanto as pernas ao alto e tento tirar as sapatilhas.

[escrito directamente no facebook em 2024/05/29]

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