O que É que Me Espera Fora do Guarda-Fatos?

Acordei com a sirene dos bombeiros a tocar. Não era a hora normal de tocar. A sirene dos bombeiros toca todos os dias às quatorze horas, sem falta. E volta a tocar quando há uma emergência. Não eram quatorze horas. Ainda era de noite. Madrugada, mais propriamente. Era uma emergência. Acordei assustado. No silêncio da noite, a sirene dos bombeiros pareceu mais grave que o normal. Um berro amplificado junto dos meus ouvidos.
Abri os olhos. Levantei-me da cama. Tentei situar-me. Estava em casa. Estava no meu quarto. Estava na minha cama. O que é que tinha acontecido? A sirene dos bombeiros. A sirene dos bombeiros tinha tocado. Já não estava a tocar. Mas tocou como toca todos os dias às quatorze horas. O que é que se tinha passado? Olhei para o relógio-digital. Quatro da manhã. Levantei-me da cama às escuras e caminhei rápido e descalço até à cozinha. Abri a portada de uma das janelas e espreitei para fora. A montanha estava a arder!
Não. Não estava a arder. Aquilo não parecia um incêndio. Aquilo não era um incêndio. Era o quê? Luzes! Eram luzes! Muitas luzes a girar em torno da montanha. O que era aquilo?
A sirene dos bombeiros voltou a tocar. Mandei um pulo, assustado.
Via-se um comboio automóvel a subir a montanha e a dirigir-se para as luzes. Parou a meio. Talvez o medo. Medo do que seriam as luzes ao aproximarem-se delas. As luzes continuaram a voar à volta da montanha. Era vermelho, azul, verde, amarelo, laranja. Uma verdadeira orgia colorida. Havia tonalidades que não conseguia definir. Que cores eram aquelas? Acho que nunca tinha visto tais cores.
O comboio mantinha-se afastado. Estavam a criar uma espécie de acampamento. Acho que estavam a tentar perceber o que é que se estava a passar. E o que é que se estava a passar? Não sei. Não sei eu e não saberiam eles. Até porque, provavelmente, já não estarão vivos.
Ainda durou um par de horas, este bailado de luzes sobre a montanha e o acampamento a tentar fazer qualquer coisa, acho eu, mas sem fazer nada. Ainda vi chegar mais dois comboios de viaturas ao acampamento, mas nenhum a ir mais longe. Ficavam lá. Não sei se eram militares, proteção civil ou bombeiros. Mas ficavam lá, no acampamento.
Entretanto fui vestir-me. Bebi dois cafés expresso. Fui buscar a caçadeira. Carreguei-a. Acendi um cigarro. Abri a porta da rua, não sei muito bem para quê, talvez estivesse a pensar ir até ao acampamento, não sei, quando duas luzes, uma vermelha e uma verde, se afastaram daquele bailado e foram para cima do acampamento. As luzes giraram em volta do acampamento e o acampamento desapareceu. O meu corpo ficou rígido. Tremi. Tremi de medo. Tive dificuldade em engolir. O acampamento tinha desaparecido de vista. Já não havia luzes e, aparentemente, mesmo que o dia começasse já a nascer, eu não via nada do que teria sido o acampamento.
Voltei para casa e fechei a porta nas minhas costas. Larguei a beata no chão. Fiquei a olhar as montanhas através das janelas da cozinha. Corria de uma para outra. As luzes continuavam lá o seu bailado. Os bombeiros não voltaram a fazer soar mais a sirene.
Então as luzes saíram das montanhas e espalharam-se, indo cada uma para seu lado. Parecia o lançamento de fogo-de-artifício na noite de passagem de ano. Uma luz azul voou na direcção de minha casa. Eu larguei as janelas da cozinha e corri para dentro de casa, fiz o corredor e entrei no quarto, abri a porta do guarda-fatos e enfiei-me cá dentro.
Ainda cá estou. Não sei quanto tempo já passou. Já adormeci. Várias vezes. Tenho medo de sair. Tenho medo de saber o que é que se passa lá fora. Preciso ir à casa-de-banho. Tenho fome. Tenho vontade de fumar um cigarro. Como é que estarão as montanhas? E a aldeia? E o mundo? O que é que me espera fora do guarda-fatos? Preciso de ir buscar o telemóvel.

[escrito directamente no facebook em 2024/06/03]

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