Sou Eu, Não Percebes?

Estou há vários dias sem tomar os comprimidos. Já não tenho nenhum. Preciso de ir ao médico buscar uma receita. Mas não quero ir ao médico. De todas as formas, também não tenho dinheiro para levantar a receita. Vou ter de esperar. Sim, vou ter de esperar. Esperar para conseguir ir ao médico. Esperar voltar a ter dinheiro suficiente para os comprimidos. Esperar não me passar entretanto.
Estou deitado no sofá. O sofá é a minha outra cama. Desde que me levantei da cama que me deitei aqui. Levantei-me duas vezes para urinar. Numa delas aproveitei para beber água. Aproveitei e forcei-me a lavar os dentes. Não estava com vontade. Custou-me. Mas lavei-os.
Ainda não comi nada. Não comi nada o dia inteiro. Nem bebi café. Fumei cigarros. Foi a única coisa que fiz, fumar cigarros. Tenho estado aqui deitado. Já liguei a televisão umas dez vezes. Não aguento muito tempo com ela ligada. Mal a ligo, volto a desligá-la. Mais tarde esqueço-me e volto a ligá-la. Repete-se tudo. Ligo. Desligo. Ligo. Desligo.
Fiz um buraco na t-shirt. Um buraco feito com um borrão incandescente que tombou do cigarro. Tombou cobre o peito. Furou a t-shirt e queimou-me alguns pêlos do peito. Doeu-me mas não fiz nada. Sacudi a cinza, mas acho que não saiu nada. A cinza já se tinha infiltrado dentro da t-shirt, espalhada pelo meu corpo peludo e sujo. Também não tomei banho, hoje. Nem ontem. Não me apetece. Não me apetece fazer nada. Não me apetece trabalhar. Não me apetece ler livros. Não me apetece ouvir música. Não me apetece ver televisão. Não me apetece ver um filme. Não me apetece falar com ninguém. Não me apetece ir à praia. Não me apetece sair. Quero estar assim. Assim como estou. Um corpo quase-morto. Ninguém. Nada.
O peso do meu corpo vai talhando o sofá. Um baixo-relevo. Não me levanto. Afundo-me. Pareço cair dentro do sofá. Cada vez mais fundo. Não, não caio. Misturo-me. Sinto o meu corpo a espalhar-se pelo sofá, pelas almofadas, pelos braços, pelos pés do sofá. Vou entrando, caindo, misturando, aos poucos, um pouco de cada vez, parte por parte até ao todo, e deixo de ser eu e passo a ser nós, eu e o sofá, os dois que somos um. Um sítio fofo, pouco confortável porque estou a precisar de ser estofado. Mas ainda sirvo. Ainda alivio as costas, as dores nas pernas, o cansaço. Ainda sirvo como paliativo para as tristes vidas alheias. Embalo as neuras. Deita. Deita-te aqui. Deita-te em cima de mim. Sente-me o conforto. Garanto-te o encaixe perfeito. Moldo-me a ti. Anda. Vem daí.
Muitos dias. Muitas noites. Muito tempo de passagem entre então e agora. Toca a campainha. Sinto uma chave na porta. A porta abre-se. Alguém diz
Estás cá?
e percebo que é ela. Vem à minha procura. Estou aqui, digo-lhe, mas sei que não me ouve. Ouço-lhe os passos no corredor. Aparece à entrada da porta. Olha pela sala. Olha para mim. Não me vê. Ou vê-me? Ela avança em direcção a mim e senta-se. Liga a televisão. Coloca os pés para cima da mesa de apoio. E pergunta
Onde é que ele anda?
e ainda se queixa
As molas do sofá!
e quero dizer-lhe que não são as molas do sofá. Sou eu. Sou eu que estou excitado com ela sentada em cima de mim. Vá lá, ainda não perdi toda a libido.

[escrito directamente no facebook em 2024/06/21]

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