Não Me Lembro!…

Os olhinhos dela encovados. Mas muito vivos. Não, não eram olhos de medo. Com medo estava eu. Aqueles eram olhos de preocupação. Preocupados comigo. Ela dizia Tem calma. E eu tentava ter calma, mas era difícil ter calma.
A cama estava cheia de sangue. Quer dizer, não era um mar de sangue, não tinha havido ali nenhuma chacina. A almofada estava toda empapada. Sim, a almofada estava cheia de sangue. Ela tinha dormido ali a noite toda e a cabeça tinha empapado a almofada com o sangue. Eu afastei-a um pouco da almofada, ergui-a e olhei a parte de trás da cabeça. Estava ensanguentada. Talvez uma ferida, provavelmente. Não conseguia ver muito bem. Perguntei-lhe Caíste? E ela respondeu-me Não me lembro.
Não me lembro, era tudo o que me dizia.
O resto da cama não tinha sangue. Só a almofada onde pousara a cabeça. Depois descobri pedaços de sangue no lençol. Talvez das mãos. Ela tinha sangue nas mãos. Havia rastos de sangue na parede, no tampo da cómoda, na porta do guarda-vestidos.
Saí do quarto. A casa-de-banho estava toda molhada. Também havia sangue nas paredes de azulejo branco. A retrete tinha sangue. Descobri vários panos no cesto da roupa suja. Panos sujos com sangue. Como se ela se tivesse limpado aos panos. Além disso, a casa-de-banho estava quase toda inundada. Voltei ao quarto e disse-lhe A casa-de-banho está cheia de água! e ela respondeu-me Estava lá uma torneira ligada.
Voltei a sair do quarto. Fui à cozinha. Estava tudo em ordem. Não havia vestígios de sangue. Estava tudo arrumado. A louça lavada e a escorrer no lava-louça. Aliás, já estava seca, a louça. O fogão também estava limpo. Nada dentro do micro-ondas. Havia um pão congelado, a descongelar em cima da bancada, dentro de um prato.
Fui à sala. Também estava tudo arrumado e em ordem. O comando da televisão em cima da mesinha-de-apoio. A manta dobrada nas costas do sofá. Uma pequena pilha de roupa em cima da arca, à espera de ser passada a ferro. Depois vi uma mancha de sangue no canto do tapete. Perto da porta da varanda. Perto da cinta dos estores. Uma poça com bastante sangue. Mas não havia nada mais ali no entorno. Se caiu, não pode ter sido aqui, pensei. Por outro lado, pode ter sido exactamente aqui, voltei a pensar.
Inspirei muito, e muito fundo. Aguentei bastante o ar nos pulmões, como faço com o Trixeo, o meu novo medicamento para a bronquite. Dou uma bombada e aguento o ar nos pulmões por uns vinte segundos. Depois deito o ar fora. Fiz o mesmo. Expirei o ar. Deitei tudo fora. Fiquei vazio. Tão vazio que pareci desaparecer. Não desapareci.
Voltei ao quarto. Sentes-te bem? Perguntei. Sinto, respondeu. Eu tremia.
Agarrei no telemóvel e marquei o cento e doze.
O cento e doze tem uma conversa infindável, em português, inglês e espanhol. Depois há várias opções. Novamente em português, inglês e espanhol. Depois vem música. Depois vêm mais opções. Outra vez em português, inglês e espanhol. Mais música. Passaram vários minutos. Dei a volta a casa. Três vezes. À procura do que me tivesse escapado. Voltei ao quarto. Ela continuava deitada. Os olhos pequeninos, enfiados nos buracos fundos, muito despertos, muito atentos. Vivos. Ela olhou para mim e percebeu. E disse Tem calma! Ela é que me dizia a mim para ter calma. Ela é que estava com uma ferida aberta na cabeça, mas ela é que estava preocupada por eu estar preocupado. Não era com ela, a preocupação. Era comigo. Tem calma, dizia.
Finalmente, alguém atendeu lá do outro lado. Sim?

[escrito directamente no facebook em 2022/12/10]