O Barco Vai de Partida

Saio e volto a entrar.
Estou na cozinha, saio para o alpendre, coço a cabeça, e volto a entrar para a cozinha.
O que é que eu ia fazer?
Dou comigo vestido, vestido de fato e gravata, fato comprado de propósito há dez anos para um casamento que não chegou a acontecer, e não, não era o meu casamento, mas era o casamento de um amigo na época, amigo esse que não vejo precisamente desde esse não-casamento, o que será feito dele? e o fato, o único que alguma vez comprei, e que nunca mais usei, levo-o à lavandaria uma vez a cada seis meses, a tentar fazer durar uma peça de roupa que espero nunca mais ter de comprar, e dou comigo hoje, um dia normal, dia de semana, é dia de semana não é?, olho para o relógio no pulso esquerdo e vejo que são oito da manhã, oito horas da manhã, o dia nasceu solarengo, está quente, vai fazer bem mais calor a meio do dia, e eu estou aqui, no meio da cozinha, descobri-me lá fora e pronto para… Pronto para quê?
O que é que eu ia fazer?
Apalpo-me de cima abaixo e encontro um maço de cigarros no bolso exterior direito do casaco. Acendo um cigarro. Olho para a máquina de café com a luz verde ligada e pergunto-me
Já tomei café?
e não me lembro. Coloco outra cápsula na máquina e tiro outro café. Fumo o cigarro. Sento-me na mesa da cozinha com a chávena de café na mão, e esforço-me para tentar perceber o que é que tenho de fazer, onde é que tenho de ir.
Acabo o café. Acabo o cigarro. Largo a beata na chávena vazia. Suporto a cabeça com a mão. Não consigo fixar uma ideia. Não consigo pensar no que é que tenho para fazer.
Olho para baixo. Para mim. Olho-me de fato vestido. Fico elegante. Mas não confortável. Gosto de me sentir confortável.
Agarro no telemóvel. Vejo a agenda. Vejo se me falta alguma coisa. Se falhou algum alarme.
Levanto-me. Ando de um lado para o outro, às voltas na cozinha. Indeciso. Sem saber o que fazer. Coço a cabeça. Coço o cu.
Saio da cozinha. Vou ao quarto. Dispo-me. Visto-me. Troco o fato por umas calças de ganga e uma t-shirt ruça dos Ramones. Calço umas sapatilhas. Deixo o fato estendido em cima da cama.
Quando vou a sair do quarto, lembro-me. Lembro-me perfeitamente do que é tenho de fazer. Sinto cair-me o queixo. As pernas tremem-me. Amparo-me na ombreira da porta do quarto. Procuro os cigarros mas noto que ficaram no bolso do casaco em cima da cama. Viro-me para trás. Sento-me na cama. Procuro os cigarros no bolso do casaco e acendo um.
Respiro fundo.
E verbalizo
Tenho de apanhar o avião para dar entrada no Parlamento Europeu como deputado. Tenho de arranjar uma casa lá fora. Tenho de perceber o que é que tenho de fazer. Afinal, sou deputado europeu. Oh mãe! Onde é que me fui meter?
Volto ao quarto e mudo, outra vez, de roupa. E reparo, a um canto do quarto, uma pequena mala para levar comigo no avião.
E percebo que não quero ir para Bruxelas.

[escrito directamente no facebook em 2024/06/12]

Pequena Fábrica de Mentiras

Regresso a casa. Fecho a porta. Deito fora a chave. Abro a janela e mando a chave para a rua. Não olho para não saber onde cai. Não quero saber.
Estou fechado em casa. Antecipo-me aos técnicos, aos especialistas, ao estado. Fecho-me em casa sozinho sem esperar as ordens. Sem esperar a resolução dos sábios.
Sento-me na mesa da cozinha. Levanto a tampa do portátil. Ligo o browser. Entro na rede social. Faço scroll. O mesmo de sempre. Nada novo. Tudo velho. Sempre as mesmas coisas. Requentadas.
Acendo um cigarro.
Escrevo André Ventura foi um avençado de Ricardo Salgado, segundo investigação do JN;
Escrevo Tiago Mayan esconde a sua homossexualidade com casamento arranjado, diz o Correio da Manhã;
Escrevo Marcelo Rebelo de Sousa passou o Natal com mais de trinta pessoas no Palácio de Belém, avança o Expresso;
Escrevo Ana Gomes é amante de Rui Pinto, descobre uma investigação da Sábado;
Escrevo Marisa Matias encontrada em esquema fraudulento no Parlamento Europeu, escreve o DN;
Escrevo João Ferreira de férias na Coreia do Norte, numa investigação do Público;
Escrevo Tino de Rãs… Mas não me sai nada.
O que é que o Tino de Rãs podia ter feito que não devesse?
Acendo um novo cigarro no resto do outro. Apago o primeiro. Ando às voltas com o Tino. Não sei o que dizer. O que é que se pode dizer de alguém como o Tino de Rãs?
Vou buscar um copo de vinho. Vou à despensa. Procuro nas prateleiras. Atrás das mercearias. Atrás do papel-higiénico. Vou à sala. Procuro dentro dos móveis. Atrás dos livros. Vou até ao quarto. Abro o guarda-fatos e olho lá para dentro e digo O que é que ando aqui à procura?
Regresso à cozinha e vejo um copo vazio em cima da mesa, ao lado do computador. E digo Vinho! Não tenho vinho, foda-se!
Abro a janela da rua e olho para o quintal. Começou a chover. Não vejo a chave. Se sair pela janela, não vou conseguir voltar a entrar.
Se sair, não entro.
Se for, não volto.
Vou telefonar para a Uber Eats.
Não posso. Já não há Uber Eats na cidade desde que escrevi que a Uber Eats andava a prostituir menores juntamente com as entregas ao domicílio.
Oh, que porra! Como é que vou criar as notícias sem vinho? O que é que vou fazer ao Tino? Oh, pá!…

[escrito directamente no facebook em 2021/01/11]