Choques Eléctricos

A noite ilumina-se em golfadas. São relâmpagos de luz que trazem por instantes o dia à noite. Depois, atrasado, sempre atrasado, o trovão, mal-disposto, azedo, agressivo. Cai o céu, a casa e a cabeça explode em pedaços de merda espalhados pela cozinha.
Acendo um cigarro e chego-me à janela.
Em miúdo tinha medo da trovoada. Quando era mesmo pequenino, não já bebé, mas uma criança ainda com os dentes de leite, fugia para a cama dos meus pais. Não sei como fazia o trajecto, da minha cama, do meu quarto, através de uma casa às escuras, açoitada por chicotes de luz que previam o brutal arroto final, até à cama dos meus pais. Subia pelos fundos da cama, arrastava-me pelo meio deles, no vale entre os dois corpos adormecidos, enfiava-me dentro dos cobertores e agarrava-me à minha mãe. Ela acordava e perguntava-me
O que é que estás aqui a fazer?
e o meu pai resmungava, lá do sono dele
Deixa-o estar, coitadinho.
e lá dormia eu e eles, eu agarrado à minha mãe, a ferrar-lhe as unhas a cada nova investida sonora do deus Thor.
Depois os anos foram passando e a vontade de sair de casa era maior que o medo e o medo acabou por se perder e eu deixei de me importar com o mau tempo, os relâmpagos, as trovoadas e as chuvas diluvianas.
Agora, ao fim de todos estes anos que já transporto sobre os ombros, aprendi a gostar deste destilar zangado que nos vergasta como chicotes de luz e nos grita palavrões mal-humorados, às vezes carregados pelos ventos ciclónicos, que bem os ouço a assobiar enquanto passam à minha volta, a tentarem amedrontar-me, como se eu fosse o miúdo que já não sou, que nos querem arrancar da face da Terra.
Cai mais um relâmpago. As montanhas iluminam-se e a Terra parece o seu negativo. A imagem perdura cá dentro bem depois de já se ter ido embora. Puxo uma valente passa no cigarro enquanto aguardo o trovão. E ele não se demora muito. É como um solo de bateria a três tempos, com o amplificador no máximo, mas sem distorcer. A atmosfera em jeito de alta-fidelidade. Bem melhor que a aparelhagem que me restou para ouvir os vinis do século passado depois de ter perdido a Pioneer que os meus pais me deram na adolescência, numa casa qualquer por onde terei andado perdido durante alguns anos da minha vida.
Vou ao armário buscar a garrafa de Martha’s. Dou dois dedos num copo simples, liso e redondo. Volto para a janela. O exterior está escuro. Percebo os candeeiros de iluminação pública lá ao fundo, por detrás da chuvada, mas não iluminam quase nada deste negrume. Ou então sou eu que já estou habituado aos roucos gritos brancos que iluminam mal a noite.
Olha, mais um. Parece um choque eléctrico. Com vibração. Quase se diria uma animação da Feira de Maio, não se desse o caso de ser grátis, não estar confinado ao parque de estacionamento do estádio Dr. Magalhães Pessoa e assustar uma grande parte das pessoas, bem mais que a montanha-russa. Cá em casa, não. Cá em casa gostamos de trovoadas. Eu gosto de trovoadas. Não gosto? Gosto.
Há alguém que não goste? Se há, que se manifeste.
Mas ninguém se manifesta. Ou gostam realmente das trovoadas, ou não me querem contrariar. Percebo que talvez não me queiram contrariar.
Eu continuo aqui, em pé, junto à janela, a beber uma Martha’s, a acender o segundo cigarro, a ver os relâmpagos, a ouvir a trovoada e a imaginar que deve haver vidas mais interessantes que a minha, mas não são a mesma coisa. Não são, não. Ah, pois não.

[escrito directamente no facebook em 2024/06/07]

A Recta Entre a Praia da Vieira e São Pedro de Moel

Vinha a sair da Vieira e virei à direita para ir pela estrada Atlântica. Tinha ido matar saudades ao Coelho, na praia da Vieira. Fui comer um arroz de Marisco. A última vez que lá tinha ido, ainda tinha sido com os meus pais, há muitos anos, ainda o restaurante era só conhecido da gente local, e a praia da Vieira ainda não tinha entrado no mapa nacional através do arroz de Marisco como uma das Sete Maravilhas da Gastronomia de Portugal e eu nem sequer sabia que o nome do Coelho era, afinal, Solemar.
Agora é preciso marcar mesa com antecedência, mesmo para um tipo só, como eu. Marcar mesa para um é uma coisa estranha e, por vezes, revela-se um pouco mais complicado. que para um grupo. Mas a mesa estava marcada para a uma e meia e, à uma e meia, estava a sentar-me à mesa, uma mesa pequena, quadrada, junto à janela, cheia de wi-fi. Comecei com uma cerveja e um queijinho seco. Comi umas azeitonas embebidas em azeite e alho e polvilhadas de orégãos. Fui mexendo no telemóvel. Andei para cima e para baixo nas redes sociais. Nada de novo, nada de muito entusiasmante, as mesmas postagens de sempre, mudam as cores, mantém-se o vazio.
Um pouco antes do arroz de Marisco chegar, pedi uma garrafa de vinho verde. Veio num frapé cheio de gelo. A garrafa foi aberta à minha frente (o que eu me zango quando as garrafas, mesmo as de cerveja e, vejam lá, as garrafas de Água das Pedras, vêm abertas do balcão!). Deixei-a a esfriar enquanto despejava uma segunda imperial. Quando chegou o arroz de Marisco, num tacho de barro, a ferver, deixei-o ferver um pouco mais para acabar de cozer o arroz. Depois servi-me com o caldo ainda borbulhante. Deixei esfriar um pouco no prato, espalhando o arroz e o marisco. Camarões, lagosta, em grandes e carnudos pedaços, com a casca já quebrada para facilitar o acesso, mas, pelo sim, pelo não, material cirúrgico à mão para o que desse e viesse, ameijoa, berbigão. Normalmente não fazem arroz de Marisco para uma pessoa. Fui uma excepção. Eu, que já lá não ia, ainda o meu pai era vivo e o restaurante ainda não era uma estrela pop. Comi o tacho todo e despejei a garrafa. No fim arrotei. Satisfeito. Estava com a barriga inchada. Abri o primeiro botão das calças. Perguntaram-me se queria sobremesa. Eu ri e disse Só um café, se faz favor. Ah, e uma Martha’s e uma Água das Pedras natural. Bebi o café, a Água das Pedras e fui bebericando a aguardente, que repeti. Quando saí do restaurante, já a luz do dia estava baixa. Já era a hora do lanche mas nem podia pensar em comida. Tinha comido por toda a semana.
Cheguei ao carro, encostei-me ao capot e fumei um cigarro. Observei o vai-e-vem do turistame que voltou em força à Vieira. Enquanto o Pedrogão, ali ao lado, definha (está feio e abandonado, com muitas casas devolutas e a caírem), a Vieira recupera o bom andamento de antigamente, depois de alguns anos, também, muito maus.
Deitei fora o cigarro e entrei no carro. Suspirei. A barriga empeçava no volante. Disse Não devia ter comido tanto. Foi a puta da ganância. Pus o carro a trabalhar e saí da praia da Vieira. Na primeira rotunda pensei em voltar para casa passando por Monte Real, mas já lá dentro da rotunda, virei na primeira à direita e resolvi fazer a estrada Atlântica, que já não fazia também há muito tempo.
Estava cansado. O almoço que se tornou, também, lanche, caiu-me na fraqueza e deitou-me abaixo. A garrafa de verde também contribuiu para isso. E a aguardente, agravou. A luz caía agora muito rapidamente. À minha frente, a estrada Atlântica, que me levava da praia da Vieira até São Pedro de Moel. Uma recta de não-sei-quantos quilómetros (talvez uns dez quilómetros, mas talvez esteja a exagerar), uma recta enorme, onde não se passa nada, é ir sempre em frente, piloto-automático ligado, a tranquilidade e calmaria da estrada, pouco trânsito, o fim-de-tarde, a noite a chegar, o vinho verde, a aguardente, a barriga cheia, o cansaço, o cansaço, os olhos a fecharem-se e eu a esquecer-me de onde estava.
Tenho consciência dos olhos a fecharem-se, de eu deixar de estar a conduzir e estar… estar em qualquer outro lado a fazer outra coisa qualquer, talvez a dormir, já não sei, já não me lembro, estava a ir, tudo era suave, o mundo era tranquilo, a vida era bela, as mulheres lindíssimas e, de repente, uma buzinadela, não, várias buzinadelas, várias buzinas a apitar mesmo aos meus ouvidos e, depois, um baque surdo. Senti um safanão. Como se eu tivesse sido bloqueado. E parei.
Senti frio. E sede. Tinha a boca seca, empastelada. E havia um enorme silêncio.
Onde é que eu estou? Estou a perguntar, agora! Onde é que eu estou, agora! Já não estou a contar a estória. Agora, estou aqui, aqui onde sofri o safanão. E onde fui parado. Onde é que é aqui? O que é que aconteceu? Não vejo nada. Não sinto nada. Não sei o meu nome. Não sei quem sou. Não sei onde estou. Onde é que estou? O que é que aconteceu? Que raio me aconteceu?

[escrito directamente no facebook em 2023/12/16]

Uma Mobília de Jantar para Venda

Cá em casa, a sala de jantar e de estar são a mesma. De um lado a mesa de jantar, do outro os sofás, a televisão e o hi-fi. Em toda a volta, estantes cheias de livros, muitos deles por ler, alguns que nunca irei ler na vida, tenha lá eu quantos ainda tiver pela frente. Em frente às estantes, em frente aos livros, alguns quadros encostados, algumas fotografias emolduradas, à espera de um espaço na parede, o corredor não dá para tudo e a vontade de reorganizar a casa não é muita.
Olho para a mesa de jantar e pergunto-me porque que raio gastei dinheiro numa mesa e em quatro cadeiras que nunca, mas mesmo nunca, utilizei? Passo a maior parte do meu tempo na cozinha, como na cozinha, trabalho na cozinha, às vezes vejo filmes na cozinha, até já dormi na cozinha, em frente à salamandra, em noites calmas e frias de Inverno, agarrado a uma garrafa de Martha’s e embrulhado numa mantinha que a minha mãe me ofereceu há muitos anos e que nunca tinha utilizado, até agora.
Olho para a mesa de jantar, impecável, intocável, e pergunto-me para que é que quis ter uma mobília de jantar que nunca utilizei? Nunca vem ninguém cá a casa para oferecer este espaço. Só ela vem cá a casa e ela também gosta da cozinha, tal como eu.
Poderia colocar a mobília à venda na OLX. Mas não tenho sangue de vendedor. Ter que atender um estranho a falar-me de dinheiro; eu ter de falar de dinheiro com alguém que não conheço; ser vendedor de algo que não sei vender; atender alguém que teria de vir cá a casa buscar a mobília; ou teria de ser eu a levar a mobília para algum lugar; se calar teria de desmontar a mesa e embalar tudo, e proteger a mesa e as cadeiras, embrulhar tudo com plástico de bolhinhas que não sairão daqui de casa inteiras, todas rebentadas pelos meus dedos.
Posso perguntar, na aldeia, se alguém quer a mobília. Mas não me sentiria bem a pensar que alguém da aldeia estaria com algo que era meu. Nem sei se alguém aceitaria. As gentes da aldeia são muito orgulhosas. Assim como eu, mas mais ainda. E acho que não ia gostar.
Acendo um cigarro. Aproximo-me de mesa, passo-lhe a mão por cima e penso que não tem um risco; não tem uma queimadura de cigarro; não tem nada escrito; não tem nada entalhado. Tem algum pó. Está como o resto da casa. Viver no campo é acumular pó. Levanta-se uma aragem e, se as janelas estiverem abertas, entra o pó todo cá em casa. Não tenho paciência para as limpezas, especialmente onde não vivo. Na cozinha não há pó. No quarto também não. Muito menos da casa-de-banho. Mas o duche tem sempre gotas de água que nunca desaparecem por completo. Às vezes aparecem lá uma espécie de mosquitos, pretos, pequenos e gordos, asas redondas, que não fogem e deixam-se esmagar com o polegar. Às vezes levo o polegar à boca. Não sabem a nada.
Apago o cigarro no cinzeiro. Agarro uma das cadeiras, levanto-a no ar, e baixo-a com força sobre o tampo da mesa. Faz um estrondo. Ensurdecedor. A cadeira desfaz-se. Baixo-me sobre a mesa e volto a olhá-la. Agora tem uns arranhões. Há um lenho numa esquina. Mas de resto, está em perfeito estado. Parece usada. Já parece uma mesa usada. Uma mesa com vida. Tenho menos uma cadeira.

[escrito directamente no facebook em 2023/09/06]

Debaixo das Torres Eólicas Pratica-se o Amor

Na época em que vivia nos sofás dos amigos, saltitava de um para outro para não pesar demasiado em nenhum deles e ir distribuindo a minha má-disposição por diferentes famílias, costumava levar as namoradas até aos ermos das serras d’Aire e dos Candeeiros, debaixo das torres eólicas, ou nos penhascos sobre o mar, ali antes de chegar à Nazaré, ao longo da estrada Atlântica, também debaixo das enormes torres eólicas, sítios que sempre me fascinaram, as segundas com o mar como horizonte, as primeiras com o vale da N1 e, com bom tempo, a linha de mar muito à distância, num horizonte bem longínquo. Levava as namoradas para lá, para não as levar para os sofás dos amigos. E fodíamos dentro do carro, em arriscadas manobras acrobáticas, a tentar fugir à alavanca de velocidades e ao volante, que teimavam em espetar-se nas costelas e às vezes no cu, e ir lançando um olhar ou outro sobre os possíveis mirones, há sempre muitos mirones nestes sítios, nada que me preocupe, não me preocupa que me vejam a foder, mas o medo eram as estórias de grupos de malta que atacavam os casalinhos em acções mais ou menos pornográficas e violavam-nos, com requintes de malvadez, sempre com o outro elemento do casal a assistir. Às vezes as coisas acabavam mal. Havia estórias dessas. Estórias terríveis que me abstenho aqui de contar porque me dão vómitos, tal o grau escatológico e perturbado de quem fazia o que se contava.
Então, uma tarde, era uma tarde de Domingo, estava com uma namorada num desses pontos na serra d’Aire e dos Candeeiros, tinha parado numa zona em que dava para ver bem o caminho de acesso automóvel até onde estávamos, e estávamos bem engalfinhados, tínhamos tido um excelente almoço de cabrito assado no forno a lenha com grelos de couve e batatinhas, num restaurante bastante conhecido na zona das Cortes, já tínhamos digerido tudo com um copo de Martha’s cada um, fumado dois cigarros antes de chegar à serra e outro depois, debaixo da torre eólica, eu tinha-me sentado no capot do carro a fumar e ela acabou por se sentar em cima de mim, a beijar-me o pescoço e a enfiar a língua molhada na minha orelha, acabando por me excitar e levar para dentro do carro, já nem nos preocupávamos com a segurança e a vigilância do caminho, queríamos era saber de nós e do nosso desejo, das nossas mãos ocupadas em chegar aos sítios onde iríamos levar as línguas viperinas e as bocas ávidas, ardentes de sexo, quando sentimos alguém a bater no vidro do carro, nós os dois virámos o olhar em conjunto para a janela de onde tinha vindo o barulho e descobrimos dois tipos a sorrir para nós, um deles com um cajado feito de talo de couve portuguesa nas mãos, e perdemos a tesão, eu saí de dentro dela, puxei as calças para cima enquanto trancava o carro e fechava os vidros das janelas que tinham umas pequenas frinchas para deixar entrar o ar fresco que nos renovava o oxigénio consumido em barda por uma respiração ofegante, e ela puxava as cuecas para cima e a saia para baixo, eu girei as chaves do carro, o motor ligou, o tipo com o talo de couve nas mãos mandou um golpe violento na janela lateral, a janela do meu lado, estilhaçou-a precisamente no mesmo momento em que carreguei prego a fundo, senti o carro a patinar na terra batida do caminho, depois a ganhar aderência, sair dali disparado como uma bala e levar um dos gajo à frente, pendurado no capot do carro até à primeira curva, onde eu me ia espetando numa árvore, uma árvore qualquer que nem consegui perceber que árvore era, e o tipo foi projectado para longe, vi-o voar como um Super-Homem sem capa nem capacidade de voar, e desaparecer da nossa vista, preocupados que estávamos em fugir, eu nem senti os pequenos estilhaços de vidro que se espetaram em mim, e só parámos quando chegámos a Porto de Mós e descobrimos um café aberto ao Domingo, onde parámos para beber, primeiro dois copos de água com açúcar e, logo de pois, dois whiskeys sem gelo que vomitámos logo de seguida quando nos apercebemos que era Vat 69, uma mixórdia horrível que nem nos meus piores momentos da adolescência, me permiti beber.
Acalmámos, ela tirou-me os vidros da cara e acabámos por voltar para Leiria. Eu levei-a a casa e nunca mais lá fui buscá-la porque ela nunca mais quis sair comigo. E eu ainda demorei algum tempo antes de voltar a um desses sítios com outra namorada. E a primeira vez que lá regressei, depois disto tudo, já tinha casa onde vivia sozinho e onde podia levar quem eu quisesse.
E dessa vez que lá regressei, fui com uma chave inglesa no porta-luvas, não fosse o Diabo tecê-las. Mas não as teceu. Nunca mais as teceu. Houve dias em que eu estava tão furioso que rezei para que o diabo as tecesse. Mas ele nunca o permitiu. Foi a minha sorte. Ou a dele. Do Diabo.

[escrito directamente no facebook em 2023/05/22]

Quem Escreveu o Texto?

Ela foi à praia. Eu fiquei em casa. Ela precisava de sair. Ver pessoas, ouvir barulho e cheirar os gases tóxicos do combustível automóvel em passerelle pela marginal da Nazaré. Eu também precisava, mas não fui capaz. Imaginei muitas pessoas hoje na praia, todas com vontade de apanhar sol, comer um gelado na Gelatomania e aguentar uma hora na fila, em pé, a destilar na rua (a Conchanata fechou), beber uma cerveja no Ti Ezelino quando há mesa, o que é difícil de acontecer ou arranjar espaço na mini-esplanada do Santo para comer uns berbigões à espanhola, esperar horas no passeio em frente e desistir momentos antes de vagar uma mesa.
Eu fiquei em casa. Ela foi à praia. Eu fiquei para escrever uns textos. Não escrevi nenhum. Agarrei num livro, e nem comecei a ler. Fumei um cigarro, bebi um Martha’s e adormeci, sentado no alpendre, com o cão deitado aos meus pés. Ela esteve hora e meia para chegar à marginal, viu o mamarracho que já plantaram lá na praia, o estádio de futebol de praia, mesmo no meio de uma praia pequena, a tapar a vista do mar a quem circula pelo calçadão ou se senta numa das esplanadas que por lá há. Porque é que não vão para a praia da Figueira? Estacionou o carro num campo de batatas. Já que lá estava, ia dar uma volta e comer uma sardinha na Batel.
Quando regressou, trouxe-me uma. Chegou já era noite. Demorou outra hora e meia para sair. Eu ainda estava a dormir, no alpendre. Ela acordou-me. Eu acordei cheio de frio. E disse-lhe Estou com frio. Ela pôs-me a mão na testa. Estava quente. Foi buscar o termómetro. Trinta e oito graus. Fez um chá de limão. Deu-me uns comprimidos e disse-me Vai para a cama. E eu fui. Sentia-me cansado. Doíam-me os olhos. Deitei-me, fechei os olhos e devo ter adormecido.
Acordei às dez da noite. Ela acordou-me. Ia dar o programa do RAP. Arrastei-me até à sala. Acabei por não ver nada do programa. Batia os dentes, os pés no chão, puxava a mantinha para cima de mim. Não me conseguia concentrar e, quando dei por isso, já tinha acabado. Ela tinha feito uma omeleta com cogumelos e couve-chinesa e eu depeniquei um bocado. Deu-me um copo de vinho e eu nem lhe toquei.
Eu disse: Vou voltar para a cama.
Ela disse: Sim. Vai.
Eu disse: Preciso de escrever o texto.
Ela disse: Eu escrevo-o por ti.
Eu disse: Não pode ser. É um texto muito pessoal.
Ela disse: Eu conheço-te melhor que tu próprio.
Eu estava cansado e disse: Está bem. Mas não pedes dizer a ninguém. Ninguém pode saber que foste tu que escreveste o texto.
Ela disse: Não digo a ninguém.
Eu perguntei: Vais falar de quê?
Ela disse: Que fui à praia.
Eu disse: Mas não és tu, sou eu. Eu fiquei em casa.
Ela disse: Tens razão. Ela foi à praia. Eu fiquei em casa.
Eu disse: Está bem.
Ela levou-me até ao quarto. Eu deitei-me na cama. Ela deu-me um beijo na cara. Eu fechei os olhos e ouvi-a ir-se embora. E foi-se embora para um sítio distante, tão distante que fiquei a ouvi-la ir-se embora durante muito tempo, até adormecer.

[escrito directamente no facebook em 2023/04/16]

Só Estamos Bem a Fazer Mal

Eu fico em casa. Ela sai. É Sábado e as pessoas saem de casa para se irem divertir. Ela sai. Eu fico. Não me sei divertir.
Ela passa a semana inteira num trabalho intenso. Ao fim-de-semana precisa de se distrair. Ao Sábado à noite vai jantar fora com os amigos. E beber uns copos. Eu fico em casa. Também tenho uma semana intensa, mas solitária. Não vejo ninguém. Ninguém para além dela. Não vejo ninguém e quanto menos gente vejo, menos tenho vontade de ver. Já não tenho amigos. Larguei-os todos ao longo do caminho. Pesavam demais. Agora falta-me lastro. Paciência.
Ela sai de casa e vai jantar com os amigos. Eu, o mais longe que me aventuro é o alpendre. Sento-me lá a fumar um cigarro e a pensar nestas merdas todas para tentar perceber se faz algum sentido, e irei chegar à conclusão que não faz sentido nenhum mas não irá servir de nada porque eu sou como a Gabriela, a do cravo e canela, Eu nasci assim, eu cresci assim, e sou mesmo assim, vou ser sempre assim. Enquanto ela conversa com amigos, e come um combinado de sushi e bebe saké aquecido, para começo de noite, depois irá passar por outros odores, talvez dar uma perninha de dança numa discoteca resistente dos anos dourados da vontade de dançar, talvez fumar um charro, vomitar os sapatos e voltar para casa de táxi porque não irá estar em condições de conduzir, eu vou ficar por aqui, bebo uns copos de Martha’s, aprecio o sabor a madeira queimada e dou cabo de um maço de cigarros enquanto o diabo esfrega um olho e eu tento ver as montanhas lá ao fundo mas não vou conseguir ver nada porque é noite, está escuro e eu estou a ver cada vez pior.
E é então que desfila à minha frente a vida como ela está agora, neste preciso instante: a guerra, os restos da pandemia, a inflação, a subida dos juros, a subida dos preços, o insuportável peso da renda da casa, o sobe-e-desce histérico dos combustíveis que parece o carrossel da Feira de Maio, a estagnação salarial e a sua perda de valor real, a desvalorização do trabalho, a falência de bancos, a antecâmara de uma nova crise financeira e económica, a intervenção dos governos, a morte do SNS e da escola pública, a falta de trabalho, a fome e…
Irei sentir um calafrio pelas costas, beber o que restar de Martha’s no copo, apagar o cigarro no chão e correr para a cama e enfiar-me lá dentro, cheio de medo. Sei que será assim porque tem sido assim. Eu já não saio de casa para não confrontar o medo e ele acaba por vir ter comigo. Vem sempre ter comigo. Gostava mais de ser como ela, sair de casa e ir divertir-me que pode ser o meu último dia, o último momento de vida na Terra, e deveria fazer uma saída em grande, mas afinal encolho-me e deito-me em posição fetal, na cama, debaixo do edredão, à espera de regressar a de onde nunca devia ter saído. Nós não estamos preparados para nós próprios. Somos uns seres estranhíssimos que só estamos bem a fazer mal.
Irei ouvir a chave a entrar na fechadura e abrir a porta da rua, os passos dela pelo corredor, os sons dela a despir-se, mas eu não irei fazer nada, não irei dizer nada, irei fingir-me de morto porque, afinal, pode não ser ela.

[escrito directamente no facebook em 2023/03/18]

A Minha Vida É um Suspiro

Já passa da meia-noite. É quase uma da manhã. Outro dia. Falhei ao meu compromisso diário. Mas estou aqui para o cumprir. Antes tarde que nunca.
Cheguei a casa já passava da meia-noite. Custou-me meter o carro na garagem. Acho que raspei no pilar ao entrar com o carro. Mais uma pequena mossa. Não devia ter saído. Devia ter ficado por casa. Calmo. Tranquilo. Sozinho. Mas não. Vou atrás do canto da sereia. Que preciso de companhia; que preciso de ver gente; que preciso de falar; que preciso de estar com pessoas; que preciso de discutir filmes e livros; que preciso de interacção com os outros; que preciso de uma gaja, foi o que me disseram Precisas de uma gaja. Está bem! disse eu.
Vieram buscar-me a casa para garantir que eu ia. Mas levei o meu carro. Gosto de estar autónomo. Chegámos e arrependi-me logo. Casa cheia. Muita gente na mesma mesa que eu. Conversas em barda e a subir de tom. O som confundia-me e tive vertigens. O álcool corria ligeiro e havia gente um pouco alterada. Depois lá acabei por comer um bife, um bife enorme e muito mal-passado, miguei-lhe uma malagueta, e acabei por acalmar. Há muito tempo que não comia um bife assim, grande e suculento. Tenho andado em volta de comida vegetariana. Isso e frango assado. Tenho uma dieta muito peculiar. Estava mesmo a apetecer-me um bife. E assim foi. E soube-me maravilhosamente bem. Aguentei mais umas horas. Despejei os restos das garrafas de vinho pousadas na mesa. Comi uma sobremesa que continha uma bola de gelado de limão com raspas de lima e carpaccio de ananás e mascarpone e bebi uma aguardente Martha’s. Alheei-me do barulho alheio. Fiquei sorridente e sorri a toda a gente. No fim, quando todos resolveram ir ao bowling, eu vim para casa. Fiz bem toda a estrada, embora estivesse bastante cansado, mas rocei no pilar ao entrar na garagem. Fiquei logo desvairado. Nem conheci nenhum gaja. E disse Não devia ter ido ao jantar.
Entrei em casa e pensei em cumprir com as minhas obrigações. Acendi um cigarro e sentei-me frente ao computador. Estalei os dedos. Acabei com o cigarro. Comecei a escrever, mas não sei o que escrevi. Adormeci. Mas não perdi consciência. Senti-me sair de mim e vi-me lá em baixo, caído no chão, a dormir. Ressonava alto. Estava com frio. Agarrava-me e tentava aquecer-me em mim.
Batem à porta. Acordo. Acordo a pensar que estão a bater à porta. E ouço uma mão fechada em punho a bater à porta. Não faço barulho. Não estou em casa. Estou no bowling com os outros. Insistem. Eu faço-me de morto. Depois cansam-se e vão-se embora. Eu respiro de alívio. E tento voltar a adormecer. E então vomito. Vomito sobre o tapete da sala. Mas quase não tenho consciência disso, E fico aqui, assim, ao lado do vomitado, mas sem vontade de me mexer, à espera que alguma coisa acontecesse. Mas não me apercebo de nada. Levanto-me e vou até à cama. Deito-me. Deito-me e suspiro. A minha vida está para suspiros.

[escrito directamente no facebook em 2023/01/20]

Céu Amarelo

O céu está amarelo. Amarelo vivo. Fico sempre à espera de uma invasão alienígena. Ponho-me a olhar para cima a ver se os vejo. Quero estar preparado para quando chegarem. Se aparecer agora aí um deles, tenho tempo para correr até ao guarda-roupa e agarrar na caçadeira que lá está à espera, dois cartuchos prontos a receber bem quem vier por mal.
O céu está amarelo, uma coisa assim pastel, não sei porquê. E não aparece nenhuma nave espacial, nenhum alien, nada. Porque raio está o céu amarelo?
Não há sol, já é fim-de-dia, mas ainda há luz do dia. Uma luz amarelada, reflexo daquele amarelo no céu que não sei de onde é que terá vindo. Também não chove. Não está frio. Também não está calor. E não é Carnaval.
Que estranho, falar de uma coisa por aquilo que ela não é em vez de falar dela por aquilo que ela é.
Tenho esta obsessão por alienígenas não sei porquê. Já vem da adolescência e de toda aquela leitura de livros da Europa-América de continentes perdidos, povos que vieram do espaço e lembranças de vidas passadas. Um dia houve alguém que me disse que eu devia ter morrido afogado numa vida anterior por hoje ter bronquite. Eu fartei-me de rir, até porque sou um nadador razoável. Mas, às vezes, dou comigo a pensar nisso, no que ela me disse. Outra vez outro alguém ao ver as linhas da minha mão disse que eu ia ter uma vida de merda. A verdade é que não tem andado longe da verdade. Penso muito nisso, também. Depois bebo uns copos de Martha’s e isso passa.
Desses anos trouxe comigo alguns mistérios por resolver. Afinal, onde era a Atlântida? Segundo Platão, haveria de ser num resto do Mediterrâneo, para além das Colunas de Gibraltar, antes de entrar no Atlântico. E Mú? Sempre terá existido, esse continente, lá mais para o sul? E o que é que a Ilha da Páscoa tem a ver com isso? E sempre eram os deuses astronautas? E andaram por terras Incas e Aztecas? E os Maias? Porque raio andaram a construir pirâmides na selva e a sacrificarem jovens virgens? E os OVNI? Existem realmente visitas de seres de outros planetas ou são objectos voadores chineses? Só mistérios que me ocuparam a cabeça na adolescência e que, de vez em quando, regressam e massacram-me na minha ignorância. Continuo sem respostas. Às vezes procuro esses livros que li na adolescência, mas desapareceram quase todos. Já ninguém quer saber. De vez em quando recuperam Nostradamus e as suas profecias, mas é a única coisa que volta ciclicamente quando há grandes crises. Eu fumo um charro e a conversa comigo próprio agudiza-se. E já agora, porque é que o céu está amarelo?
Sim, porque é que o céu está amarelo? Porque é que continua amarelo? E não é um céu em fogo. É mesmo amarelo, amarelo gelatina de ananás. O céu coberto de nuvens e as nuvens estão amarelas. O céu parece uma papa Nestum com Mel, coisa que sempre odiei. E agora que falo nisso, sinto aquele cheiro adocicado do Nestum e chega-me um vómito à garganta. Sou muito sensível. Engulo o vómito e fico mais enjoado.
Volto para casa e vou para a sala. Coloco The White Heat de Raoul Walsh no leitor de DVD. Preciso de algo real e concreto na minha vida. E nada melhor que um film noir de Raoul Walsh. Aqui não há céus amarelos nem alienígenas. Só os bons e velhos bandidos simpáticos, anti-heróis do nosso contentamento, cujas vidas terminam (quase) sempre mal. Mesmo que no topo do mundo: Hey Ma, I’m in the Top of the World!

[escrito directamente no facebook em 2022/10/22]