Vladivostok?

Há dias assim. Dias em que não quero fazer nada. Dias em que não me quero sentar em frente ao computador e escrever, escrever textos, pequenos textos de estórias, algumas reais, outras ficção, que me marcam os dias e querem sair cá para fora, mas não fazem nada para isso, sou eu que tenho de dar ao litro, sou eu que tenho de esgravatar o dicionário, seguir a gramática, preocupar-me com a sintaxe, esticar os dedos e escrever, escrever segundo alguma lógica, coisa que às vezes se perde quando eu me perco no excesso de odores etílicos ou tardes perdidas a fazer o que não devo ou que acham que não devo e faço orelhas moucas às regras obtusas de quem nunca teve uma flatulência na vida. Enfim…
Há tanta coisa que poderia estar a fazer agora: a ver o europeu (na verdade tenho um olho no empate entre Inglaterra e a Eslovénia); a ver um filme; a jantar no Liz Bar; a passear na Nazaré; a ver as pessoas às compras no Continente; a fazer amor com algum amor. Mas escusam de se perderem em ilusões sobre a minha fantástica vida. Estou sentado à mesa da cozinha, como é normal, a bater um texto em que me queixo de ter que escrever um texto quando me apetecia estar a fazer outra coisa, outra coisa por mais simples e banal e estúpida que fosse, como estar a comer um palmier recheado aos bocados e terminar a chupar os dedos cheios de doce de pasteleiro.
Agora, a meio do texto, da estória, poderia ser o momento em que os mísseis nucleares russos chegavam aqui à serra, ou descia por lá um Objecto Voador Não Identificado, que acabaria por tentar destruir-me a casa e a mim próprio, enquanto eu iria empunhar a caçadeira que tenho no fundo do guarda-roupa, como se pudesse lutar contra seres alienígenas com uma caçadeira, ou teria um acidente de mota nas curvas ali mais em cima, a caminho da praia, ou acabaria por cair de alguma falésia, ser engolido pelo mar e levar toda a gente a chorar o meu destino depois de terem ignorado a minha ausência. Mas nada disso vai acontecer porque nada disso acontece. A minha vida é uma existência do mais pobre e banal que se possa imaginar. Não acontece nada. Nada de nada. Ninguém janta nem ninguém morre. Ninguém aparece. A campainha de casa nunca toca. Nem o telemóvel vibra. Não há nenhum acontecimento relevantezinho. Aqui na aldeia, o tempo parou, parou num vácuo, onde não há nada, não há inteligência nem sequer seres-vivos. Há uma bolha de espaço e tempo onde se vive um Truman Show, com tartes cheirosas à janela, roupa estendida ao vento e gente assexuada.
(suspiro)
Acendo um cigarro (a minha única companhia que nunca me abandona, pelo menos enquanto o café da aldeia não deixar de vender tabaco). Bebo um copo de vinho tinto do pacote (cada vez gosto mais do vinho de pacote) e passo os olhos pelos canais televisivos. São as mesmas caras de sempre. Os mesmos pensamentos de sempre. Os mesmos comentários de sempre. Parece que voltei aos anos setenta sem a loucura que foram os anos setenta. Talvez fossem os anos oitenta, mas os anos oitenta foram bons, muito bons, pelo menos os meus. Não, queria dizer era os anos noventa. Parece que voltei aos anos noventa, os anos do nu-metal (há lá coisa mais horrível na vida de alguém?), e não consigo sair de lá! Ou daqui! Ou das ilhas, ou das ilhas Faroé! De Faro ou das ilhas Faroé!*
há dias assim / dias d’alma vaga / tão perto de deus / tão longe de mim**

* roubado ao rui reininho
** roubado aos rádio macau

[escrito directamente no facebook em 2024/06/25]

Interrupção

O fim do dia pariu um novo governo com cheiro a velho. Há gente que vem do tempo da Troika. A maior parte deles, nem sequer os conheço de nome. Para mim, são anónimos escolhidos para me levarem até ao futuro. Ouvindo os comentadores da SIC Notícias, pouco parciais, estou em boas mãos.
É disto que tenho medo.
Há dias que se falava neste nascimento. Agora que nasceu, embora os canais noticiosos gastem horas da vida a discutir estes nomes, os currículos, a gritar loas às escolhas bem acertadas, embora alguém diga que foram todos recrutados dentro de casa, dentro do partido, apparatchiks, e outros lembraram que, para um governo a prazo, não está nada mau. Nem dentro da área ideológica se acredita no sucesso deste governo.
Adiante.
É Quinta-feira, véspera de feriado, portanto, na prática, funciona como uma Sexta-feira, são horas de jantar e é o que vou fazer. Jantar. Estou com fome.
Abro o frigorífico e olho lá para dentro. Nada. Nem restos. Umas azeitonas. Metade de um pimento já a ameaçar bolor. Duas cenouras. Fecho o frigorífico. Abro o congelador. Não sei o que venho à procura no congelador. Não tenho cá nada, pois não? Ah, espera! Uma garrafa de vodka. Tiro a garrafa. Faço um shot e bebo-o de um gole. Repito a acção. Abano a cabeça. Volto a guardar a garrafa no congelador.
Viro-me para a cozinha. Decido. Tenho fome. Vou jantar fora. Está a apetecer-me carne. Vou comer um bife na frigideira no Liz Bar, a Leiria.
Visto um casaco (está frio). Agarro na carteira, nos cigarros, no isqueiro e nas chaves de casa e do carro. Saio de casa. Entro no carro. Desço a alameda e saio pelo portão. Entro na estrada. Continua a chover. Não se vê muito bem. É de noite e chove. Chove que Deus a dá.
Contorno a aldeia e sigo em direcção à auto-estrada. Tenho fome. Está mau tempo. Quero chegar mais depressa e seguro à cidade.
Ligo o rádio. Estão a discutir os nomes do governo. Toda a gente sabe tudo. E toda a gente exprime a sua sabedoria. Os que acham os nomes seguros para um governo de combate. Os que acham os nomes de refugo para um governo morto à partida. Eu? Eu mudo de estação e ponho-me a ouvir música na Antena Três. Não podemos fugir à política. Tudo na nossa vida é político. Mas há altura em que a música faz maravilhas e nos leva para além da realidade e deste destino triste que toma conta dos nossos dias, sejam lá quais forem os nomes que me estão a balizar o futuro.
Se eu fosse religioso, diria que o futuro, a Deus pertence. Como não sou, e como nem eu próprio tenho essa capacidade, de definir o meu futuro, por mais que até o quisesse, olha, que se foda! São só mais uns nomes. Agora são estes, já foram outros, hão-de vir a ser ainda outros, uns serão bons, como já foram, outros não, como também não terão sido.
Agora não vejo mesmo nada. Desligo o rádio para me concentrar na estrada. Ligo os faróis de nevoeiro não obstante não estar nevoeiro. Mas a chuva é tanta que dificulta a visão. Vou com os faróis de nevoeiro, mesmo que não veja luzes atrás de mim, nem à minha frente. Vou atento, a saborear o bife que irei comer no Liz Bar.
E é então que vejo um clarão de luz à minha frente. Do nada, um clarão de luz. Como se acendessem uns faróis em cima de mim. Fico cego por momentos. Sigo com o carro em frente mas não vejo nada. E depois, o choque. Um choque brutal, frente contra frente. O outro carro vinha em contra-mão. Chocámos de frente. Eu sou projectado do carro e vou a voar pelo ar antes de cair em peso no asfalto e deslizar pela estrada fora e ser parado, à bruta, pelos rails de protecção. Sinto o baque nas costas.
Páro.
Está silêncio.
vejo luzes coloridas vermelhas e azuis alguém debruça-se sobre mim mãe?! salivo pelo bife na frigideira do liz bar temos um novo governo mas já parece velho mais do mesmo fumo um cigarro não não é um cigarro é um charro rio-me espreguiço-me vejo as estrelas no céu já não está a chover? preciso de fazer a barba comprar comida tenho o frigorífico vazio os gatos? e o cão? não os vejo há algum tempo voo sobre áfrica em direcção a moçambique e assisto a uma tempestade por baixo de mim vejo os relâmpagos a iluminarem o céu escuro por baixo de mim que horas são? não sei as horas o meu relógio? o telemóvel? a unilever quer acabar com os gelados olá agora que já se comem gelados ao longo do ano eu gostava muito dos de laranja gelados de gelo frescos espero que os tipos da unilever tenham juízo tenho comichão no cotovelo mas não consigo coçar porque não consigo coçar olha o mediterrâneo mergulho num mar sem ondas é bom para estar deitado em cima de um colchão de borracha e deixar o sol queimar-me a pele já não me queimo assim desde que era miúdo já não vou à praia há muito anos ainda bem que estou agora aqui e onde é aqui? estou onde? o meu computador? queria escrever umas ideias que tive ela beija-me e eu gosto do beijo dela por cima de nós a via láctea estou num terraço num terraço onde onde estou? ela olha-me e sorri

[escrito directamente no facebook em 2024/03/28]

Peço Desculpa

Eu morri numa Quarta-feira, entre as vinte e duas horas e a meia-noite. Não conseguiram especificar a hora exacta da morte. Os comprimidos fizeram-me adormecer, primeiro. Depois é que morri. Foi difícil encontrar o momento exacto da passagem de um estado a outro.
Foi ela quem me encontrou. Eu estava sentado à mesa da cozinha. À minha frente quatro copos, três deles vazios, o quarto cheio de vodka, e comprimidos desfeitos num almofariz encontrado na bancada ao lado do lava-loiça. Já não consegui beber o quarto copo, chegaram à conclusão. E é verdade.
Passei a tarde a desfazer comprimidos no almofariz.
Ao final da tarde, saí para comer um meio-bife na frigideira, no Liz Bar. Bebi duas imperiais a acompanhar o meio-bife. No fim, voltei para casa.
Fui ao armário dos copos e apanhei quatro copos. Achava que quatro copos eram suficientes. Afinal, bastaram três. Despejei vodka nos quatro copos. Depois dividi pelos quatro copos de vodka o pó dos comprimidos desfeitos no almofariz.
Sentei-me à mesa da cozinha com os copos à frente. Hesitei. Chorei. Pensei muito. Tive dúvidas. Tive medo. Levantei-me. Dei várias voltas pela casa. Cheguei a agarrar nas chaves de casa e colocar a mão na maçaneta da porta da rua, mas acabei por não sair.
Olhei para o telemóvel. Procurei o telefone dela. Estive tentado a ligar-lhe. Não cheguei a fazê-lo. Desliguei o telemóvel.
Senti um arrepio nas costas. Não era de frio.
A barriga começou a andar às voltas. Levantei-me e corri para a casa-de-banho. Abri a tampa da retrete e só tive tempo de lá enfiar a cabeça. Vomitei. Vomitei o jantar. Depois cuspi uma pasta verde. Baixei as calças e sentei-me na retrete. Fiquei por lá o tempo suficiente até ter as pernas dormentes. Levantei-me. Levantei-me com cuidado até recuperar a sensibilidade nas pernas. Lavei os dentes. Voltei para a cozinha.
Sentei-me à mesa da cozinha. Suspirei fundo. Agarrei no primeiro copo e bebi-o de uma vez. Gostava de vodka, mas aquele tinha um saber empastelado. Devia ser dos comprimidos. Demasiados por copo, talvez. Levei o segundo à boca e virei-o também de uma vez. A garganta ardeu. A cabeça cambaleou. Talvez tenha tido uma tontura. Talvez fosse do álcool bebido em velocidade. Os olhos queriam fechar-se. Agarrei no terceiro copo e dei-lhe o mesmo destino. Talvez mais devagar. Mas bebi-o também de uma vez. Já não fui a tempo de beber o quarto copo. Adormeci. Ou, pelo menos, perdi os sentidos.
As horas passaram. Eu morri.
Na Quinta-feira, por volta das dezoito horas, ela entrou em minha casa. Ela tinha uma chave de casa. Estava desde a véspera a tentar ligar-me. O meu telemóvel estava desligado. No fim do trabalho, passou lá por casa para ver se tinha acontecido alguma coisa. E tinha. Quando entrou na cozinha, viu-me sentado à mesa, muito direito, muito quieto, como se estivesse a dormir. Chamou por mim. Chamou por mim duas ou três vezes cada uma delas num tom de voz mais elevado. Depois aproximou-se de mim e abanou-me. Eu não reagi. Abanou-me com mais força, cada vez com mais força, estava a ficar nervosa, abanou-me com mais força que até me empurrou e eu caí no chão. Caí no chão e não reagi. Ela começou a chorar. Colocou os dedos no meu pescoço. Telefonou para o INEM.
Enquanto esperava o INEM, viu uma carta em cima da mesa, encostada à fruteira vazia. Agarrou na carta. Estava aberta. Reparou nos copos. Nos vazios e no cheio. Cheirou o copo cheio e não lhe cheirou a nada. Não mexeu. Tirou o papel de dentro do envelope e leu-o. Desfez-se. Caiu para o chão a chorar, e enrolou-se nela própria.
Quando chegou o INEM, encontrou-a lavada em lágrimas, sem forças e sem conseguir falar. Eles confirmaram o que ela já sabia. Mais tarde o médico legista haveria de dizer que eu tinha morrido entre as dez e a meia-noite de Quarta-feira.
Foi quando a polícia chegou que ela lhes entregou a carta e lhes disse que a tinha aberto e lido. E eles também leram
Peço desculpa,
a ela que foi a melhor coisa que me aconteceu na vida;
aos meus filhos de quem nunca fui pai;
à minha mãe a quem nunca paguei tudo o que fez por mim.
Talvez nos encontremos noutra vida…

[escrito directamente no facebook em 2023/07/21]

Dias de Penúria

A pensão estava infestada de baratas. Baratas e outros bicharocos que nem sei o nome. O colchão tinha percevejos. Sentia-os durante a noite. A passearem-se por cima de mim. A agarrarem-se ao meu corpo e a chuparem-me o sangue.
Depois de ter ficado sem trabalho, fiquei sem casa. Sem trabalho, sem casa, sem mulher. Dormi duas noites ao relento e foi uma merda. Primeiro porque não dormi. Quem consegue dormir ao ouvir o respirar da cidade? ao ter medo de ser atacado? com o céu como telhado?
Arranjei uma pensão que ainda não era Alojamento Local. Depois percebi porquê. A família de baratas era imensa. As duas primeiras noites não preguei olho. Passei-as sentado na cama. Em cima dos lençóis que talvez já tivessem sido brancos. O candeeiro no chão do quarto para afastar as baratas da cama. E para as ver. Elas viam-se bem. Eram grandes. Pareciam ratos. Ou se calhar eram ratos que pareciam baratas. Via-as a correr ao longo dos rodapés das paredes. Depois enfiavam-se em qualquer lado e desapareciam-me da vista. Se mexesse no quadro pendurado na parede, saiam em grupo lá detrás umas mais pequeninas, castanhas, muito rápidas a moverem-se histericamente em círculos.
Eu ficava sentado na cama, em posição de lótus, de olhos abertos a olhar o branco dos lençóis à procura de alguma coisa que se mexesse. Na terceira noite, adormeci. Já estava à espera. As duas primeiras noites na pensão mais as noites em branco na rua, estava mesmo cansado. Enrolei-me no lençol como numa mortalha e deixei-me adormecer. Durante a noite tive a sensação de andarem vários pezinhos sobre mim. Mas estava a dormir, estava a sonhar, não estava ali, estava em casa, na minha casa, na minha cama, com a minha mulher, enrolado na minha mulher, os dois em conchinha, a minha respiração sobre a nuca dela, os seios dela nas minhas mãos, e dormia o sono dos justos, com um sonho de felicidade e, de manhã, quando acordei, descobri-me enrolado numa mortalha, sem mulher, numa cama que não era a minha e com coisas que corriam por cima de mim para longe de mim. Abri a mortalha e estava no meu quarto de pensão. Olhei em volta e não vi nada a mexer-se. Estava tudo escondido. Tinha-os sentido sobre mim mas tinham fugido. E foi quando me estava a levantar que vi um ponto escuro, talvez acastanhado, em cima do lençol. Aproximei-me. Toquei-lhe com a unha e aquilo começou a correr. Aquilo tinha pernas e começou a correr dali para fora. Percevejos. A cama tinha percevejos.
Tinha de arranjar outro trabalho. Ou assaltar um banco. Não podia mais ficar naquela pensão. Precisava de uma casa. Uma casa limpa e desinfestada. Uma casa para onde pudesse levar outra mulher. Nem que fosse só por uma noite. Mas uma noite que não me fizesse preocupar com habitantes regulares indesejados.
Ainda demoraria mais dois meses até conseguir arranjar um novo trabalho. Mas nesse mesmo dia, nessa noite, assaltei uma pastelaria. O fruto do assalto não foi grande, mas permitiu que dormisse num pequeno hotel limpinho. Permitiu que eu tomasse banho, lavasse roupa e me pusesse apresentável para procurar trabalho. Ainda voltei a assaltar um restaurante antes de voltar a ter trabalho. Sei que devia ter antes assaltado um banco. Ladrão que rouba ladrão tem cem anos de perdão. Mas não tinha condições para assaltar um banco. Os bancos já não são assaltados assim, como dantes. Agora só com grandes conhecimentos tecnológicos ou para grandes gestores, o que é difícil para um tipo analógico.
No dia seguinte fui almoçar um bitoque na frigideira ao Liz Bar. E percebi que um homem que se quer homem não pode não ter dinheiro no bolso das calças. Nem que, para isso, tenha de fazer o que não deve fazer. Mas desde essa altura, nunca mais me faltou dinheiro no bolso das calças. Nunca é muito, mas é o suficiente.

[escrito directamente no facebook em 2022/10/05]

Lista de Pequenos Prazeres

Gosto de pão com manteiga. Pão carcaça, ou papo-seco, acabado de fazer em forno a lenha, estaladiço, barrado com manteiga, Primor no antigamente, Milhafre agora. Também gostava do Pão com Manteiga, programa de rádio com o Carlos Cruz, e do indicativo de programa, Chameleon de Herbie Hancock, um programa onde também habitava o segmento, O Rock e a Amiga, que se tornou, para mim, expressão para definir pares lógicos e inseparáveis, o que não foi nunca o meu caso nos casos da vida;
Gosto de cinema francês, filmes de amores e desamores extremados, triângulos amorosos, gritos histéricos, muito sexo e faca na liga;
Gosto de frango assado em casa, no forno, cortado em pedaços não muito grandes e assado só com sal e no fim, depois de bem assado e crocante, juntar-lhe uma folha de louro, azeite, alho esmagado, pimenta e piri-piri;
Gosto que me toquem no corpo nu depois de um banho de imersão com água bem quente e sabonete Lavanda;
Gosto de filhoses em Agosto, de broas de batata doce em Março e gelado de limão de Dezembro;
Gosto das farturas do Penim mas só na Feira de Maio e depois de estar meia-hora na fila, à torreira de sol, a destilar;
Gosto de usar sapatilhas All Star pretas clássicas de costura preta e estrela branca na lateral;
Gosto de boxers de algodão que não me prendam os movimentos e me deixem livre;
Gosto de ouvir os Velvet Underground, especialmente quando os dias me correm mal e preciso que alguém me entenda;
Gosto de comer um bitoque em frigideira de barro no Liz Bar às dez da noite, uma alheira de Mirandela no Salvador à hora do almoço e uma sopa de cozido no Reis às Quintas-feiras;
Gosto das Tostas de Galinha da Geliz, especialmente às duas de cada vez;
Gosto de comprar o Expresso ao Sábado e não o ler durante a semana toda;
Gosto de roubar pastilhas elásticas no Pingo Doce e não ser apanhado;
Gosto de ler o Philip Roth mas há dias em que prefiro a Gina;
Gosto de ir ao cabeleireiro cortar o cabelo só para que o lavem e eu sentir os dedos que me coçam o couro cabeludo e me fazem adormecer;
Gosto de rever o Twin Peaks de vez em quando e perceber que há gente ainda mais esquisita que eu;
Gosto de fumar Lucky Strike sem filtro e tossir como se fosse deitar fora os pulmões carregados de bronquite;
Gosto de beber Mouchão tinto quando tenho dinheiro, quando não tenho qualquer zurrapa me serve que o importante é dar de beber à dor e de comer a um milhão de portugueses;
Gosto de Brisas do Liz mas não preciso que as transformem em iguaria nacional, gosto delas só para mim;
Gosto de passear ao fim-da-tarde na marginal da Nazaré mas só depois de levantarem o estádio que fica lá todo o Verão na areia a tapar a vista do mar;
Gosto de tirar fotografias aos surfistas da Praia do Norte e também aos mirones que como eu vão ver os outros, os que são capazes de se lançar nos braços de Neptuno;
Gosto do serviço de quartos;
Gosto de concertos ao vivo;
Gosto de Cem Soldos;
Gosto de fumar um charro, beber cerveja fria e ter conversas sobre o estado da cultura em Leiria;
Gosto de raparigas com argolas grandes, como as das ciganas, nas orelhas;
Gosto de raparigas;
Gosto de arroz de pato com pedaços de chouriço de Montalegre por cima;
Gosto de grelos regado com um fiozinho de azeite;
Gosto de conduzir carros rápidos e nervosos, andar depressa mas com tino;
Gosto de mergulhar nas águas frias da costa atlântica e ficar com os testículos encolhidos e a pila pequenina;
Gosto de dar uns pontapés na bola;
Gosto dos filmes do Fassbinder, e do Godard, e do Ken Loach, e do David Lynch;
Também gosto dos filmes da Sofia Coppola;
Gosto de andar descalço; e nu;
Gosto de cães e de gatos;
Gosto de noites de Luar, dias de nevoeiro, tardes de sol e manhãs de chuva;
Gosto de noites frias e da lareira acesa na companhia de uma aguardente velha;
Gosto de ver o Benfica a jogar, quando joga futebol;
Gosto de beijos; de beijos de língua, mas também gosto de beijos na cara, no peito, nos braços, nos olhos; gosto de beijos de todo o feitio e em todo o lado;
Gosto da Juliette Binoche e recordo sempre o Rendez-Vous de André Téchiné com muita saudade;
Gosto de jogar basquetebol mas já não jogo desde que saí do liceu, no século passado;
Gosto de fazer piqueniques no pinhal e beber vinho em copos de vidro;
Também gosto de fazer amor no pinhal, nas ruas esconsas da cidade, em cima do capot do carro e no jardim da vizinha;
Gosto de jogar ao Monopólio e ganhar;
Também gosto de jogar à Sueca;
Gosto de comer marmelos assados no forno e engelhar a cara pela acidez que me percorre a garganta e estaciona no estômago;
Gosto que me tratem bem e gostem de mim.

[escrito directamente no facebook em 2020/10/09]

Persisto ou Desisto?

Persisto ou desisto?
Estou aqui no alto das escadas, acima da cidade. Ao fundo, na linha do horizonte, elevado e a roçar as nuvens que se atravessam neste céu azul de um Verão que está para durar, o castelo. Vista daqui, Leiria até é uma bonita cidade. O problema é quando nos aproximamos dela.
Acendo um cigarro. Sinto o fumo encher-me os pulmões.
Faço uma panorâmica sobre os telhados da cidade. Uma cidade envelhecida. Mesmo a sua modernidade é velha. Uma mancha verde que diminuiu. Assim, vista daqui, não parece uma cidade velha e triste.
Começo a descer as escadas de pedra. Degrau a degrau. Escavadas pelo anos. Pelos pés ao longo dos anos. Enquanto tento pensar. Enquanto tento tomar decisões. Temos sempre de tomar decisões.
O meu corpo chocalha enquanto desço. Pequenos saltinhos agitam o meu corpo já pouco musculado e com excesso de gordura. Cada passada abana-me a barriga, o peito, as peles dos braços. Muita comida de merda. Muito pão. Muitos fritos. Muita gordura. Muita comida barata. Comida para encher a barriga, não para alimentar o corpo.
Desisto?
Sinto um soluço bloquear-me a voz interior. Acaba-se o monólogo. Continuo a descer as escadas com a angústia a apertar-me a garganta e tento recuperar a calma, a lucidez. Não, não devo desistir. Não posso desistir.
Desço o último degrau. Coloco o pé na baixa da cidade. Entro pelas traseiras da esplanada do Liz Bar. Umas mesas por levantar. Há restos de marisco. Deixaram as cabeças do camarão. As pessoas não comem as cabeças do camarão. É a melhor parte. A mais saborosa. Onde todo o sabor se fixa.
Sento-me numa das mesas e começo a comer as cabeças dos camarões ali deixadas por quem não sabe apreciar. Bebo o resto da cerveja dos copos abandonados. Chupo as cabeças. Lambo os dedos sujos. Limpo as mãos às calças rotas e sujas. Limpo o nariz à toalha da mesa, à toalha de pano branca que está sobre a mesa, sob as taças com as cabeças de camarão que acabei por chupar e comer. Assoo-me. Há quantos anos não como uns camarões?
Vale a pena persistir?
Vindo lá de dentro, de camisa branca e calças pretas, a abanar um guardanapo branco, o empregado enxota-me. Se calhar tem medo que eu lhe roube a gorjeta. Mas não há dinheiro nas mesas. Nem notas nem moedas. Só as cabeças de camarão destruídas que eu já devorei.
Levanto-me da mesa e continuo pela cidade fora. Ou será pela cidade dentro?
Acendo outro cigarro. Soube-me bem, as cabeças dos camarões. Mas lembra-me outros tempos. Tempos em que eu também era outro. Em que eu podia pagar os camarões. E já nessa altura comia as cabeças. Sempre gostei das cabeças dos camarões.
Páro junto ao lancil do passeio. Há muitos carros a cruzarem a cidade. Passam depressa. Grandes carros. Boas marcas. Há dinheiro, em Leiria. Eu não tenho pressa. Mas pergunto-me se vale a pena. Desisto? Persisto? Tenho um pé em suspenso sobre a estrada. A estrada cheia de carros que voam com pressa para qualquer sítio. E eu? para onde é que quero ir?

[escrito directamente no facebook em 2020/09/13]

Fui às Putas

Um dia fui, ao que popularmente se diz, às putas.
Fui às putas com um amigo mais velho, frequentador habitual da casa onde me levou. Eu já tinha tido umas relações sexuais, mas nunca tinha, realmente, fodido com uma rapariga. Tinha tido umas brincadeiras com uma prima mais velha. Brincadeiras essas, posso dizer, que me agradavam bastante. Mas eram só mesmo umas brincadeiras. E eu já estava a passar da idade da brincadeira. Agora queria ser um homem.
Devo dizer que, nessa altura, eu já tinha ido à inspecção militar a Coimbra. Já tinha estado com uns rapazes que passaram a noite na Rua Direita, quiseram que eu fosse com eles e eu recusei. Mas naquele dia, naquele dia fui.
Tinha ido comer um meio-bife ao Liz Bar. Já comeram um meio-bife no Liz Bar? Um meio-bife frito numa frigideira de barro que depois vem para a mesa com um ovo estrelado por cima e emoldurado numas batatas fritas e num arroz branco frito, tapados por um guardanapo de papel para não estornicar os comensais com os pingos da gordura a ferver, e que nos faz lamber os beiços com especial prazer. Uma maravilha! Acompanhei o meio-bife com várias imperiais. Eu e ele. E depois ele disse E agora vamos às putas! e eu perguntei Vamos? e ele afirmou Vamos!
Eu deixei-me levar. Na verdade não sabia muito bem o que era isso de ir às putas. Quer dizer, sabia o que eram as putas, claro, mas não sabia nada sobre elas e sobre lá ir e que que é que era preciso fazer quando se lá ia e todas essas coisas que são precisas para se fazer aquilo que muita gente faz. Mas ele só me dizia Não te preocupes. E eu não me preocupei.
Saímos do Liz Bar e fomos a pé pelas ruas da cidade. Era noite, início de noite, as luzes da rua já estavam acesas, estava calor e, à medida que nos íamos aproximando da casa, eu ia ficando ainda com mais calor. Comecei a ficar nervoso. E quase perdi a vontade. Quando chegámos ele disse Voilá! e apresentou-me uma casa sem nada de especial, num bairro mal-afamado na periferia da cidade mas que já tinha tido o seu tempo e eu até cheguei a ter amigos, no colégio da freiras onde estudei, que eram daquele bairro que, naquele tempo, não era como chegou a ser mais tarde, quando eu lá fui levado por ele e ele tocou à campainha e uma velha gorda e feia (não é para chatear ninguém nem para fazer qualquer género: a mulher era velha e gorda e feia como o raio) em camisa de dormir, reconheceu o meu amigo, abriu-nos a porta, sorriu para mim e fez-nos entrar. Senti-me uma tira de lentrisca assada olhada pelo cão da vizinha.
Entrei para uma espécie de pequena sala de estar com cheiro a velas de cheiro (não sei a que é que cheirava, mas era enjoativo) que estavam acesas e davam um ar irreal a tudo aquilo e às raparigas que iam chegando, todas elas com pouca roupa, se é que posso chamar roupa às tiras de panos que iam tapando, mal, as partes sexuais das moças que se chegavam à frente, peitos rijos, pelo menos firmes, rabos volumosos e lábios carnudos e pintados de vermelho-paixão, todas elas com uma enorme vontade de me levarem a mim para um dos quartos lá de dentro.
Elas aproximavam-se. Roçavam-se em mim. Cheiravam-me. Sorriam. Algumas beijaram-me no pescoço e, então, uma delas disse Se não quiseres preservativo, não precisas de usar! e foi aí que tudo parou.
Eu parei. Elas pararam. O mundo parou.
Há gente que vem aqui e tem relações sem preservativo? E elas aceitam?
Há gente para tudo. Neste mundo, há gente para tudo. E a maior prostituição nem é a destas raparigas. Há muita gente que se prostitui por tuta-e-meia e por mil-e-uma coisa, algumas delas sem jeiteira nenhuma. Há muita prostituição fina, fina e parva.
Foi então que percebi que aquilo não era bem o que eu queria para mim. Acendi um cigarro. Dei um beijo a todas as raparigas que estavam por ali, à minha volta, dei uma palmada nas costas dele e disse-lhe Vou ao cinema.

[escrito directamente no facebook em 2020/07/09]