Os Limites da Minha História

Chega-me a luz da Lua, Lua Crescente, quase cheia, ainda não mas quase, por entre as ramagens do Ácer. Estou às escuras. Não preciso de gastar energia da EDP com toda esta luz que a Lua me traz à borla, ainda uma das poucas coisas a que o Capital não conseguiu deitar a unha. Por enquanto.
Não estou às escuras por miserabilismo, embora o seja. Estou às escuras porque me apetece. Há alturas em que me apetece estar no escuro e no silêncio. Estou sentado à mesa da cozinha. Comi um Palmier recheado que comprei no café da aldeia, o Café Central. Um dos poucos bolos de pastelaria que vende. Este já estava um pouco seco, mas é assim que eu gosto dele, porque posso comê-lo em bocados, pedaços da jangada (o nome popular pelo qual é conhecido), até atingir o meio que contém o doce de pasteleiro. Comi o Palmier às tiras e bebi um tinto de verano feito com vinho do pacote de cartão, bem mais em conta e bom para misturar com a gasosa. Aqui vai mesmo Seven-Up que não há melhor gasosa para a mistura. Enquanto comi e folheei o Correio da Manhã de ontem, roubado no café quando lá fui comprar o Palmier e beber um Favaitos, a luz caiu e a noite chegou. Não acendi a luz. Acendi um cigarro e deixei-me ficar às escuras. A casa torna-se mais íntima, mais protectora. Tenho vontade de ir para a cama, mas tento contrariar estes desejos que acho perigosos. Há alturas em que não me apetece levantar da cama, e obrigo-me, da mesma forma que à vezes me apetece deitar mais cedo, às vezes mesmo a meio da tarde, mas não deito, não me deixo deitar, mantenho-me activo a garantir-me que a vida é bela, o que me remete para o filme de Roberto Benigni o que me deixa irritado. O que foi feito do Roberto Benigni, actor do Down by Law de Jim Jarmusch?
Fico à escuras até ser atingido pelo Luar. Fumo o cigarro e vejo o fumo a subir até ao tecto. A cabeça foge-me. Vai para o passado. Vai para onde fiquei. Para de onde nunca saí e o que saiu é isto que se faz passar por mim sem o ser. Tenho dezanove anos e estou em Ferragudo, dentro de uma canadiana, a transpirar, e o mundo é uma maravilha à espera da minha chegada. Estou envolvido por uns braços doces, frescos e macios. Braços jovens como eu. Sinto os beijos. Quentes e molhados. Ouço a respiração ofegante junto aos meus ouvidos. Ao fundo o When Love Breaks Down dos Prefab Sprout. Já morremos os dois, não já? Nunca mais poderia haver vida para além da vida que vivemos naqueles anos.
Desperto de novo para a Lua. Já andou uns bons metros. Na verdade, uns bons milhares de quilómetros. Estava de um lado da janela e já está no outro. Desperta-me do torpor destas memórias do passado, histórias de uma vida que às vezes duvido que tivesse sido a minha.
Quero ir para a cama mas ainda é cedo. Não posso deitar-me tão cedo. Por mais que queira recuar no tempo e continuar a história. Por mais que queira viajar para o passado. Por mais que queira que a cama me leve lá para onde quero ir.
Ouço barulho na rua. Levanto-me para espreitar pela portada da porta da cozinha. Vejo um tom alaranjado do outro lado da estrada. Está a arder, o terreno aqui em frente. É um incêndio já grande. E está a espalhar-se com rapidez. Mas já não me assusto com incêndios. Pego no telemóvel e telefono para o cento e doze. Depois acabo por me ir deitar. Já não me respeito. Tenho um passado para recuperar.

[escrito directamente no facebook em 2024/06/19]

Vidas

E de repente dou conta que, à minha volta, todos os meus amigos, todos sem excepção, já não vivem as suas vidas de primeiro casamento. Todos eles estão separados. Todos eles estão em segundas vidas. Um deles já vai para o quarto casamento e no quarto filho, um de cada relacionamento. Não sei o que é que isto quer dizer, na verdade nem estou muito interessado nisso mas, é um facto. O facto é que, todos os casamentos a que fui convidado, e mesmo aqueles para que não fui convidado mas aos quais acabei de ir, terminaram.
E mais dou conta que, muito deles, desses meus amigos de primeiros casamentos desfeitos, encetaram novos relacionamentos com pessoas do passado com quem já tinham tido algum tipo de relação. Na maior parte, namorados de liceu.
Não sei porque raio isso está a acontecer mas, e de novo, é um facto.
Também é um facto que, todos os meus amigos divorciados que recomeçaram relacionamentos com pessoas do passado, ainda mantém esses relacionamentos. Talvez por ainda ser cedo, talvez por não ter ainda havido tempo para o desgaste, ou então estão mais maduros, talvez tenham aprendido alguma coisa com o desastre do primeiro casamento ou, talvez, tenham descoberto que o verdadeiro amor tinha estado ali, mesmo ao lado, só não o tinham visto. Tudo é possível. Tudo e o seu contrário.
Eu também pertenço às mesmas estatísticas. Também eu faço parte do grupo que viu desfeito o primeiro casamento, o casamento da esperança num amor verdadeiro, também eu tive dois filhos, como a maioria dos meus amigos, e também eu acabei por me divorciar.
Então, também eu me cruzei com uma paixão do passado. E, até aí, tudo estava bem. Tudo estava de acordo com a minha pesquisa caseira, de conta com os meus amigos de infância e mesmo alguns que fui agregando no liceu e na faculdade. A vida tornou-se igual para todos.
Conheci-a num Verão em Ferragudo, ali para os lados de Portimão. Tinha ido acampar com uns amigos. Na segunda noite conheci-a. Era a minha alma gémea. Grudámo-nos nessa primeira noite e só nos separámos três semanas depois quando ela foi embora e eu decidi também ir porque já não estava ali a fazer nada. Foi uma despedida de baba-e-ranho. Chorámos os dois. Sabíamos que aquele amor estava condenado. Ainda éramos muito novos e vivíamos em sítios diferentes do país. Ela a norte, eu no centro. Eu ia estudar no fim desse Verão para a capital do país, ela ficava a estudar na capital do norte do país. Eu ia estudar gestão, ela ia estudar veterinária. Tínhamos vidas muitos diferentes e dificilmente nos voltaríamos a cruzar. Talvez num futuro! ainda dissemos.
E esse futuro aconteceu.
Eu, entretanto, larguei a gestão. Comecei nas vendas de material médico, o salário era bom e acabei por ficar por aí. Percorrer o país de lés-a-lés. Se calhar também foi isso que acabou com o meu casamento. Talvez, não sei. Mas foi numa dessas minhas viagens que acabei por me cruzar com ela. Eu estava divorciado e sozinho. Ela também. Acabámos por jantar juntos. Revivemos aquele Verão e a loucura que tinha sido. Relembrámos o choro. Ela disse que nunca mais tinha chorado daquela maneira. Eu também o disse. Nem sei porquê. Quis parecer sensível, sei lá.
Acabámos na cama. Ela levou-me para casa dela. Os filhos não estavam. A meio da noite vim-me embora. Ela estava a dormir, ou assim parecia, e eu vim-me embora. Saí sem fazer barulho. Acho que não a queria acordar. Aquela noite tinha sido um erro. Se tivéssemos ficado só pelas lembranças, talvez as coisas ainda sobrevivessem e tivéssemos uma estória para contar. Assim, a estória morreu ali. Aliás, morreu anos atrás quando nos despedimos a chorar no Verão mais bonito da minha juventude.
Lembrei-me desta estória porque recebi o convite para o quarto casamento do meu amigo. Aquele que já vai para o quarto casamento. Eles já vivem juntos há dois anos. Já têm um filho. Vão casar agora. Não sei quanto tempo vai durar, o casamento. Mas ele vai tentando. Eu já não tenho vontade. De cada vez, saio a meio da noite, sem vontade de encarar o dia seguinte. Talvez eu tenha algum problema.

[escrito directamente no facebook em 2022/07/21]