Estórias da Madrugada

Levanto-me da cama. Espreguiço-me. Ela chuta o lençol para baixo e deixa-se estar nua em cima da cama. Eu acendo um cigarro e vou até à janela, uma janela grande, do tamanho da parede. A cidade aos meus pés.
É noite, tarde da noite. A cidade ainda fervilha. Luzes amarelas e vermelhas circulam pelas artérias. Os anúncios de néon dão uma atmosfera irreal à cidade.
Coço as virilhas. Levo os dedos ao nariz e cheiro-os. Sinto o cheiro dela em mim. Ela ri-se. Eu ouço-a a rir e também me rio.

Ela: Estás a cheirar os tomates?
Eu: Estou.
Ela: Que nojo.
Eu: É o nosso cheiro.
Ela: Viste o jogo?
Eu: Vi a primeira parte. Depois deu-me nervos. Fui jantar a um restaurante sem televisão.
Ela: Jantaste sozinho?
Eu: Janto muitas vezes sozinho.
Ela: Porque é que não telefonaste?
Eu: Telefonei.
Ela: Telefonaste mais tarde.
Eu: Telefonei.
Ela: Convidaste-me para vir a tua casa. Não para jantar.
Eu: Queres jantar?
Ela: Agora não.

Eu viro-me para ela. Está esticada, nua, sobre a cama. Olha para mim. Eu encolho a barriga. Ela volta a rir-se. Eu acompanho-a. Apago o cigarro. Volto para a cama. Sento-me. Ela chega-se a mim, puxa-se para cima e deita a cabeça no meu colo.

Eu: Queres água?
Ela: Não, obrigado.
Eu: E tu?
Ela: Eu o quê?
Eu: Viste o jogo?
Ela: Não. Nem gosto de futebol. Fui ao cinema.
Eu: O que é que foste ver?
Ela: Os Dias Perfeitos.
Eu: O filme do Wim Wenders?
Ela. Sim. Viste?
Eu: Sim.
Ela: Gostaste?
Eu: Gostei bastante. Bastante mesmo. E há muito tempo que não via um filme dele assim tão bom. Talvez desde o tempo das Asas do Desejo.
Ela: Adorei as Asas do Desejo. Sabes que terminei uma relação com um namorado que me disse que não percebia o que é que eu tinha visto de tão fantástico no filme. Que era uma seca do caraças. Ainda por cima a preto e branco. Fartei-me de rir quando se queixou do preto e branco.
Eu: Terminaste por causa de um filme?
Ela: Porquê? Não é motivo suficiente?
Eu: Claro que é. Mas a relação não devia ser muito forte.
Ela: As relações são o que são no momento em que são. E há idades em que tudo tem a ver com tudo. Nesse dia percebi que não estávamos a fazer nada juntos. Não tínhamos nada a ver um com o outro. Éramos tão diferentes com visões do mundo tão díspares. O sexo era bom…
Eu: Tão bom como o nosso?
Ela: O nosso é bom?
Eu: Foda-se?!…
Ela: Estou a brincar. É um bom diferente. Naquela altura tinha vinte anos. Agora já não.
Eu: Continuas com uns belos vinte anos.
Ela: Pois. Várias vezes vinte anos.

Ela levanta a cabeça do meu colo, rebola pela cama e levanta-se. Vai até à janela. Olha para fora. Coça a cabeça. Acho que se deslumbra com a vista. Mas já a conhecia, a vista. Vira-se para mim. Gosto dela, não gosto? Quero dizer, mais do que as cenas de sexo, não é? Estou a pensar nisso por ela estar ali nua, à minha frente? Não, eu pensaria o mesmo se estivesse vestida. Gosto de estar com ela para além do sexo. Porque é que não estamos mais vezes? Porque é que não namoramos? Porque é que nunca nos casámos?

Ela: Vou tomar um banho.
Eu: Não te vás embora.
Ela: Estás a convidar-me para cá ficar a dormir?
Eu: Sim. Estou.
Ela: Amanhã tenho de me levantar cedo. Tenho uma reunião logo de manhã.
Eu: Eu empresto-te uma camisa.
Ela: Não tens medo de eu cá ficar?
Eu: Não.
Ela: Está bem. Mas vou tomar um banho na mesma.
Eu: Está bem. E amanhã, queres jantar comigo? Cá em casa. Eu cozinho.

Ela aproxima-se de mim. Cola o seu corpo nu ao meu. Sinto-lhe o cheiro mais forte. Um cheiro adocicado. Um cheiro carregado de memórias e de desejos. Excito-me. Ela olha para cima. Olha para mim. Os seus olhos nos meus. Sente a minha excitação, sorri e fala num sussurro.

Ela: Afinal, sempre estás a convidar-me para jantar.
Eu: Estou.
Ela: Em tua casa.
Eu: Sim.
Ela: E vais cozinhar?
Eu: Vou.
Ela: E depois?
Eu: Depois vou fazer amor contigo.
Ela: E depois?
Eu: Depois vou pedir-te em namoro.

Ela ri. Estica os braços e cruza-os atrás da minha cabeça. Puxa-me para baixo, para ela. E beija-me. A boca dela devora-me os lábios, a língua, suga-me a vida e deixa-me em pedaços. A língua cola-me esses pedaços. Depois larga-me e sai do quarto. Eu deixo-me cair, em peso, sobre a cama. E pergunto-me O que é que eu acabei de fazer?

[escrito directamente no facebook em 2024/06/26]

De Olhos Abertos?

Abro os olhos. Estou na escuridão. Abro mesmo os olhos? Tenho os olhos realmente abertos? Ou só penso que abro os olhos? Não vejo nada. Não existe nada. Eu existo? Não me vejo. Não me sinto. Onde estou? Morri? Onde está o mundo?
Abro os olhos. Acho que abro os olhos. Abro os olhos mas não vejo nada. Devo estar a dormir e a sonhar. Isto deve ser um sonho. E como é que eu sei que é um sonho? Nem sei se é a cores ou a preto e branco (dizem que quando se sonha a preto e branco estamos mesmo a sonhar e que se for a cores, pode ser um acontecimento real, passado ou futuro). Está tudo preto. Preto como breu. Não é assim que se diz? Breu. Breu é escuro. E é onde estou, num mundo escuro, preto como breu, ou não e afinal estou somente com os olhos fechados julgando que estão abertos.
Abro os olhos. Abro os olhos. Abro os olhos. Mas não acontece nada. Podia ser que ao dizer três vezes seguidas acontecesse alguma coisa, mas não acontece nada. Não há nada. Só escuro.
Abro os olhos e não há nada. Se não há nada quer dizer que estou morto? Mas se estivesse morto estaria aqui a perguntar-me se estaria morto? Não sei. Ninguém sabe. Na verdade, ninguém sabe o que é a morte. Pode ser uma passagem. Um ritual. Um portal. Um estado. Um golpe de sorte. Os defensores da vida não deverão gostar muito desta última hipótese. Se a morte fosse um golpe de sorte, a vida perderia a sua vantagem e já ninguém teria medo de morrer e os dramas com a Lei da Eutanásia deixariam de existir.
Abro os olhos. É o que penso. Penso que abro os olhos. Devo estar consciente. E sinto, esta consciência? É que não sinto mais nada. Não sinto as minhas pernas. Não sinto os meus braços. Não sinto o meu corpo. Não sinto nada de físico. Ainda tenho corpo? Será que o que eu sou agora é o que se chama a alma? Será que eu sou a alma do corpo que fui um dia? E porque é que não vejo nada? Diz-se que quando a alma sai do corpo, ela vê-o lá do alto, como se fosse uma terceira pessoa. Era assim n’As Asas do Desejo do Wim Wenders. Gosto tanto desse filme. Acho mesmo que é um dos meus filmes preferidos. Quando a criança era criança… Houve uma altura em que desejei que a vida fosse mesmo assim. Que tínhamos anjos ao nosso lado, anjos que velavam por nós. E se eu agora sou também um anjo? Pode ser um processo como aquele que faz passar uma lesma a borboleta. Posso estar num casulo à espera da passagem. Será isso?
Abro os olhos… Chiu! O que é isto? Parece que ouço vozes. Ouço vozes? Haverá gente a falar? Parece muito distante. Estará mesmo gente a falar ou sou eu que imagino isso? E se forem pessoas a falar, onde é que elas estão? E porque é que não as vejo? Talvez porque estejam longe, não é? Talvez se eu chamar por elas. Se eu chamar por elas, talvez elas me ouçam e acendam a luz. Se calhar é a luz que está desligada. Onde está o interruptor? E onde está a minha mão para ligar o interruptor?
Abro os olhos mas eles não se abrem. Não sinto nada. Não, minto. Agora sinto um pouco de medo. Há quanto tempo estou aqui, onde quer que isto seja? E porque é que não sinto nada?
Hei! Hei! Ouçam-me!
Será que me ouvem? Será que me fiz ouvir? Olha. O que é aquilo? Estou a perceber umas formas. Parece que estou a ver uma réstia de luz. Ali. Ali em cima. Como é que eu sei que é em cima? Porque é ali. E eu estou aqui. Agora já sei que estou aqui. A pequena luminosidade está a aparecer ali. Já sinto a sombra do meu nariz. Ainda tenho cabeça. Onde está o meu corpo? Mas estou vivo, não estou? Onde é que estou?
Tenho os olhos abertos mas tenho de os fechar. Está a cair alguma coisa nos olhos. Talvez pó. Sim, é pó. Faz-me impressão. Olha. Sinto um clarão, mesmo de olhos fechados.
Abro os olhos com cuidado. Há um buraco de luz sobre mim. Ouço algum barulho. Há uma sombra na luz. A sombra diz qualquer coisa. A sombra diz
Şimdi her şey yolunda. Yaşıyorsun. Biz zaten buradayız. Seni oradan çıkaralım.
E eu deixo escapar um pequeno sorriso medroso.

[escrito directamente no facebook em 2023/02/17]