Vladivostok?

Há dias assim. Dias em que não quero fazer nada. Dias em que não me quero sentar em frente ao computador e escrever, escrever textos, pequenos textos de estórias, algumas reais, outras ficção, que me marcam os dias e querem sair cá para fora, mas não fazem nada para isso, sou eu que tenho de dar ao litro, sou eu que tenho de esgravatar o dicionário, seguir a gramática, preocupar-me com a sintaxe, esticar os dedos e escrever, escrever segundo alguma lógica, coisa que às vezes se perde quando eu me perco no excesso de odores etílicos ou tardes perdidas a fazer o que não devo ou que acham que não devo e faço orelhas moucas às regras obtusas de quem nunca teve uma flatulência na vida. Enfim…
Há tanta coisa que poderia estar a fazer agora: a ver o europeu (na verdade tenho um olho no empate entre Inglaterra e a Eslovénia); a ver um filme; a jantar no Liz Bar; a passear na Nazaré; a ver as pessoas às compras no Continente; a fazer amor com algum amor. Mas escusam de se perderem em ilusões sobre a minha fantástica vida. Estou sentado à mesa da cozinha, como é normal, a bater um texto em que me queixo de ter que escrever um texto quando me apetecia estar a fazer outra coisa, outra coisa por mais simples e banal e estúpida que fosse, como estar a comer um palmier recheado aos bocados e terminar a chupar os dedos cheios de doce de pasteleiro.
Agora, a meio do texto, da estória, poderia ser o momento em que os mísseis nucleares russos chegavam aqui à serra, ou descia por lá um Objecto Voador Não Identificado, que acabaria por tentar destruir-me a casa e a mim próprio, enquanto eu iria empunhar a caçadeira que tenho no fundo do guarda-roupa, como se pudesse lutar contra seres alienígenas com uma caçadeira, ou teria um acidente de mota nas curvas ali mais em cima, a caminho da praia, ou acabaria por cair de alguma falésia, ser engolido pelo mar e levar toda a gente a chorar o meu destino depois de terem ignorado a minha ausência. Mas nada disso vai acontecer porque nada disso acontece. A minha vida é uma existência do mais pobre e banal que se possa imaginar. Não acontece nada. Nada de nada. Ninguém janta nem ninguém morre. Ninguém aparece. A campainha de casa nunca toca. Nem o telemóvel vibra. Não há nenhum acontecimento relevantezinho. Aqui na aldeia, o tempo parou, parou num vácuo, onde não há nada, não há inteligência nem sequer seres-vivos. Há uma bolha de espaço e tempo onde se vive um Truman Show, com tartes cheirosas à janela, roupa estendida ao vento e gente assexuada.
(suspiro)
Acendo um cigarro (a minha única companhia que nunca me abandona, pelo menos enquanto o café da aldeia não deixar de vender tabaco). Bebo um copo de vinho tinto do pacote (cada vez gosto mais do vinho de pacote) e passo os olhos pelos canais televisivos. São as mesmas caras de sempre. Os mesmos pensamentos de sempre. Os mesmos comentários de sempre. Parece que voltei aos anos setenta sem a loucura que foram os anos setenta. Talvez fossem os anos oitenta, mas os anos oitenta foram bons, muito bons, pelo menos os meus. Não, queria dizer era os anos noventa. Parece que voltei aos anos noventa, os anos do nu-metal (há lá coisa mais horrível na vida de alguém?), e não consigo sair de lá! Ou daqui! Ou das ilhas, ou das ilhas Faroé! De Faro ou das ilhas Faroé!*
há dias assim / dias d’alma vaga / tão perto de deus / tão longe de mim**

* roubado ao rui reininho
** roubado aos rádio macau

[escrito directamente no facebook em 2024/06/25]

Dois Bêbados na Estrada

Ah! Cão, que te vou aos cornos e te fodo todo, meu filho-da-puta do caralho!
Sou despertado assim de chofre por uma gritaria desgraçada lá ao fundo, na estrada, numa estrada onde nunca acontece nada, até os carros estão quase sempre ausentes, dantes ainda passava uma camioneta que ia para as praias, mas hoje nem isso que toda a gente tem carro e quem não tem que tivesse, é o que hão-de pensar esses técnicos e CEOs que só miram o lucro e a responsabilidade social é um luxo a que não se dão, o estado que faça a sua parte, mas depois não gostam quando o estado faz a sua parte porque se mete onde não deve, isto é gente que nunca está satisfeita com nada que não seja encher os bolsos e já me perdi no raciocínio, não era disto que estava a falar, se calhar era com o que estava a sonhar quando fui despertado pela gritaria que vem lá de baixo da estrada e que dizia
Ah! Cão, que te vou aos cornos e te fodo todo, meu filho-da-puta do caralho!
Esfrego os olhos, colados de remelas, acendo um cigarro, levanto o cu da cadeira e chego-me à frente no alpendre para ver melhor o que se passa lá em baixo.
Estão lá dois tipos, dois tipos, ao que parece, a dançar no meio da estrada, ou então está ventania, aqui em cima não se nota nada, gritam um com o outro, a maior parte das vezes não percebo o que dizem, mas, por vezes, há algumas frases que, ajudadas pela aragem chegam cá a cima. Como esta
Anda cá, oh cabrão! Achas que tenho medo de ti, oh cara-de-cu?
Não é uma dança, é uma tentativa de se manterem em pé. Estão bêbados, por certo. O bailado é irregular. Agora, andam às voltas neles próprios à procura de qualquer coisa. Esticam os braços. Tentam chegar um ao outro mas estão longe. Cospem para o chão. Coçam o nariz e as partes baixas. Levantam os punhos junto à cara, para se protegerem um do outro, dos murros um do outro. Nunca chegam a tocar-se. Um deles tropeça nos próprios pés e cai. O outro estica o braço e o balanço leva-o a esmurrar-se a ele próprio e cai, também. Caem os dois no chão. Um para cada lado. Talvez se tenham magoado na queda. Podem ter partido qualquer coisa. É melhor lá ir abaixo.
Desço as escadas do alpendre. Desço a alameda. O cão e os gatos são o meu séquito. Vêm atrás de mim para me protegerem e dar fé. Abro o portão. Saio para a estrada. O cão e os gatos ficam ao portão, a olhar. Os tipos estão os dois caídos na estrada. Por sorte não passam carros. É raro. Nem a camioneta para a Nazaré passa por aqui. Já passou. Já não passa mais. Esta conversa está a fazer-me ter uma sensação de déjà vu. Não estive já a falar disto?
Aproximo-me de um deles. Olho-o com atenção. Coloco-lhe dois dedos na jugular. Bate. Vejo o outro. Também bate. Estão vivos. Não parecem ter-se aleijado. Mas estão bêbados que nem um cacho.
Agarro no telemóvel e marco o cento e doze. Aviso que está gente caída no meio da estrada aqui, ao pé de minha casa. Mandam-me esperar aqui fora até chegar a polícia e os paramédicos. Desligo o telemóvel. Volto a aproximar-se dos tipos. São novos, ainda. Não são da aldeia. Não os conheço. Meto as mãos nos bolsos deles. Dois maços de cigarros. Algumas notas de euro. Cento e vinte euros. Não têm carteiras nem identificação. São alienígenas, com certeza. Guardo os dois maços de cigarros e os cento e vinte euros no meu bolso. É o pagamento por me terem incomodado.
Saio da estrada e sento-me no muro na berma em frente. Acendo um cigarro. Descubro que ainda tinha o resto do outro na mão. Ainda estou a dormir. Deito a beata fora e fico com o novo cigarro. Tomo atenção à estrada, não venha lá alguma camioneta que não deva. Aguço os ouvidos à espera das autoridades. Bocejo. E digo entre dentes Espero não adormecer.

[escrito directamente no facebook em 2023/09/14]

Os Passos por Cima de Mim

Há dias em que ouço os passos no apartamento por cima de mim. Há dias em que ouço os gritos na cave por baixo de mim.
Nada disto seria preocupante se vivesse num apartamento na cidade, como já vivi, e onde a convivência com os sons da vida da vizinhança é uma companhia constante. Mas não. Vivo numa casa térrea, sem cave, e com um pequeno sótão que não utilizo e onde nunca entrei.
Há dias em que estou deitado no sofá, a olhar para a televisão num correr de zapping tão rápido que não fixo nenhuma imagem e os sons que me ficam são umas onomatopeias sem sentido, quando sinto, sobre mim, passos a caminhar. Pequenos passos a caminhar. Já pensei se não serão ratos. Mas os gatos aqui da casa já trataram de todos os ratos que por aqui havia. Agora, o que caçam, são os coelhos selvagens que passam aqui pelo quintal ou que eles vão caçar ao terreno lá do outro lado da estrada. Que barulho será esse que passa por cima de mim? De quem serão os passos? E serão passos?
Há dias em que estou na cama, às vezes a dormir, e sou despertado por gritos de pânico que parecem vir de baixo, debaixo de terra, porque não há outro baixo de mim que não seja terra, não há cave, nem nenhum bunker nem túnel. Mas ouço os gritos e sinto como são aflitos e aflitivos.
Acordo e fico ali assim, em silêncio, na cama, a evitar mexer-me para não fazer nenhum barulho, e apuro os ouvidos e fico quieto, atento, à espera de novo grito. Geralmente, o grito não volta. Nem o grito nem nada que se lhe assemelhe. Mas, algumas vezes, sinto os passos que se passeiam por cima de mim como quando estou na sala deitado sobre o sofá, a passarem aqui, sobre mim, sobre mim aqui no quarto, deitado na cama. Ouço-os. Serão as patas de algum rato?
Ou será que há fantasmas aqui em casa?
Eu não sou de ter medo nem tendo a levar a sério estas coisas sobrenaturais de fantasmas e almas do outro mundo mas, nos dias em que ouço estes barulhos, descubro-me mais sensível e fico com algum receio, não de coisas transcendentes, mas de coisas terrenas, como um bandido, um assassino, alguém que vai entrar aqui em minha casa, no meu quarto, na minha cama e me vai espetar a lâmina fria de um punhal vinte vezes, trinta vezes, no peito, por todo o ódio que o punhal terá às pessoas e de quem eu serei fiel depositário.
Outras vezes descubro-me no sonho, no sonho de alguém que não eu, que eu não sonho, e percebo-me a ser perseguido por seres alienígenas que me querem raptar para me levarem para planetas distantes e analisarem-me.
Há ainda umas vezes em que me encontro num sonho em que sonho que estou no sonho de outra pessoa e pergunto-me como raio é que sei isto tudo e não me perco e depois fico com uma grande dor de cabeça, vomito e acabo por acordar em casa, no chão da cozinha, a ouvir o cão da vizinha a ladrar, coisa que faz só quando se lançam foguetes a anunciar as festas das aldeias vizinhas e umas baratas a passearem-se por cima de mim.
Hoje ainda não ouvi passos nem gritos. Mas descobri uma aranha peluda ali na parede em frente a olhar para mim.

[escrito directamente no facebook em 2020/07/15]